Acadêmico Edson
Pacheco Paladini é Professor Titular do Departamento de
Engenharia de Produção e Sistemas da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorado
em Engenharia de Produção (UFSC, 1992). Atuação nas áreas de Engenharia, Gestão
e Avaliação da Qualidade. Autor de
diversos livros sobre temas inseridos em suas áreas de atuação e de artigos
técnicos publicados em periódicos qualificados no país e no exterior.
Acompanhe
a entrevista realizada a distancia na primeira semana de julho.
Como você percebe os
impactos e consequências da COVID-19?
Acho
que há dois grupos de impactos (e respectivas decorrências) da COVID-19: os
evidentes e os sutis. Saúde e economia estão no primeiro grupo e não há muito o
que acrescentar a tudo aquilo que já foi dito. O segundo grupo desdobra-se em resultantes
duradouras e implicações ocasionais.
É
difícil prever efeitos perenes, por razões compreensíveis. Fazer previsões de
longo prazo traz sempre o conforto inerente à dificuldade de verificar a
validade delas. Mas para um momento de extrema transição e volatilidade, a
tentação de fazer este tipo de prenúncio é irresistível. E, claro, este exercício
depende de percepção pessoal.
Eu
cravo como alteração permanente a revolução digital. E até muito mais do que
isso: na verdade, a pandemia vai consolidar a tendência da competência digital.
Apenas organizações que detém plataformas realmente eficazes sobreviverão, independentemente
do porte delas. Todos (todos, sem exceção) os setores da economia formal (e até
informal) vão ter que investir em modelos digitais de negócios. O comércio e agronegócio
poderão ser os setores onde o impacto do desenvolvimento
tecnológico será mais sentido. A telemedicina vai se estabilizar de forma
definitiva. A onda atingirá também, com furor e determinação, os microempresários
individuais. Serviços públicos vão também apostar no atendimento à distância e ampliar
interações como uso de recursos tecnológicos. Pessoas também sentirão esta
mutação. Todas as profissões vão precisar das novas tecnologias para se
consolidarem (o que implica atualização constante). No meio do caminho, universidades
vão ter que encarar esta nova realidade e alterarem não apenas os conteúdos
ministrados, mas principalmente, os métodos de ensino, já que utilizar tais
métodos é parte crítica do preparo de futuros profissionais. Nunca mais
ouviremos falar em uma figura conhecida como ex-aluno (seremos eternos
aprendizes). Além da educação on-line, reuniões à distância serão mantidas. Ou
seja: ampliaremos as interações, ainda que os atores do processo estejam
fisicamente distantes.
Já
as repercussões que podem ser fugazes compõem uma lista longa e talvez comece
com demonstrações de solidariedade; atenção e reconhecimento aos motoboys e aos
profissionais da saúde; relógios com o andar mais pausado; reuniões com
família; atenção a fenômenos e práticas incrivelmente usuais e que agora despertam
atenção – como o nascer do sol e a arte de cozinhar; menos poluição; mais
silêncio e menos ruído; pessoas mais calmas, mais lentas, mais atentas e mais sensíveis.
Há,
ainda, situações intermediárias – como a ênfase à higiene; maior atenção ao
mundo microscópico; incentivo à universalização das medidas de saneamento; cidades
com características mais humanas. É bem possível que estas posições migrem para
posturas permanentes. Mas não há garantias.
O que fazer no curto
prazo, afora as medidas já tomadas, para atenuar o impacto econômico,
empresarial e social?
As
soluções mais ou menos óbvias já discutidas em diferentes contextos (tipo redes
sociais, sites ou imprensa convencional) parecem corretas. Minha visão: em
primeiro lugar, pessoas e organizações economicamente ativas terão que rever o
foco de sua atuação. Um termo que tem sido muito usado para expressar esta nova
situação é “reinventar-se”. Parece adequado. Não podemos pensar que a demanda
apenas tornou-se menor. Este é uma conduta muito simplista. É preciso entender
que a demanda sofreu radicais alterações. Vale dizer: os valores que norteiam
os padrões de consumo mudaram rapidamente e isto não se deve (apenas) à queda
do poder aquisitivo. Os referenciais mais relevantes das pessoas sofreram
radical transformação. O simples fato de que esta crise existiu deixa no ar a
sensação de que outras poderão vir. O conceito de aquisição consciente vai
dominar e a relação entre custo e benefício terá papel determinante na decisão
de compra. A relação entre oferta e procura terá a empatia como regra
fundamental. Nenhuma empresa sobreviverá se não exercer um processo de sintonia
muito fina, aguçada, atenta e vigilante em relação a seus clientes. Desenvolver
este processo não é ação de curto prazo: é ação para agora. Um semestre de
pandemia é tempo mais do que suficiente para radical alteração de
comportamentos, hábitos e referenciais. Claro que esta transição exige
planejamento; pleno conhecimento e profunda compreensão do mercado; permanente
análise de tendências; completa reestruturação da cadeia de suprimentos entre
outras tantas ações que configuram um modelo de gestão empresarial caracterizado
pela flexibilidade e foco no consumidor. E aí aparece uma constatação que
parece surpreendente, mas não tem nada de inusitado ou imprevisível: Não são
esses os fundamentos da Indústria 4.0?
Como a qualidade e a
gestão podem ajudar para saída da crise?
Como
se estivesse com a tormenta aparecendo em seus radares, em passado
relativamente recente a qualidade se redefiniu. Saiu dos conceitos
tradicionais, como adequação ao uso, para uma concepção baseada em escolhas. Qualidade
hoje é definida como o conjunto de opções que organizações produtivas,
instituições governamentais ou mesmo pessoas selecionam para criar uma forma
específica de estruturar processos de relacionamento com os mercados e, mais em
geral, com a sociedade. Esta caracterização da qualidade trouxe uma alteração
substancial nos modelos de gestão, que passaram a ter um novo referencial: o
que determina a ação estratégica das organizações não é mais a visão da
empresa, mas, sim, o foco do negócio. Ou seja: o verbo “vender” foi substituído
pelo verbo “comprar”, com a consequente mudança no sujeito da frase: o agente
da ação é o consumidor, não o produtor ou a loja. Assim, posições consagradas
anteriormente, como cortar custos, por exemplo, foram substituídas por investir
em novas tecnologias que facilitem a interação com os mercados e, mais em
geral, com o ambiente social. Acredito que esta mudança no padrão de atuação
(que começou antes da pandemia) agora, mais que nunca, é um caminho seguro para
enfrentar os novos tempos. A Gestão da Qualidade no Processo vai guiar decisões
práticas que podem ter ganhos marginais significativos para empresas. Por
exemplo: se a interação com os consumidores se dá mais no ambiente virtual,
espaços físicos amplos (como no caso de lojas ou shoppings) serão substituídos
por ambientes menores e mais simples. Já a gestão de estoques, pela mesma
razão, utilizará novos conceitos. O clássico “just in time” pode desaparecer, cedendo lugar a maiores estoques de
segurança para garantir maior rapidez de atendimento, algo que alguns
profissionais da área de qualidade passaram a chamar de “just in case”. A troca da “atenção para a empresa” pela “ênfase ao
negócio” pode ser o primeiro passo para fixar uma saída segura da crise.
Sempre dizemos que o
Brasil é o país do futuro: Isso pode acontecer algum dia? Quando? Como será
possível?
As
características naturais do Brasil; a geração de matérias-primas fundamentais;
a diversidade de bens tangíveis e serviços disponibilizados; o crescimento
notável do setor de inovação tecnológica; a robusta produção de alimentos; o
processo de qualificação dos recursos humanos em todas as áreas são alguns dos
itens que contribuem para que nosso país tenha posição estratégico no mundo. Esta
já é uma situação sólida hoje e a tendência é estabilizar-se de forma rápida e
robusta. Além destas particularidades, o país pode beneficiar-se de mudanças
globais que a pandemia gerou, como no caso da crescente propensão de substituir
a aquisição de matérias-primas importadas (da China, por exemplo) por insumos
localmente produzidos.
Entretanto,
estas características potencialmente fantásticas não disfarçam, nem escondem e
nem reduzem elementos que nos afligem, como os níveis elevados de pobreza em
grande parte da população; dificuldades em consolidar um modelo de educação
adequado aos tempos atuais; atendimento precário em saúde para parcelas
significativas do nosso povo; debilidade em recursos básicos de infraestrutura;
características culturais que são nocivas às posturas mais modernas e
progressistas; modelos de governança de pouca eficiência e reduzida eficácia,
entre tantas outras restrições. Eleger hoje a minimização destas dificuldades
deveria ser nossa prioridade, já que, apesar delas, variados setores desenvolveram-se
de forma admirável.
Que prioridades
deveriam ser consideradas no momento atual?
E no futuro imediato?
Penso
que duas prioridades deveriam ser consideradas neste momento (pandemia em alta)
e no futuro imediato (o “novo normal”): ciência e fé. Acredito que, mais do que nunca, a partir de
agora, vamos privilegiar decisões primeiramente com base racional; a seguir,
com fundamento técnico e, por fim, com critérios científicos. Cada vez mais,
vejo que posturas individuais ou coletivas tendem a se guiar pela evidência
científica. Experiência prática anterior; conhecimento adquirido; visão
intuitiva; percepção em nível macro e, até mesmo, fatores de clara
subjetividade continuam tendo sua importância. Mas não são elementos
suficientes e sustentáveis diante do vislumbre cientifico das questões. Por
outro lado, cada vez mais fica claro que a ciência e a fé não são conflitantes,
ou mesmo mutuamente exclusivas. Não há qualquer incompatibilidade entre o
tratamento médico dedicado a um paciente e as orações dirigidas a Deus pela
cura deste paciente. E esta não é a única fé (motivação religiosa) a que me
refiro. Falo da convicção de que teremos tempos mais amenos; destaco a certeza
de novos e mais saudáveis padrões de convivência; enfatizo a confiança em
crescente bem-estar social; evidencio a convivência com opiniões divergentes
ou, até mesmo, assustadoramente polarizadas; acentuo a firme crença na
ampliação das interconexões pessoais, ainda que à distância. Em resumo: os
fatos científicos constituem referenciais seguros. Mas a disposição pessoal fundada
na fé em dias melhores é igualmente crítica.
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