Relatório do Grupo
de Estudo Produtividade: Caio
Márcio Becker Soares (Coordenador), Cláudio de Moura Castro, Claudius
D’Artagnan Cunha de Barros, Eduardo Vieira da Costa Guaragna e Maurício Roscoe
Academia Brasileira
da Qualidade, São Paulo, Agosto de 2020
PARTE I - PRÓLOGO, CONCLUSÃO E ATUAÇÃO DA ABQ
PRÓLOGO
A
Academia Brasileira da Qualidade coloca sua atenção em atividades relacionadas
à engenharia da qualidade, à gestão da qualidade e a excelência na gestão.
A
produtividade no Brasil está relacionada diretamente com os temas com os quais
a ABQ dedica sua atenção. Como a produtividade mostra resultados inadequados,
constituiu-se um Grupo de Estudo com a participação de acadêmicos. Os
acadêmicos participantes têm experiência e conhecimento na gestão pública e nas
empresas privadas, o que contribuiu de forma relevante para os resultados
obtidos com o trabalho.
Solicitou-se
a cada participante a elaboração de um texto referente à questão da
produtividade no Brasil. A análise dos textos levou às conclusões do grupo de
estudo bem como às propostas de ações para a solução do problema da
produtividade e atuação da Academia Brasileira da Qualidade nessa questão.
A
conclusão do estudo e a atuação da ABQ são apresentados nesta Parte I do
relatório. Os textos que embasaram o trabalho são apresentados na Parte II.
Inicialmente
são apresentados de forma concisa e objetiva o conceito da produtividade e os
fatores que a afetam. Esse texto foi elaborado pelos acadêmicos Eduardo Vieira
da Costa Guaragna, Claudius D’Artagnan Cunha de Barros e Caio Márcio Becker
Soares.
O
acadêmico Maurício Roscoe trata da necessidade de haver uma visão sistêmica,
dos recursos reais, das pessoas e outros recursos disponíveis os quais, se não
aproveitados ou mal aproveitados, contribuem para a falta da produtividade.
O
acadêmico Cláudio de Moura Castro mostra a produtividade na visão do
economista, sua participação no PIB, o conhecido Custo Brasil e o envolvimento
das pessoas nesta questão. Claudio examina também a produtividade no extremo
inferior da força de trabalho. Para isso, usa a pequena construção civil, cuja
força de trabalho tem um grande contingente de operários muito toscos na sua
preparação e oriundos de um meio muito pobre. Para dar mais realismo à sua
argumentação, refere-se à sua experiência pessoal na construção de sua casa em
um condomínio próximo a Belo Horizonte. Esse texto, “A construção civil e o
atraso”, não é uma crítica e não é um espelho da construção civil no Brasil,
como um todo. Ainda assim, mostra a falta de preparo, de interesse e de
motivação de um considerável segmento dos nossos trabalhadores. Falta-lhes
empenho e motivação para um trabalho bem feito, profissional e com ganhos de
produtividade. Infelizmente, isso não se aplica somente ao pessoal da construção
civil, mas ao contingente inferior de outros segmentos como a indústria, o
comércio, a prestação de serviço, a saúde, a educação.
Convidamos
a todos a ler e analisar com atenção os textos na Parte II do relatório. É
preciso resolver essa questão da produtividade no Brasil, o que não será feito
apenas com solução de problemas, simplificação de processos e outras ações que
temos adotado ao longo dos anos e que não têm contribuído para a melhoria da
nossa produtividade. Precisamos colocar nossa atenção nas pessoas,
principalmente nas nossas crianças, para mudar essa cultura de falta de
conhecimento, de falta de interesse e de motivação para um trabalho bem feito.
CONCLUSÃO
A
análise dos textos elaborados pelos acadêmicos, apresentados na Parte II desse
relatório, mostra que a produtividade deve ser estudada numa visão sistêmica,
onde os elementos que a constroem sejam identificados, assim como as suas inter-relações.
Não se trata de uma bala de prata. A produtividade vem sendo tratada como um
problema pontual e para o qual não existem ferramentas ou metodologias
específicas para sua solução.
Os
textos mostram que a produtividade apresenta elementos externos às
organizações, mas fundamentalmente está diretamente correlacionada com as
pessoas. Isso fica claro no texto de Maurício Roscoe – A otimização dos
recursos reais. As pessoas são um valioso recurso real. Cláudio de Moura Castro
demonstra no seu depoimento pessoal – A construção civil e o atraso - a
importância das pessoas e do seu conhecimento, comprometimento e entusiasmo
para um trabalho bem feito.
Observa-se,
também, que numa visão sistêmica, a questão da produtividade, ou da baixa
produtividade no Brasil, é uma consequência de um problema bem maior e que tem
como uma das principais causas a falta de conhecimento, de comprometimento e de
entusiasmo das pessoas, agravado pelo fato da ausência de valores que estimulem
o fazer bem feito e o desejo de ser um bom profissional e subir na sua
profissão. A questão tem que ser tratada dentro dessa visão sistêmica.
Ferramentas e metodologias que vem sendo utilizadas ao longo de anos, como a
solução de problemas, a simplificação dos processos e a adoção de modelos de
gestão, entre outras, apenas melhoram ou resolvem pontualmente a questão da
produtividade. Mas é preciso tocar nas pessoas, na sua dignidade de desempenhar
sempre melhor. Precisamos de algo mais robusto.
Como
ficou demonstrado que existe uma correlação direta entre a produtividade e as
pessoas, é natural que se trabalhe com as pessoas para buscar ganhos de
produtividade. Mas, o que fazer para desenvolver as pessoas? Ao longo de anos
temos ministrado treinamentos para as pessoas e o problema persiste.
Novamente,
numa visão sistêmica, a educação das pessoas é fator primordial para ensinar a
pensar, desenvolver discernimento, dar o conhecimento e criar um ambiente de
comprometimento e entusiasmo para um trabalho bem feito. A educação é a chave
que abre a porta da dignidade que impulsiona o indivíduo a ser alguém, com
desejo próprio e se transforma num valor que impulsiona a sua progressão
profissional. Não vamos conseguir isso somente com treinamentos e cursos, principalmente
de natureza técnica.
Outro
fator que contribui para a improdutividade do Brasil é a desigualdade, a exclusão e a inclusão social, a
pobreza, a qualidade de vida e a felicidade. Aqui mais uma vez a educação é
instrumento de mudança em prover oportunidades iguais e inclusão social. Essas
questões vêm sendo estudadas na ABQ pelos acadêmicos Vivaldo Antonio Fernandes
Russo e Ettore Bresciani Filho.
Na
verdade, é preciso mudar a cultura do nosso povo. A cultura trata do jeito como
as coisas são feitas ou o jeito brasileiro. É possível mudar uma cultura? Sim,
mas demanda tempo. Requer práticas novas, mas que sejam adotadas pelas pessoas,
com consciência de seus benefícios e clareza do que é esperado. Quem não se
lembra dos cintos de segurança? Impostos via legislação e punição no início,
foi se tornando hábito pelo nível de consciência e práticas que demonstravam a
sua utilidade. Podemos conseguir essa
mudança de cultura com uma grade curricular adequada desde a educação infantil
até às universidades. Por grade curricular adequada entenda-se, a gradativa
infusão do conhecimento, do saber, da ciência, sem esquecer a fundamental
necessidade de uma alfabetização correta e do letramento, que é a completa
utilização dos conceitos da alfabetização. Mais, essa grade curricular precisa
contemplar temas que promovam os valores de amor à pátria, o respeito às leis,
a honestidade e o total repúdio à corrupção, o respeito à família, às
autoridades e aos procedimentos estabelecidos. Ou seja, precisamos formar
cidadãos sérios, que tenham orgulho do que fazem e trabalhem para o seu país e
para a comunidade onde estão inseridos.
O
jornal O Estado de São Paulo apresenta na sua coluna de Notas & Informações
de 10 de agosto de 2020 o seguinte texto: “Há no país uma enorme carência de
educação cívica, que prepare os cidadãos não apenas para entender os limites do
poder, o funcionamento das instituições e o espírito da Constituição, mas
também para participar do debate político em busca de compatibilidades e de
consensos – enfim, do interesse comum”.
Essa
mudança de cultura não será obtida em curto espaço de tempo. Serão necessários
muitos anos para que se consiga um estágio adequado. Com determinação e
perseverança a mudança poderá ser feita, mas é fundamental que queiramos
fazê-la.
Essa
nova cultura vai contribuir para um Brasil melhor, mais sério, mais honesto,
mais produtivo. Ela vai afetar não só os trabalhadores, mas os nossos novos
políticos, empresários, e toda a população.
Por
fim, não podemos esquecer que a produtividade está diretamente correlacionada
com a eficiência e a eficácia. Produtividade significa fazer a coisa certa (eficácia)
com o melhor uso dos recursos (eficiência). Segundo o Presidente da ABQ,
acadêmico Eduardo Guaragna, uma gestão competente está em “Fazer certo de forma
eficiente a coisa certa”. Isso envolve processos, pessoas, recursos, o cliente
e demais partes interessadas.
ATUAÇÃO DA ABQ
Com relação à mudança de cultura apresentada
na conclusão deste trabalho, a ABQ pode contribuir no que se refere a
desenvolver a cultura da qualidade no país. A qualidade como valor de uma
sociedade só será adotada se houver nível de educação que permita a sua
compreensão. Da mesma forma a produtividade.
Considerando
o Capital Humano e Social da ABQ pelas suas relações e nível de conhecimento
dos acadêmicos, podemos atuar nas seguintes frentes:
Nos
seminários, lives, artigos e
trabalhos desenvolvidos pela ABQ contemplar temas que conscientizem o Governo e
a sociedade para essa mudança de cultura sugerida, onde a educação é a chave da
mudança:
1.
Elaborar
um Manifesto para o Ministério da Educação no sentido de mostrar a importância
da educação para o desenvolvimento econômico e social, pela sua atuação na
formação de lideranças, desenvolvimento da tecnologia e inovações, na
produtividade e ser uma preciosa porta de inclusão social e dignificação do ser
humano.
2. Construir relações de parceria com outras instituições voltadas à
qualidade e gestão no sentido de reforçar a ressonância das ações de mudança em
prol da melhoria da educação, da qualidade, produtividade e competitividade.
3. Criar um think tank para aprofundar o conhecimento do tema
produtividade no Brasil e sua evolução, podendo orientar tomadores de decisão a
respeito.
PARTE II – TEXTOS ELABORADOS
Conceituação de Produtividade
Caio Márcio Becker Soares, Claudius D’Artagnan Cunha
de Barros, Eduardo Vieira da Costa Guaragna
1. Introdução
Hoje se fala muito em desenvolvimento
econômico, mas somente a partir da segunda metade do sec. XVIII que a
humanidade passou a experimentar o que é hoje denominado de crescimento
econômico. Isso foi decorrente do fator transformador que foi o início das
inovações que mudaria a vida das pessoas. E somente na segunda metade do sec.
XX o crescimento econômico tornou-se objeto de estudo sistemático, onde foi
identificado que a palavra-chave por trás do crescimento econômico era a
produtividade. No longo prazo, ganhos de produtividade constituem a principal
variável explicativa do ritmo de crescimento de determinada economia ou região.
O crescimento econômico do Brasil - e de
outros países - depende muito da produtividade, ou seja, de quanto nosso país
consegue produzir utilizando seus recursos (máquinas, trabalhadores, recursos
de capital ...). Nos últimos 30 anos a produtividade cresceu muito pouco,
levando a baixo crescimento econômico e a menor crescimento da renda do
trabalhador.
No período de 1950-1980 a média de crescimento
da produtividade foi de 4,2% ao ano contra 0,6% ao ano no período 1980-2016
(medido PIB/hora trabalhada).
Por sua vez o entendimento dos fatores que
impactam a produtividade não é algo simples, pela sua característica sistêmica,
requerendo diversas óticas e recortes que permitam melhor entender os processos
envolvidos.
O objetivo deste trabalho é entender os
fatores que compõem a produtividade, seus desdobramentos nas organizações e
fornecer orientações que sejam uteis às organizações e a formação de políticas
facilitadoras ao desenvolvimento da produtividade no país.
2. O que é
produtividade.
A
Comunidade Econômica Europeia definiu formalmente a produtividade como sendo
“o quociente obtido pela divisão
do produzido por um dos fatores de produção”.
O
produzido são os bens, produtos ou serviços realizados. Os fatores de produção
são as pessoas, as máquinas, os materiais e outros elementos que participam na
produção.
Assim,
dividindo a quantidade produzida pelo número de pessoas utilizadas nesta
produção temos a produtividade das pessoas. Podemos assim calcular o número de
peças produzidas por cada pessoa, uma indicação da produtividade dos nossos
empregados. De forma similar, dividindo a produção pela quantidade de matéria
prima utilizada temos a produtividade do material, e assim por diante.
Para uma visão prática e objetiva da
produtividade ver o vídeo: https://youtu.be/RBf1qL0gku8
Em
seguida, trechos de um artigo assinado pelos empresários Dan Iochpe, Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski.
Esse artigo foi publicado no Jornal “O Estado de S. Paulo” no dia 24 de julho
de 2020 com o sugestivo e oportuno título “É tempo de decisão”. “Não há mágica sobre o que é necessário
fazer. Desde 1988, quando foi promulgada a Constituição, ou 1994, ano da
reforma monetária que criou o real, sabe-se que o crescimento econômico depende
do aumento da produtividade, que tem sido baixíssima no Brasil. Ela decorre de
educação de qualidade, da existência de um sistema robusto de ciência,
tecnologia e inovação, da sofisticação do processo produtivo e, sobretudo, da
forma como as empresas investem.” “O
modo como as empresas organizam o seu processo produtivo, qualquer que seja sua
atividade – industrial, agrícola, serviços -, faz com que a riqueza de um país
cresça com maior ou menor intensidade e com benefícios mais ou menos
distribuídos socialmente. Quanto mais eficiente for a alocação do que os
economistas chamam de fatores de produção, maior será a quantidade produzida
por unidade de capital e por trabalhador. É isso que determina o ritmo do
crescimento econômico e do emprego.”
De
forma geral, a produtividade é uma relação entre uma entrada e uma saída.
Quanto maior a saída e menor a entrada, maior a produtividade. O tempo também é
um fator fundamental na produtividade. Quanto menor o tempo para a geração de
um produto ou para a realização de um serviço, maior a produtividade.
Ou
seja, a produtividade está diretamente correlacionada com a eficiência e a
eficácia. Produtividade significa fazer
a coisa certa (eficácia) com o melhor uso dos recursos (eficiência).
Como
estamos falando de quantidades produzidas e de fatores de produção, os
processos da empresa ficam em evidência. O processo é aquele conjunto de
atividades pré-estabelecidas e que executadas numa determinada sequencia vão
nos dar um resultado esperado, necessário ou desejado. Para que se consiga
produtividade no processo é muito importante que se conheça com profundidade o
processo e que se estabeleça a maneira mais adequada de executá-lo. Dessa forma
conseguimos a produtividade nos nossos processos. É uma questão de fazer bem
feito, com capricho, na primeira vez.
Outro
cuidado: na ânsia de elevar a produtividade, a qualidade do produto ou do
serviço pode ficar comprometida. Não podemos fazer rápido e mal feito, como diz
o ditado.
A
qualidade e a produtividade andam juntas e devem ser pontos de atenção nos processos,
sempre.
Por
fim, produtividade é fazer as coisas certas. Isso tem a ver em fazer as coisas
que agregam valor para a sociedade e a uma ou mais parte interessada.
“Não há nada tão inútil quanto fazer com grande
eficiência algo que não deveria ser feito”, já dizia Peter Drucker.
Para
isso precisamos de seriedade, disciplina, comprometimento e competência. Quando
aceitamos e trabalhamos esses fatores nós seremos produtivos, nossas empresas
serão produtivas e o Brasil será um país produtivo. Na verdade, é isso que
precisamos neste momento.
3. Elementos que
compõem a produtividade
No âmbito da economia a produtividade de um
país pode ser avaliada segundo duas métricas: a Produtividade do Trabalho e a
Produtividade Total dos Fatores – PTF.
A Produtividade do Trabalho normalmente é
medida pelo PIB/hora trabalhada ou por trabalhador e se compõe por 3 fatores:
Educação (estoque de capital humano), Aprofundamento do Capital (razão
capital/trabalhador) e Produtividade Total dos Fatores. O estoque de capital
humano refere-se à educação, incluindo o treinamento on the job, ou seja, a
prontidão para atuar nos processos e desenvolver inovações. O capital por
trabalhador refere-se a máquinas, estruturas etc. que são disponibilizadas para
execução das atividades, processos, incluindo inovações. O crescimento
econômico induzido pela inovação nos últimos 100-150 anos levou as pessoas
buscarem qualificação (educação) nos maiores centros e as empresas elevarem o
capital investido (capital/trabalhador).
A PTF é a parcela de crescimento da economia
não explicada pela contribuição do trabalho (capital humano) e do capital
(capital/trabalhador) e pode ser entendida pelo seu desdobramento em dois
grupos:
1- Determinantes intranegócios/firmas
2- Determinantes ambientais (macroeconômicos)
No que se refere ao grupo 1, as pesquisas
identificaram os seguintes drivers:
a) prática/talento
gerencial/administrativo;
b) qualidade da mão
de obra e insumos;
c) uso de tecnologias
de informação e intensidade das atividades de pesquisa e desenvolvimento;
d) learning-by-doing,
ou seja, aprendizado na prática;
e) inovação de
produtos;
f) decisões
relacionadas a organização produtiva das firmas (mais ou menos verticais etc.).
São notadamente fatores internos às
organizações e que têm relação com a forma de a organização conduzir seu
negócio e sua gestão.
Quanto aos determinantes do grupo 2,
destacam-se:
a) externalidades
(infraestrutura, por exemplo);
b) competição;
c) desregulamentação
ou regulação apropriada ao mercado em questão;
d) flexibilidade do
mercado de insumos, incluindo o mercado de trabalho.
São
notadamente aspectos relacionados ao ambiente externo às organizações, muitas
das vezes influenciado por políticas de governo.
Existem vários indicadores que podem mostrar
a evolução da produtividade, tanto do trabalho como a PTF e que fazem parte do
WEF, (World Economic Forum), no GCR – Global Competitiveness Report,
1)
Índice de Qualidade da Infraestrutura Geral
2)
Índice de Qualidade do Sistema Educacional
3)
Peso da regulamentação governamental
4)
Número de dias para iniciar um novo negócio
5)
Garantida no cumprimento das leis (rule-of-law)
6)
Índice de flexibilidade na determinação dos salários
7)
Tarifa mediana de importação de bens
8) Índice de PMR
(Product Marketing Regulation) da OCDE
9)
Taxa de poupança doméstica em % do PIB
10)
Gastos com P&D das empresas
A saga da nossa
improdutividade
Claudio de Moura
Castro
Esse ensaio examina as raízes da
improdutividade na economia brasileira, justificando também porque devemos nos
preocupar com isso.
Não temos uma economia globalmente
improdutiva. Há zonas de modernidade, bastante competitivas, diante de qualquer
concorrente. E há os clássicos impedimentos, batizados com a expressão “Custo
Brasil”. Por fim, sobrevive um ‘Brasil Velho’, enredado com os valores herdados
de sociedades muito primitivas, para quem a própria palavra produtividade não
diz nada.
De que depende a qualidade de vida de uma
sociedade?
Como pano de fundo de tais discussões está a
mais do que justificada preocupação com a qualidade de vida da nossa sociedade.
Que outro problema econômico pode se sobrepor a este? De fato, inflação,
déficits ou crises são problemas críticos, justamente, porque afetam a qualidade
de vida da população.
Comecemos com ideias simples, mas que se
mostram relevantes para entender a questão.
PIB, PIB per capita e
Investimento
O PIB é a soma de tudo que os habitantes do
país ganham (ou produzem, o que dá na mesma). Para alguns fins, este é um
conceito importante. E com o nono PIB do mundo, o Brasil não faz feio.
Mas para se ter uma ideia da qualidade de
vida da sociedade, necessitamos fazer uma conta de divisão. É preciso dividir o
PIB pelo número de pessoas que vão consumir o que foi produzido. Como se sabe,
trata-se do PIB per capita. Em última análise, é ele que mede a qualidade de
vida de um povo. É o que cabe a cada um (é mais complicado do que isso, pois
como se distribui essa renda faz muita diferença, mas para a presente
discussão, podemos simplificar).
A Índia tem o quinto maior PIB do mundo, mas
o nível de conforto do povo é melhor capturado pelo PIB per capita que está em
144º lugar. Já Cingapura, modestamente em 34º lugar em PIB, tem o segundo maior
PIB per capita. É claro, a diferença em qualidade de vida e em padrões de
consumo entre esses dois países é captado pelo que cabe a cada cidadão, o per
capita.
Entendidos esses conceitos, passamos a
perguntar de que depende a magnitude do PIB per capita.
Não se trata aqui de mergulhar nos meandros
da teoria econômica. Sendo assim, fiquemos com uma explicação bem tosca. No
fundo, é uma grande simplificação, mas que cumpre o seu papel no presente
ensaio.
Podemos dizer que avança o PIB (i) quando se
investe e (ii) quando a força de trabalho se torna mais produtiva.
A ideia de investimento e poupança vem dos
primórdios da Teoria Econômica, lá pelo século XVIII. Na verdade, é uma ideia
que faz sentido até na economia de um trabalhador só, como nas aventuras de
Robinson Crusoé. Trabalhando a terra com pedaços de pau improvisados, produz
pouco. Contudo, ele se dá conta de que pode desviar parte do seu tempo para
construir um arado. De posse desta ferramenta mais poderosa, sua produção
aumenta. Aquilo que deixou de fazer para dedicar-se à sua elaboração é a sua
Poupança. Ou seja, em vez de descansar, plantar ou fazer alguma outra
atividade, ele preparou uma ferramenta nova. E o arado chamamos de
Investimento.
O mesmo em qualquer economia. Quando o
marceneiro poupa seu dinheiro para comprar uma máquina de maior performance,
ele está investindo, pois espera que com ela vá produzir mais. Quando a
Amazon.com deixa de distribuir lucros e investe para expandir sua rede de
computadores, faz o mesmo. Ao deixar de consumir, está poupando. E esta
poupança vira investimento em ativos que aumentam a sua produção.
Se é assim, faz todo sentido pensar que um
país cresce rápido quando muito se investe nele. E vice-versa, fica estagnado
quando consome quase tudo que foi produzido. Se o empresário decide expandir a
fábrica, sua produção irá aumentar no futuro. Mas se prefere usar seus
proventos para comprar um Lamborghini, poderá obter muito prazer com o carro,
mas sua produção permanecerá estacionada. É o conjunto de pequenas e grandes
decisões de poupar e investir que leva ao crescimento. E vice-versa à
estagnação.
Todavia, com os altos e baixos da política e
as sucessivas trapalhadas na gestão da economia, nossos empresários se
retraíram bastante. Empreender sempre terá um risco, mas se este cresce, mais
empreendedores desistirão de investir. Ou seja, se as atitudes são temerosas,
fica parada a economia.
Além dos empresários, o governo tem sempre
uma atribuição de investir parte do seu orçamento, para entrar em áreas que
considera inapropriada à iniciativa privada ou para reforçar o crescimento do
país. Infelizmente, na última década, o investimento público caiu muito. O
governo passou a gastar mais com ele próprio, aumentaram de muito os seus
quadros de pessoal e se expandiram os gastos com intenção social - na verdade,
um grande volume desses gastos subsidiam grupos muito acima da linha da
pobreza.
Sendo assim, a velha equação do crescimento,
lá dos tempos de Adam Smith, nos traz uma notícia ruim. Quando se investe
pouco, o país cresce pouco. É o que vem acontecendo.
A mágica da produtividade
Diante desse impasse, há a outra forma de
aumentar o PIB. Como sugerido, é aperfeiçoar o processo produtivo, de tal
maneira a permitir que a mesma força de trabalho com o mesmo capital gere um
produto maior.
Esse conceito é conhecido como Produtividade
do Trabalho. Em termos muito simples, é o produto gerado pela força de trabalho
em um dado intervalo de tempo definido. Pode ser hora, dia ou ano. Dá na mesma,
desde que todos usem a mesma unidade de tempo.
Se eu descascava um quilo de batatas em uma
hora e consegui passar a descascar um quilo e meio, posso dizer que aumentei a
minha produtividade (no caso, em 50%). Também ganhou produtividade uma linha de
montagem de autos que passa a produzir 57 carros por dia, em vez dos 45 de
antes. Se destes carros, 8 não passavam na inspeção de qualidade e agora apenas
5 são reprovados, podemos também dizer que a produtividade da linha aumentou.
Se o exame médico para renovação de carteira de habilitação passa a ser feito
em 15 minutos, em vez de 30 (sem queda de qualidade), novamente, estamos diante
de aumentos de produtividade, neste caso, nos serviços.
Em paralelo à ideia de Produtividade do
Trabalho, podemos igualmente pensar na Produtividade do Capital, concretamente,
das máquinas. Quanto mais produzir o equipamento, por unidade de tempo, maior
receita gera para o seu proprietário.
Na prática, quando a produtividade aumenta,
nem sempre é possível dizer se foi pela excelência superior do novo equipamento
ou pelo empenho e competência da força de trabalho. Mas no geral, não faz tanta
diferença assim. Por exemplo, o chefe de
um alto-forno trabalha de olho no “coke-ratio”, isto é, quantos metros cúbicos
de carvão consome para produzir uma tonelada de ferro-gusa. Sabe-se que, com
pequenos ajustes nos algaravizes e na marcha do forno, é possível reduzir à
metade o consumo de carvão, comparado com o rendimento inicial do equipamento.
Aumentou a produtividade, mas não sabemos bem se foram os melhoramentos no
processo produtivo ou a maior competência da equipe ao caprichar na marcha do
alto-forno.
Mas, de momento, não importa a mágica
realizada, o que conta é que, no mesmo intervalo de tempo, algo se fez, levando
a um aumento de produto ou da receita financeira da sua venda. Portanto,
trata-se de um conceito abrangendo tudo que pode acontecer na empresa. É uma
relação entre o que sai do processo produtivo e o tempo transcorrido.
Vale a pena notar a diferença entre o
investimento e o aumento da produtividade. No primeiro caso, falamos de
aumentar o cabedal de máquinas ou mesmo a preparação dos seus operadores (nesse
segundo caso, trata-se do Capital Humano). Inevitavelmente, isso se faz a um
custo. E como esperado, mais capital gera mais produto - embora em períodos de
crise ou conturbação política isso possa não acontecer.
Quando falamos de aumento de produtividade,
olimpicamente, podemos até ignorar tudo que possa explicá-la, sejam mais
máquinas, mais eficiência ou novas tecnologias. O que interessa é ser possível
ganhar produção. Esse é o grande atrativo da batalha para aumentá-la. Em outras
palavras é possível conseguir resultados a custo zero ou próximo disso.
Um exemplo centenário ilustra o que tentamos
dizer. As cidades industriais inglesas tinham infindáveis conjuntos de casas,
todas iguais. Mais ainda, permaneceram iguais por muitas décadas e o mesmo se
deu com o processo produtivo. Contudo, um pesquisador descobriu que, com a
passagem do tempo, as casas iam ficando mais baratas. Ou seja, a produtividade
dos construtores não parava de aumentar. Menos perda de materiais, menos tempo
para assentar os tijolos? No fundo, é a
prática que aumenta a produtividade.
Passemos a um exemplo da década de sessenta.
Uma usina de Minas Gerais recebeu a encomenda de fundir em aço os virabrequins
do Simca Chambord, cuja produção estava começando. Tratando-se de uma peça
difícil, durante muitos meses, as perdas estavam acima de 80%. Na França eram
de apenas 10%. Com um chefe curioso e uma equipe dedicada, a fundição de aço
trabalhou arduamente para aperfeiçoar o processo. Ao cabo de um par de anos, e
muita experimentação, as perdas haviam caído para um nível inferior ao da
França. Balanço: mesma tecnologia, mesma equipe, nada mudou que um observador
externo pudesse notar. Mas mudaram centenas de detalhes, quase imperceptíveis.
Cada um deles contribui para reduzir as perdas.
Ambos os exemplos ilustram os processos
típicos que levam a ganhos progressivos de produtividade.
Por tudo que nos dizem os antigos saberes e a
nova Teoria Cognitiva, a chave do aprendizado é a repetição. Aumentar a
produtividade? Basta continuar insistindo. Mas é um pouco mais complicado. Se
repetir bastasse, a produtividade estaria sempre aumentando, por todas as
partes, o que não acontece.
É preciso saber como buscar esses aumentos de
eficiência, monitorando a repetição, analisando suas imperfeições e investindo
no seu aperfeiçoamento. Na nossa indústria moderna, isso é feito regularmente.
Testemunho é o crescimento das Universidades Corporativas, tal como demonstrado
pelas pesquisas de M. Eboli, da FIA/USP.
Contudo, é preciso que se queira aumentar a
produtividade, o que pode não ser o caso nas empresas atrasadas.
A otimização dos recursos reais
Maurício Roscoe
A boa
utilização de recursos deveria ser um dos principais objetivos de todos nós,
pois é através dela que poderemos atingir melhor qualidade de vida e felicidade
para todas as pessoas, bem como a evolução cultural da sociedade em um ambiente
ecologicamente saudável e harmonioso. Um grande passo evolutivo estará sendo
dado à medida que as pessoas se aperceberem que (1o) colaboração e
harmonia, ao invés de competição e atritos intergrupais, são a chave para um
futuro melhor e que, (2o) apesar dos recursos monetários serem uma
importante ferramenta econômica, é com recursos reais que fazemos as coisas.
Quando atingirmos esta mudança de paradigma, estaremos mais próximos de
alcançar um mundo melhor, mais rico, e com melhor distribuição de renda.
Colaboração e harmonia, ao invés de competição e
atritos intergrupais, são a chave para um futuro melhor.
O Brasil vive hoje um momento bastante delicado e
vemos uma tendência ao crescimento do número e intensidade de atritos
intergrupais. No entanto, como a metodologia da qualidade nos ensina, ao invés
de tentar achar “culpados”, deveríamos focar na busca das causas fundamentais
dos problemas de nosso país. Precisamos encontrar novas e melhores soluções,
mais inteligentes e evoluídas, para a gestão das questões sociais, políticas e
econômicas, para criarmos uma nova civilização digna desse nome.
E esse é um
desafio não apenas para os governos, mas para toda a sociedade. Assim como,
segundo Clemenceau, a guerra é uma coisa muito complexa para ser deixada só na
mão dos militares, a política, a economia, a infraestrutura, a ecologia, e as
questões sociais são questões por demais importantes para serem delegadas
apenas aos políticos, economistas, engenheiros, ecologistas e sociólogos.
Dificilmente os especialistas são capazes de resolverem sozinhos os problemas
macro, nos quais diversos aspectos são interligados em sistemas complexos. Cabe
a toda a sociedade e, assim, a cada um de nós, trabalharmos em harmonia para a
solução dos problemas que nos afligem.
Neste ponto,
acredito que a metodologia da Qualidade, que tanto auxiliou no desenvolvimento
tecnológico, pode ser adaptada a esse novo desafio: o de criar um país mais
inteligente, mais eficiente, ecologicamente sustentável, e, também, mais
fraterno e mais feliz. O novo paradigma precisa da visão global e sistêmica que
a Qualidade pode trazer. A metodologia da Qualidade nos ensina a utilizar melhor
a motivação, a criatividade e a inteligência de todos os colaboradores, num
jogo de ganha-ganha, para maior produtividade e qualidade dos produtos e
serviços. Utilizando grupos de trabalho multidisciplinares, focados no objetivo
comum de atuar nos problemas fundamentais de nossa sociedade e buscar o
desenvolvimento brasileiro, podemos transformar nosso país.
Já realizamos muito, no passado: Juscelino Kubitschek, com sua intuição de estadista utilizou-se
de equipes qualificadas, muitas multidisciplinares. Cuidou da infraestrutura de
transportes, principalmente estradas de rodagem e estradas de ferro. Dedicou
atenção especial à energia, com o planejamento e execução de barragens e linhas
de transmissão. Cuidou da industrialização, principalmente através da Indústria
automobilística. E principalmente, numa quebra de paradigmas, construiu
Brasília, o que permitiu ao Brasil enxergar e, posteriormente, conquistar com
outros estadistas as riquezas do Brasil Central. Tudo num clima de colaboração
entre governo, empresas e sociedade.
Da intuição
perceptiva de cada um de nós depende a solução dos problemas que estamos
vivendo e que pedem solução. E não podemos mais ter o posicionamento infantil
de achar que apenas um bom líder nos salvará. Cada qual pode evoluir para esse
“egoísmo inteligente” de perceber que, se o país for bem, todos teremos menos
riscos e mais oportunidades. Sim, podemos ter essa visão bifocal de continuar
buscando os nossos interesses, mas enxergando, também, a importância da
contribuição de cada um para a evolução da sociedade.
É preciso
focar na busca das causas fundamentais dos problemas de nosso país. E, baseado
nesta análise, mobilizar recursos para realizar tais prioridades.
É com
recursos reais que fazemos as coisas
Sempre que
se fala em recursos há uma grande confusão entre recursos reais e monetários.
Para esclarecer este ponto, imaginem que tivéssemos à nossa frente o desafio de
colonizar um novo planeta. Logicamente, não adiantaria absolutamente nada se
enviássemos para lá apenas milhares de espaçonaves cheias de dinheiro. Isto
porque o dinheiro, nada mais é do que um instrumento para facilitar transações
e, consequentemente, a alocação dos recursos reais. Mas, é fundamental que
tenhamos sempre em mente que fazemos as coisas é com recursos reais.
Recursos
reais são a terra e todos os recursos naturais: sol, água, a capacidade de
gerar energia, os animais, os vegetais, os minerais, toda a biosfera. São
também as fábricas, os equipamentos e a infraestrutura (o saneamento básico, os
sistemas de abastecimento de energia, de transporte e de logística, de
comunicação, etc.). São ainda as pessoas, os conhecimentos, a tecnologia e as
informações. A capacidade de observar, de dialogar, de bem ouvir, de exercer a
diplomacia, de entender, planejar, motivar e executar também são recursos
reais. Da mesma forma, o são as ciências, a capacidade de pesquisar, de
refletir, de bem gerenciar.
Deve ser
monopólio do governo de cada país emitir moeda e regulamentar o crédito de modo
equilibrado, com o objetivo de otimizar a mobilização dos recursos reais para
realizar bem as coisas que precisam ser feitas, focando as prioridades do país,
de suas regiões e municípios. Note-se que recursos monetários e creditícios são
importantíssimos para facilitar o dinamismo e priorizar a mobilização dos
recursos reais, com equilíbrio, ou seja: evitando o superaquecimento e a
ociosidade desses recursos reais. A
ociosidade, ou subutilização, de recursos reais (especialmente do mais nobre
deles que são as pessoas e sua capacidade de aprender e de fazer), ao lado de
tantas coisas por fazer, é um desperdício enorme. No Brasil de
hoje, 14 milhões de desempregados representam desperdício de, no mínimo, 600
bilhões de reais ao ano. Isto sem levar em conta o subemprego e o
estrangulamento do mercado interno decorrente da redução de despesas por parte
destas pessoas e de suas famílias, nem tão pouco o aumento na despesa do
governo com a saúde de tais famílias.
Cabe aos governos
federal, estaduais e municipais planejar seus orçamentos de modo a alocar
verbas e recursos a cada um dos projetos prioritários. E, sempre que houver
recursos reais ociosos, como o caso de desemprego em massa, o governo pode, e
deve, emitir moeda e regulamentar o crédito com o objetivo de atuar nos
problemas fundamentais do país.
Dentro da
ideia de otimização dos recursos reais, uma coisa importante é a delegação
maior de poderes aos municípios, para poderem realizar seus projetos
prioritários. Como temos visto, a excessiva concentração em Brasília não tem
ajudado muito a otimização de recursos. O sistema de muita concentração
infantiliza a sociedade. Brasília deve se concentrar nos projetos macro, que
impactam diferentes estados e/ou o país como um todo (ex.: recursos hídricos,
sistema viário, rede de navegação, etc.).
Nos anos 50,
José Maria Alkmim, o então ministro da Fazenda do presidente Juscelino
Kubitschek, emitiu títulos de crédito (que na época foram chamados popularmente
de “alkimetas”). As alkimetas foram usadas pelo governo para pagar as obras de
infraestrutura. As empresas que as recebiam podiam pagar fornecedores com as
mesmas e assim sucessivamente. Além de servir como moeda em transações
comerciais, as alkimetas podiam ser usadas para pagar impostos. Na época, esta
solução possibilitou um grande avanço na economia brasileira. O mesmo artifício
poderia ser empregado hoje para sairmos da crise econômica em que o país se
encontra.
Ao
observarmos os dados comparativos do PIB per capita da Coreia do Sul e do
Brasil nas últimas décadas, fica claro como planos de desenvolvimento bem
definidos e consistentes podem transformar um país. A partir de 1962, a Coreia do
Sul passou por uma série de planos quinquenais visando o desenvolvimento econômico
do país. Focando em educação, pesquisa e tecnologia, em menos de meio século, a
Coreia do Sul
passou, de um país pobre e agrícola, a um dos países mais ricos e
industrializados do mundo.
Há quem
alegue que tal salto de desenvolvimento só foi possível graças ao regime
ditatorial. No entanto, acredito que se a sociedade brasileira se mobilizar,
através de grupos multidisciplinares, com o objetivo comum de solucionar os
principais problemas que nos afetam e buscar o desenvolvimento de nosso país,
podemos obter um crescimento ainda maior do que o obtido pelos sul-coreanos.
O Brasil se
encontra em um momento muito delicado de sua história. A menos que governo e
sociedade se mobilizem de modo a otimizar a utilização de recursos reais em
prol do desenvolvimento do país, corremos o risco de caminharmos para novas
décadas perdidas. Utilizando grupos de trabalho multidisciplinares focados no
objetivo comum de atuar nas causas fundamentais dos problemas de nosso país e
buscar o desenvolvimento brasileiro, podemos transformar o Brasil no “país do
futuro”, com o qual todos nós sonhamos.
A improdutividade do
Brasil Velho
Cláudio de Moura Castro
Estamos diante de um
enigma. Por que a nossa produtividade é baixa?
Não é difícil decifrar. A resposta está no
passado. Não nos damos conta de como era atrasado o Brasil de outrora. Entramos
no século 20 com mais de 90% de analfabetismo. Tudo era primitivo e precário.
Até o final do século 19, chegava-se à província mais rica do Brasil, Minas
Gerais, ao cabo de muitos dias de viagem em lombo de burro, por caminhos
péssimos e penando com a total ausência de hospedarias ou restaurantes.
Importávamos manteiga da Dinamarca, sapatos
da Inglaterra, banha de porco dos Estados Unidos e palitos de Portugal.
Na capital da República, nos anos cinquenta,
faltava água, faltava luz, faltava manteiga, faltavam ovos e sabe-se lá o que
mais.
Parte do problema é que somos descendentes de
sociedades pouco afeitas à tecnologia. Na segunda década do século 19, o
geólogo W. Eschwege passou um bom tempo em Ouro Preto (Então cidade de Vila
Rica). Comentando suas conversas com mineradores de ouro, registra seu espanto
diante do nulo interesse deles em adotar técnicas mais produtivas.
Para resumir, começamos em níveis
baixíssimos. Sendo assim, não se poderiam esperar padrões melhores de
produtividade. Mas ao longo dos anos, o Brasil melhorou e a produtividade
cresceu.
Porém, não o bastante, por culpa do peso do
Brasil Velho no PIB. Em outras palavras, convivem no país uma economia moderna
e que até pode ser pujante, com uma herança arcaica, na forma de um aparato
econômico condenado à improdutividade. O capital físico precário é a
consequência de uma visão de mundo atrasada.
Gilberto Freire dizia que, até a vinda da
Família Real, no início do século XIX, o Brasil não era um país ocidental.
Predominavam as influências indígenas e africanas. Desencadeia-se, desde então,
uma progressiva aproximação à Cultura Ocidental. Esse processo ainda está
incompleto no presente.
É possível prosperidade sem modernidade?
Há os que sonham com uma vida mais simples,
despojada, impondo menos sacrifício à força de trabalho. Com muito menos
esforço se conseguiria o nível de consumo necessário para viver com dignidade.
Mas essa visão não resiste à realidade do mundo presente.
Para o bem ou para o mal, a sociedade
brasileira valoriza muito os bens materiais. Ou seja, esposa gostos
consumistas. Todos querem ter tudo. Portanto, a máquina econômica precisa rodar
com relativa eficiência, para que produza o que querem os consumidores, bem
como a renda para satisfazer aos sonhos de consumo.
Na teoria, seria possível abrir mão dos
confortos e da qualidade de vida oferecidos pelo gigantesco leque de produtos e
serviços que dispomos hoje. De fato, Butão caminhou nesta direção. Mas é uma
mudança de rumo totalmente irrealista e na contramão do que almeja grande parte
da sociedade. Quem vai abrir mão do seu celular, geladeira e televisão? Ou dos
antibióticos?
Quaisquer que sejam os méritos filosóficos ou
práticos dos confortos modernos, produzi-los têm suas exigências. Não foi por
acaso que os países gestados na Cultura Ocidental, ao mesmo tempo, deram um
salto nos seus padrões de consumo e desenvolveram os hábitos, atitudes e
valores que têm. Por tentativa e erro, as pessoas foram sendo ajustadas para
fazer face aos ritmos e estilos dos processos produtivos contemporâneos. E o
maior salto foi diante das exigências da Revolução Industrial.
Voltando ao tema, em termos bem singelos,
para produzir o que a sociedade quer consumir é necessário que os participantes
do setor produtivo exibam valores, hábitos e atitudes muito particulares e
moldados para atender às organizações produtivas existentes, seja no engenho de
cana, na clássica Revolução Industrial ou na Manufatura 4.0.
Ao falar da ética protestante e do
desenvolvimento do capitalismo, Max Weber inaugura uma linha de pensamento,
buscando explicitar essa associação. Na década de setenta, A. Inkeles oferece a
uma caracterização mais completa desses valores. Torna-se comum e corrente a palavra
Modernidade.
Pesquisas bem conduzidas mostraram que um
sistema fabril eficiente está sempre associado a esta modernidade. Nas
sociedades que não a exibem, escasseiam os bons resultados na operação do que
consideramos uma indústria moderna e eficiente.
Estudos comparando a eficiência das
indústrias têxteis de vários países, na entrada do século 20, demonstram
justamente isso. Apesar de usar os mesmos teares que as fábricas inglesas e
dispor de mão de obra mais abundante, a produtividade das fábricas indianas
sempre foi bastante inferior. Segundo os autores, os operários daquele país não
exibiam os traços dos ingleses. Não se comportavam de forma equivalente e não
valorizavam os hábitos e valores embarcados na Revolução Industrial.
A discussão acima serve de prefácio para o
ponto mais central do presente ensaio. Já se escreveram livros com títulos de
Brasil: Terra dos Contrastes ou Os Dois Brasis. De fato, coexiste um Brasil
Novo e um Brasil Velho.
Felizmente, aos poucos, o Brasil Velho perde
espaço. Mas ainda é muito substancial. E como tentaremos demonstrar, os
problemas de baixa produtividade estão associados ao Brasil Velho. É lá que
reside o problema.
Criar mais um curso de Manufatura 4.0 para a
Embraer ou Gerdau é uma decisão importante e essencial para elas, mas
periférica, diante do desafio da nossa baixa produtividade que está alhures. E
de resto, estas próprias empresas se encarregam de tais movimentos.
Nosso desafio é a lastimável improdutividade
do aparato produtivo que opera sob o jugo do Brasil Velho, estampado nos
valores desse segmento da nossa sociedade. E não será patrocinando cursos de
Internet das Coisas que aliviaremos o problema. Aliás, não parece que cursos
sejam a resposta apropriada para lidar com esse lado velho da sociedade brasileira.
Retomando aos temas de Inkeles, viver e
trabalhar em uma sociedade contemporânea e produtiva requer valores congruentes
com suas exigências. Esses valores da modernidade não são detalhes ou
complementos que bonificam a produtividade. Pelo contrário, são da essência do
seu funcionamento. Nas nossas empresas velhas, as preocupações explícitas com
produtividade nem sequer chegam a entrar em cena, pois andam na contramão dos
hábitos e valores compartilhados nesse caldo de cultura arcaico.
Não é qualquer sociedade que consegue operar
organizações complexas, com produtos de alta complexidade, com muitos
trabalhando e divisão do trabalho acentuada. Da mesma forma que uma engrenagem
de uma máquina deve ser projetada para se encaixar em alguma outra, a mão de
obra que opera as empresas tem que ser sob medida para a natureza dos processos
produtivos. Cavar estradas na picareta e os velhos feitores são congruentes.
Mas a preparação de uma matriz por um ferramenteiro requer dele um conjunto de
valores e habilidades que não pertencem ao Brasil Velho.
No início da colonização portuguesa, os
índios brasileiros não se encaixavam no sistema fabril dos engenhos de cana.
Seu nomadismo, seus valores e sua visão de mundo eram incompatíveis com os
ritmos e normas do que hoje consideramos como uma indústria deveras primitiva.
De fato, os índios estavam mais ou menos no nível de organização social que
tinham as civilizações andinas, há três ou quatro mil anos.
Essas populações brasileiras, compostas de
indígenas locais e africanos, foram sendo progressivamente incorporadas em um
Brasil que se modernizava. Não pairam dúvidas de que essa evolução de valores e
atitudes é possível e ocorreu em bom ritmo. As boas firmas brasileiras são
manejadas por pessoas cujos antepassados vinham desses grupos sociais.
Não obstante, essa incorporação é ainda um
processo incompleto. Há uma gigantesca distância entre o operário da Embraer e
o peão da obra mais próxima. Vivem em
mundos diferentes e seus valores levam a comportamentos distintos.
O que será esse atraso cultural?
Nosso Brasil Velho tem valores incompatíveis
com aqueles requeridos para o progresso material oferecido pelas organizações
contemporâneas. Nessa linha, faz sentido concluir que alguns desses valores,
atitudes e aspirações são lesivos à materialização de nossas ambições. Seja
como for, as diferenças culturais têm raízes profundas.
“Vão acabar com a Praça Onze?” Com esta
frase, Herivelto Martins registra a decisão de acabar com a famosa Praça Onze,
no Rio de Janeiro. Estava no caminho da Avenida Presidente Vargas, rasgada em
1945. Beatriz Coelho da Silva publicou o livro Negros e Judeus na Praça Onze
(Editora Bookstar). Conta ela, no bairro viviam negros e judeus, ambos pobres,
dividindo ruas e casas, sem dificuldades ou atritos. Comerciavam e serviam
comida. Os negros faziam música. De
fato, ali nasceu o samba! Mas a diferença entre as duas culturas já se
manifestava, embora compartilhassem da mesma pobreza. Segundo a autora, “na Praça
Onze, havia seis jornais em ídiche e quatro instituições voluntárias judaicas:
a Federação Sionista, o Grêmio Juvenil Kadima, a sinagoga Beith Iaakov, a
Sociedade Beneficente das Damas Israelitas e o Centro Obreiro Morris
Wintschevsky”.
Mais de meio século adiante, podemos presumir
que os dois grupos sociais hajam tomado rumos muito distintos. Não pela cor da
pele ou por alguma elusiva diferença de cromossomas, mas pelos valores e
distintos graus de modernidade que já exibiam então, quando ambos eram pobres.
Nos imigrantes judeus da Praça Onze, vemos a força do Capital Social, a
valorização da educação e cultura e a tendência à participação política. Anos
depois, cada grupo encontrou o seu caminho. Os judeus subiram na sociedade,
ocupando posições confortáveis. Os negros pouco avançaram.
O episódio das “polacas” adiciona outro
elemento à mesma saga. Chegaram ao Rio e a São Paulo, na virada do século 20.
Eram judias pobres, maltratadas pelas crises europeias e pela falta de
alimentos. Saíam da Polônia com a promessa de casamento, mas na verdade,
chegavam como escravas brancas e viviam submetidas aos seus “cafetões”. Não era
apenas a pobreza da Praça XI, mas também o status baixo, pela profissão
exercida e pela limitação à sua liberdade.
Estudos sugerem uma trajetória parecida à dos
judeus da Praça XI. Compraram imóveis e algumas ficaram ricas, passando a viver
de aluguéis. Não por acaso, tinham também associações de ajuda mútua bastante
ativas e bem organizadas. De fato, diante do impasse de não poderem ser
enterradas nos cemitérios oficialmente católicos, construíram o seu próprio – o
do Rio sobrevive em Inhaúma.
Portanto, dentro da nossa agenda de entender
os obstáculos ao progresso, é imprescindível passar em revista e identificar
aqueles valores que parecem intrinsecamente associados ao progresso, sendo mais
fortes naquelas sociedades que mais avançaram.
A cultura (no sentido antropológico) da
sociedade brasileira era bem distante daquela compartilhada, já em séculos
pretéritos, pelos povos economicamente mais avançados, como os ingleses,
holandeses, suíços e alemães.
Sobre o assunto dos valores, há uma ampla
literatura. Talvez a obra mais representativa seja a de Alex Inkeles já citada
(A. Inkeles ; D. Smith, Becoming Modern,
Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1974). Não apenas descreve as
características da modernidade, mas usa pesquisas empíricas para medi-las e
correlacionar seus resultados com riqueza, em sociedades reais.
Para Inkeles, “a construção de nações e
instituições não passa de exercícios vazios, a não ser que as atitudes e
capacidades do povo caminhem passo a passo com as outras dimensões do
desenvolvimento. [...] É impossível para um Estado entrar no século 20, se o
seu povo continua a viver em épocas pretéritas” (Inkeles, 1974). Tal avanço é
lento e penoso, embora alguns grupos dentro da sociedade estejam mais abertos
para as mudanças. O autor se refere a nações africanas, mas é como se falasse
do Brasil Velho.
Quando lançamos um olhar histórico, podemos
identificar algumas sociedades que oferecem a qualidade de vida hoje
considerada desejável por quase todos os brasileiros. E vice-versa, é possível
arrolar aquelas incapazes de oferecer tais padrões para a grande maioria de
seus próprios cidadãos. Portanto, queremos saber que dimensões e valores estão
presentes nas primeiras e ausentes nas segundas. Quais desses atributos são
endêmicos nas sociedades materialmente bem-sucedidas e quais prevalecem
naquelas estancadas ou presas a níveis inaceitáveis de pobreza.
Para Inkeles, nas sociedades avançadas, estão
“pessoas capazes de observar horários, cumprir regras abstratas, julgar em base
de evidência objetiva e obedecer a autoridades legitimadas, não pela tradição
ou religião, mas pela sua competência técnica. [...] Os trabalhadores precisam
aceitar uma divisão de trabalho elaborada e a necessidade de coordenar suas
atividades com muitos outros. [...] As recompensas são baseadas em critérios
estritos de desempenho.”
A esse respeito, vale mencionar uma
afirmativa forte, feita por Alexander Gerschenkron, respeitado historiador e
professor de Harvard: “Industrial labor ... is not abundant but extremely
scarce in a backward country. Creation of an
industrial labor force that really deserves this name is a most difficult and
protracted process”(Inkeles, 1974).
Esta afirmativa não chamaria a atenção, não
fora referir-se às dificuldades encontradas no curso da Revolução Industrial da
Alemanha, nas últimas décadas do século 19. Nesse contexto, cita o escritor
alemão Schultze-Gaevernitz que sonhava com os operários ingleses na sua terra:
“o operário industrial inglês é o homem do futuro, [...] nascido e educado para
a máquina e que não podemos encontrar igual no passado”.
Estas citações mostram que o desafio não se
refere apenas à transformação dos nossos caboclos em operários industriais, mas
do mesmo desafio em qualquer sociedade agrária atrasada – como era também a
Alemanha.
Em resumo, o sucesso das nações hoje
avançadas está associado a certos valores, crenças e atitudes, anteriormente
caracterizadas por Max Weber, no seu clássico A Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo.
Mas como podemos culpar os peões desta obra,
se ninguém está lhes mostrando o certo, seja no profissionalismo, seja nos
valores? Em contraste, os que foram trabalhar fora se tornaram operários
competentes e totalmente enquadrados nos valores da Modernidade.
A
Construção Civil e o atraso
Cláudio
de Moura Castro
Nesse texto retornamos aos
valores da modernidade e perguntamos se estão presentes ou ausentes na
construção de uma casa, próxima à Belo Horizonte. É como se fosse um teste
empírico das ideias de Inkeles, mas aplicado em uma amostra de um.
Como já mencionado, nossa
construção civil engloba os extremos da produtividade. Indústrias modernas
operam com as tecnologias mais avançadas do mundo. Edifícios se erguem em pouco
mais de uma semana. Tecnologias BIM dão um salto, bem além do CAD/CAM. Projetos
arrojados se materializam, sem maiores dificuldades, incluindo barragens e
pontes. Mas são relativamente poucas as empresas que se enquadram nesta
categoria.
A maioria, em particular,
aquelas médias e pequenas, operam com tecnologias e níveis de produtividade que
se esperaria encontrar séculos atrás. Em uma discussão sobre improdutividade,
essas empresas têm que ser o foco das nossas preocupações.
Poderíamos também incluir na
presente análise um gigantesco segmento de pequenas e médias indústrias de
outros setores, igualmente atrasadas. Porém, não iria modificar as conclusões a
que chegaremos. Por isso, ficamos na indústria da construção civil, onde se
concentram as empresas mais toscas e primitivas da economia.
Há pouco menos de mil anos,
a construção civil era o setor de maior prestígio e onde se davam os grandes
saltos tecnológicos. Na época das catedrais góticas, os pedreiros (ou maçons, em
português arcaico), ao chegar de visita, eram recebidos pelos bispos locais. Os
novos oficiais prestavam exames rigorosos e não poderiam exercer a profissão
antes de passar por uma prova exigente, a construção de sua “obra prima” – que
era posteriormente exibida nas sedes das corporações.
Suas técnicas inovadoras
eram segredos bem guardados. Daí a criação da maçonaria, originalmente, uma
sociedade secreta desses profissionais. Portanto, status, tecnologia avançada,
normas rigorosas e organização detalhada eram elementos que não faltavam nessas
guildas.
Esta volta à época Medieval
pode ser confrontada com o que acontece hoje na construção civil. No seu
segmento inferior, é um conglomerado caótico de empresas, biscateiros e
terceirizados. Não devem lealdade nenhuma a qualquer organização. Operam na
fronteira da lei - de um lado ou do outro. Não há quaisquer vestígios de
profissionalismo na maioria dos operários e o domínio das técnicas é quase
sempre inadequado. Diante das orgulhosas corporações medievais dos pedreiros,
estão no extremo oposto da escala social.
Como consequência dessa
situação precária e desmoralizada, seu status é o mais baixo possível. Diante
da pouca estima que a sociedade tem pela profissão, os esforços de organizações
como o SENAI não chegam a bom termo. Quem se interessa pela profissão não tem
as condições de escolaridade para entrar nos cursos. Quem tem os anos de escola
exigidos foge dela, em busca de alternativas melhores.
O resultado é que se aprende
no local de trabalho, com quem já tem alguma experiência. Esta maneira de
adquirir uma profissão nada tem de errada. De fato, na Alemanha, Áustria e
Suíça, praticamente todos aqueles que têm uma profissão manual qualificada a
adquiriram no método do Mestre-Aprendiz.
É o celebrado Sistema Dual.
Quando o Brasil tinha um
ritmo de construção moderado, os antigos mestres, vindos de Portugal, Espanha
ou Itália, ensinavam o que sabiam aos seus aprendizes. Os ofícios passavam de
geração em geração. Contudo, o surto desenvolvimentista do país, no pós-guerra,
acelera o crescimento, inclusive, com grande dispersão geográfica. Nesse ritmo
tão elevado, não há suficientes mestres, corretamente preparados, para produzir
aprendizes bem formados.
O resultado é a forte
heterogeneidade dentro dos canteiros de obra. Por sorte de encontrar um bom
mestre, ou por iniciativa própria, alguns conseguem atingir níveis
satisfatórios. Mas são poucos.
Daí nasce a improvisação e a
criação de ciclos perversos. Os aprendizes aprendem com quem não conhece bem o
ofício. As deficiências deles são herdadas pelos seus aprendizes que adquirem
as mesmas falhas dos seus mestres.
O círculo vicioso se fecha,
com a queda de status da profissão. São atraídos para ela apenas jovens que não
têm quaisquer aspirações ou ambições. Tampouco, têm a escolaridade para
aprender os aspectos mais técnicos do ofício. E naturalmente, o ritmo de
mudança tecnológica se acelera, aumentando a distância entre a tecnologia
oferecida na loja e a dominada pelo operário.
Os encanadores não sabem
instalar uma conexão PEX. Os pedreiros não conseguem lidar com light steel
frame. Os eletricistas continuam usando fita isolante e não entendem os
novos modelos de disjuntores. E por aí afora.
Operários desmotivados,
desconhecimento de processos de trabalho, ausência de profissionalismo e
descompromisso com o trabalho fecham ainda mais o círculo vicioso do baixo
status e perfil profissional inadequado.
A precariedade dos mestres
de obra completa o desencontro. Com pouca escolaridade e formação improvisada, são
um freio às melhorias da produtividade, mediante a incorporação de novas
técnicas ou equipamentos. Como são despreparados, sabotam a sua introdução,
pelas mãos de jovens menos mal preparados mas que estão sob a sua supervisão.
O estilo ‘machão’ de liderança
afeta até a segurança da obra, pois consideram coisa de ‘maricas’ portar
capacete. Não por acaso, a taxa de acidentes na construção civil é assustadora.
Uma pesquisa no Paraná, com
grupos focais de jovens de periferia, permitiu capturar com certa riqueza de
detalhes o perfil dos jovens recrutados pela construção civil.
O estudo mostra claramente,
os operários da construção civil estão no nível mais baixo da sociedade
organizada. São pobres, moram mal e não têm a energia psíquica para erguer-se e
superar sua condição. Quando o filho não se dá bem na escola e se evade, o pai
manda para a obra, para não “aprontar”. Lá, ele estará distante das más
companhias. Mas isso não é o início de uma carreira promissora.
A construção tende a ser o
primeiro emprego daqueles de origem rural e que migram para as cidades. Os que
possuem um pouquinho mais de talento ou iniciativa buscam outro setor da
economia.
Pesquisando o sonho desses
jovens, os entrevistadores puderam verificar que são inexistentes. Em vez de
sonhos de carreira, desejam possuir um tênis, um celular e um boné. O trabalho
na construção é percebido como uma chaga ou punição. É o que foi possível
conseguir.
É o império do Brasil Velho,
populado por oriundos de comunidades periféricas muito pobres e toscas. Mas é
importante ressaltar, o problema não é a pobreza, é a síndrome do Brasil Velho.
A presente insistência nas
diferenças de valores é mais do que proposital. Não é a pobreza que mais
maltrata o andar de baixo da sociedade brasileira. Pobreza é um acidente de
percurso para aqueles com as orientações características da Modernidade. Será
superada. Mas é uma maldição para os que professam os valores do Brasil Velho,
mergulhados em um círculo vicioso que não se desfaz.
O canteiro de obras improdutivo
O tema deste ensaio é
produtividade. Contudo, para explicar a sua fragilidade no Brasil, foi
necessário dar esta grande volta nos labirintos do atraso – território que
chamamos de Brasil Velho.
Nesta seção, faremos um
duplo exercício. Revisaremos as pautas da modernidade, seguindo uma
classificação próxima, mas não idêntica à de A. Inkeles. Ao mesmo tempo,
confrontaremos esses valores com aqueles que se podem perceber no andamento de
uma obra cujos operários são do Brasil Velho.
Tal imbricação – entre
valores e o mundo da obra - permite captar a distância que existia entre os
operários que construíram a casa e os padrões de Modernidade associados à boa
produtividade. Porém, não se trata de uma pesquisa obedecendo aos cânones
metodológicos usuais, mas uma mera ilustração concreta do nível de atraso desse
segmento do Brasil Velho.
Trata-se de uma construção
real, administrada por um engenheiro de boa vontade, honesto, precariamente
formado, mas sucumbido pela trama invencível do atraso de seus terceirizados.
Aqui chegamos ao desenlace
final do argumento tecido no presente ensaio. Para obter ganhos de
produtividade, é necessário que o esforço adicional seja percebido, não apenas
como desejável, mas imperativo para a promoção pessoal de cada um. E por
consequência, de todos. Como ilustraremos com os exemplos, falta na obra o
mindset que levaria a esta busca, sistemática e persistente. Não se tratam de
ideais de uma sociedade perfeita mas a busca racional do interesse próprio, em
um plano de longo prazo,. Na verdade, essa meta inexiste e nem sequer entra no
radar das pessoas que lá trabalham. Portanto, antes que se supere visão de
mundo destas pessoas, nada de bom vai acontecer.
A tese: Da ética do
cotidiano ao Capital Social
A Reforma Protestante traz
uma ética rigorosa e exigente, impondo no cotidiano padrões de honestidade
muito estritos. Condiciona a salvação da alma a um comportamento dentro de
normas morais rígidas e explícitas. De fato, nas sociedades em que o
protestantismo de Lutero e Calvino ganhou espaço, os padrões de moralidade
individual avançaram muito, em comparação com aqueles dominado pelo
catolicismo.
Interessante registrar que,
recentemente, foram elaborados indicadores de moralidade pública, comparando
países. Os números demonstram duas proposições. A primeira é que os campeões de
moralidade são os países protestantes - entre os dez primeiros, estão nove (e o
décimo não é católico). A segunda é que todos eles são países ricos. É
inevitável a pergunta: os países são ricos porque são honestos ou vice-versa?
Como historicamente o protestantismo veio antes da riqueza, parece que a
primeira proposição tem mais chances de ser verdade.
Para evitar mal-entendidos,
o protestantismo não é condição necessária para o progresso material. Sociedades
católicas prosperaram e os países do extremo oriente professando diferentes
religiões estão avançando céleres. Mas como este assunto ganhou visibilidade
com as análises de Max Weber sobre o protestantismo, é a maneira mais
conveniente de introduzi-lo.
Em sociedades onde esses
padrões morais vicejam, o sistema capitalista funciona melhor. Por conseguinte,
desfrutam de mais riqueza. De uma perspectiva estritamente pragmática, seja
qual for a razão, agir certo, cumprir a palavra e respeitar os direitos e
propriedades alheios são práticas que promovem o avanço de todos.
J. Stuart Mill já tinha esse ponto claríssimo no seu
manual de Economia Política: “The advantage of mankind of being able to trust
one another penetrates into every crevice and cranny of human life; the
economical is perhaps the smallest part of it, yet even this is incalculable”. Para
ele, um maior grau de confiança mútua reduz os custos de advogados, do
judiciário e do sistema penal. Um traço desta moralidade
coletiva é que, em uma sociedade em que tal comportamento é predominante,
podemos confiar nos outros.
Para Jane Jacobs, “a
cooperação é provavelmente o mais importante dos universais. Somos animais
sociais e tudo que somos depende de cooperação” Mas ela adverte, “a confiança
só é possível onde prevalecem hábitos de honestidade”
Confiar significa acreditar
que a outra pessoa, se lhe for oferecida a oportunidade, não se comportará de
uma maneira que rompe os combinados e nos prejudica. Confiamos em alguém quando
nutrimos uma expectativa de seu comportamento ético. Em oposição, desconfiamos,
quando tememos ser surpreendidos pelo oportunismo.
Ou seja, se todos agirem
como esperado ou combinado, a sociedade funcionará muito melhor. No extremo
oposto, sem algum grau de confiança não pode haver trocas e será mínima a
cooperação entre quaisquer agentes, ou mesmo empresas. A filmografia de
Hollywood é pródiga em cenas de negociações entre bandidos. São tantas
precauções e tanta a má fé de parte a parte que muito pouco se logra concluir,
ainda que a transação possa ser de interesse mútuo.
A importância da expectativa
de que os outros vão cumprir o esperado ou prometido foi percebida por Kenneth
Arrow, prêmio Nobel de Economia: “It can be plausibly argued that much of the
economic backwardness in the world can be explained by lack of mutual
confidence”. De fato, aquelas formas de organização da economia que se
mostraram mais produtivas requerem um grau elevado de confiança.
Resumindo, são óbvias as
vantagens de uma sociedade em que um pode confiar no outro e que as pessoas
estão dispostas a colaborar, na crença de que os outros não irão desapontar. É
o pressuposto da reciprocidade. Essa dupla ideia de confiar e colaborar é a
essência do conceito de Capital Social. Estudo após estudo mostra as vantagens
que uma sociedade deriva ao exibir um grau elevado de Capital Social.
A antítese na obra: o
descumprimento e a desconfiança
O primeiro construtor foi de
grande competência para trombetear suas qualidades e seu conhecimento de
técnicas de Light Steel Frame. Contudo, a obra avançou em velocidade glaciar,
as semanas se passavam e nada acontecia. Não prestava contas e tampouco
submeteu cronograma sério.
Mais adiante, pediu um
adiantamento, para comprar vigas metálicas, a serem usadas na montagem do
chassi da casa. Em seguida, desapareceu, carregando consigo, pelo menos, uns
trinta mil reais de adiantamentos e sem prestar contas de nada. O caso foi para
a justiça e lá ainda se encontra, pelas razões já comentadas ao falar de Custo
Brasil.
O construtor foi substituído
por um outro, bastante honesto. O problema maior, contudo, era a sua equipe,
fraquíssima em todos os azimutes. Os combinados e prometidos não se
materializavam, como é essencial em uma empresa moderna. A consequência era não
cumprir o combinado com o proprietário da obra.
Segundo a filosofia do
engenheiro, esses contratos terceirizados não deveriam durar muito, pois a
relação pessoal vai se deteriorando. Na prática, foi isso que aconteceu. Mas
algo parece estar profundamente equivocado nessa equação, pois uma relação
profissional não tem razão para ser um produto descartável, trocado na próxima
obra, por desgaste da convivência. Desentendimentos resultam de falta de
clareza ou franqueza no que foi combinado.
Como nada andava como sonhado,
as brigas com o gesseiro se repetiam, exatamente como acontecia com o
serralheiro e com o pintor. O serviço não acabava ou ficava mal feito. Logo, o
construtor não pagava, alimentando o ciclo dos desentendimentos. Mais de uma
vez o homem do drywall pediu ao proprietário para interceder junto ao
construtor, para que pagasse os atrasados. Mas tinha razão o construtor, pois a
qualidade não correspondia às expectativas.
Onde estaria a raiz do
desgaste? “Profissionalismo” é o
conceito que captura tudo que está faltando nesta equipe. No caso, a falta de
profissionalismo. O desempenho dos funcionários não é o esperado, seja na
qualidade do trabalho, seja no cumprimento dos combinados. O construtor é
pressionado pelo proprietário, vai se irritando e tem que exigir o que o peão
considera como uma filigrana desnecessária. Azeda tudo.
Em muitas situações,
tentou-se, por todas as maneiras, conseguir alguém que fizesse um serviço
qualquer. Ou não atendiam o telefone, ou não podiam, ou não se interessavam ou
prometiam e não apareciam.
O construtor se vê como
vítima de um mundo que ele não consegue controlar. Nada acontece como ensinado
no seu curso de Engenharia. Ele não esconde seu desconforto e desânimo, diante
da esquizofrenia entre o seu mundo e o que seria esperado em uma construção
séria. Se o encarregado disse que viria e não veio, isso é o normal, é quase
previsível. Mas em um mundo profissional, se disse que viria, é inaceitável que
não venha. Diante das frustrações de ver tudo sair ao contrário, o construtor
perde as estribeiras e bate boca com os peões. Urra, fica rubro de ódio, as
veias saltam. Talvez até suspeite que isso possa ser contraproducente, mas
descarrega, na esperança de livrar-se das raivas.
Cumprimento do prometido,
compromisso assumido, prazos, nada funcionava. A ética do cotidiano fracassava
a cada momento. A confiança entre as partes andava sempre por um fio – que as
vezes se partia. É o profissionalismo, ausente nesse Brasil Velho.
A tese: A busca racional do
bem-estar material e do ganho
As sociedades economicamente
bem-sucedidas são aquelas em que há uma clara legitimidade para a busca dos
ganhos materiais. Para ser bem-sucedido, é preciso trabalhar com afinco,
dedicar-se a fundo e usar a inteligência. E o objetivo explícito é desfrutar os
resultados desse esforço. Não é para salvar almas ou punir o mal. Na contramão
de Santo Tomás de Aquino, o rendimento ou o lucro não são vistos como
pecaminosos. Pelo contrário, são resultados legítimos e merecidos do esforço.
Um corolário desta percepção
é ser o ganho econômico visto como a marca do sucesso. Nosso “capitalismo
envergonhado” não é uma boa receita para a prosperidade.
Mas ser bem-sucedido não é
passar a perna nos outros e sim fazer melhor ou produzir mais. Faz parte dos valores da modernidade
acreditar que não é preciso que os outros percam para que nós ganhemos – não é
um jogo de soma zero. No capitalismo saudável, o lucro é o prêmio legítimo para
o esforço e a competência.
Ainda na mesma linha, um
Pastor de nome Baxter exortava seu público a “ter o tempo em alta estima e ser
cada dia tão cuidadosos em não perder o seu tempo tanto quanto o são para não
perder seu ouro e prata” No léxico atual, time is
money.
A busca sistemática do bem
estar material é condição sine qua non
para a produtividade. Por tudo que sabemos, os maiores avanços no bem-estar
material dos trabalhadores se deram onde, assiduamente, tais preceitos foram
praticados. Ou seja, a fórmula não é boa apenas para os capitalistas.
A antítese: o mundo
irracional do canteiro de obras
Na lógica da Modernidade,
deve haver uma maneira melhor e mais eficiente de realizar qualquer serviço. E
esta maneira deve ser rotineiramente buscada. Aliás, essa é a ideia-mãe do
pensamento de F. W. Taylor. Se assim for feito, cedo ou tarde, quem mais produz
receberá maiores proventos.
Ao cavar os buracos para as
fundações, não se encontrava rocha sólida. Mas se era só saibro, por que não
fazer as sapatas enterradas a um palmo de profundidade, em vez de cavar por
meses, para localizá-las a três metros e meio abaixo da superfície? Na pior das
hipóteses, por que não parar de furar, depois do primeiro buraco revelar que
não havia rocha? As sete fundações restantes passariam a ser em covas rasas.
Mas assim não foi feito.
E as tolices não param aí. A
garagem/quarto de serviço tem alicerces condizentes com um edifício de cinco
andares – pelo menos. O projetista desenhou, o engenheiro abençoou, o
construtor executou. Ninguém achou nada errado. Exceto o proprietário que paga
a conta. Durante a construção, reclamou, mas a entropia do sistema não permitiu
uma correção de rumo. Ninguém se entendia com ninguém.
Com os ângulos da construção
houve um grande tropeço. Pela definição, um retângulo tem ângulos de 90º. Fiéis a esses sábios princípios, arquitetos
não desenham casas com 89º nas esquinas. Mas foi isso que aconteceu, não era um
retângulo, mas um losango. O montador da estrutura metálica empurrou daqui e
dali, para alinhá-la na laje que encontrou. Mas na hora das telhas de lata,
perfeitamente retangulares, o desvio apareceu e criou problemas.
Quando começa a pintura, o
desperdício está por todas as partes. As latas de tinta dormem sem tampa,
obrigando a abrir uma nova na manhã seguinte. Igualmente, os pincéis não são
lavados, requerendo usar um novo, pois amanhecem insalváveis.
Vez por outra, entorna uma
lata de tinta, lá se vai ao chão o seu conteúdo – pareceria que pintores
profissionais já teriam superado esse estágio. Mas quando isso sucede, é mais
prático limpar imediatamente, pois dá menos trabalho e elimina melhor os
resíduos que sobram na superfície. Mas não é isso que acontecia. Fica lá a
tinta esparramada. Bom tempo depois, surge um personagem mais jovem, esfregando
uma espátula cega na tinta seca, com resultados duvidosos. Algumas destas manchas ainda estão visíveis.
Ao pintar o que precisava
ser pintado, entra na trajetória do pincel tudo que está por perto. A fita
crepe só aparece de forma bissexta. A precisão é obtida pela firmeza da mão que
empunha o pincel. Só que a mão não é firme, lambuzando o que não é para ser
pintado.
O serralheiro seguiu
fielmente os desenhos do projetista. Tanto é assim, que fez sapatas impossíveis
de serem instaladas, pois não tinham janelas para verter o concreto, na hora de
chumbar. Voltam ao maçarico, para abrir os buracos necessários.
Uma obra requer centenas de
materiais diferentes. Cada um será usado na hora certa, sob pena de atrasos se
não estiver presente. O mesmo com o leque de competências profissionais
necessárias. Portanto, a logística de uma obra é delicada e complexa. É a
diferença entre uma obra com custos razoáveis e prazos cumpridos e uma outra
onde nada é previsto e tudo pode acontecer.
Mais de uma vez por dia, o
construtor pegava o carro, para comprar os parafusos ou ferragens que faltavam.
E as semanas em que nada acontecia e a obra ficava deserta? Instrutivo notar
que não era uma obra por administração, nas quais quanto mais se gasta, mais o
construtor ganha. Era um contrato de preço fixo, portanto, o prejuízo era dele
próprio.
Quem trabalhe com os peões
que frequentaram a obra, se tentar planejar, precisa um coração resistente. O
encarregado não trouxe os operários porque estava ameaçando chuva. O
eletricista combinou vir, mas foi a um batizado. O telefone do bombeiro não
responde. O caminhão de concreto fundiu o motor na subida do Condomínio. A
telha prometida não chegou. O serralheiro diz que não vem se não receber
pagamento – pelo que não fez.
Em suma, muito do que
acontece de ruim pode ser classificado como falta de racionalidade, de todas as
partes. Há maneiras melhores de se construir, mas não são usadas. Suspeita-se
que nem sequer sejam consideradas.
A tese: Presente versus
futuro
Quanto mais atrasado ou
desorganizado o grupo social, maior a relutância em abrir mão da comodidade ou
do consumo presente, em prol de benefícios futuros. Sociedades atrasadas
preferem as vantagens no presente, desvalorizando os ganhos futuros,
resultantes do uso judicioso da poupança.
Essa disjunção é ilustrada pela fábula, em que a cigarra é despreocupada
com o futuro e a formiga poupa, preparando-se para dias piores.
O crescimento requer abrir
mão do consumo presente, ou seja, poupar, para desfrutar um consumo mais
abundante no futuro. Inclui o indivíduo que poupa para comprar uma geladeira e
o empresário que compra novas máquinas para a sua fábrica, às expensas de uma
retirada menor no presente. Igualmente, é o mecânico que compra uma máquina
mais cara – e abre mão de construir uma churrasqueira - na esperança de que se
torne mais produtivo com o novo instrumento.
Recentemente, apareceu um
estudo interessante e que ilumina a nossa tendência de não prover para o
futuro. Foi perguntado a pessoas de diferentes países quanto precisariam
receber dentro de um ano para abrir mão hoje de uma quantia de cem unidades
monetárias. A mesma pergunta foi repetida, para uma espera de dez anos. Dentre
as dezenas de países incluídos na pesquisa, próximo da Rússia, o Brasil tem o
maior índice de imediatismo. Não abrimos mão dos benefícios imediatos, mesmo para
tê-los mais generosos no futuro. Países anglo-saxões, China e
Japão estão no outro extremo. Em linha com o que se sabe acerca do impacto da
educação para mudar nossas preferências, o estudo também registrou que os mais
educados são os mais dispostos a adiar o consumo presente.
A antítese: na obra, o que
conta é o presente.
Pensar nas consequências
futuras das ações presentes é um traço clássico da Modernidade. Mas não foi
isso que se observou na obra.
Os peões que apareciam na
obra eram um exército de maltrapilhos. A primeira reação é ficar com pena de
gente tão desprovida de tudo. Mas não é tão simples, pois quase todos têm o seu
próprio automóvel. Não é o bolso deles que vai mal, a cabeça é a causa dos
desacertos, já que seus valores estão estacionados em sociedades
pré-industriais de séculos pretéritos. O bolso é a consequência.
Uma vez, o gesseiro apareceu
na obra, muito bem vestido e pilotando uma moto Yamaha Fazer nova. Por que moto
nova, roupa nova e ferramentas velhas?
Em vez de uma serra para drywall,
era usada uma lâmina de serra para metais. O resultado é que nem sempre ocorria
o encontro mágico das caixas elétricas pregadas nas vigas com o seu recorte no drywall.
Em muitas tomadas, o espelho não chega a cobrir o buraco.
A cada dia, presenciava-se
uma orquestra desafinada e com instrumentos avariados. Onde está a tesoura para
as telhas, as chaves de fenda do tamanho certo, o alicate próprio para
desencapar fios? Ainda menos, uma escada correta. Nada disso aparecia na obra.
Quando ficam cegas, as brocas vão para o lixo. O construtor confessou que
compra as piores ferramentas, pois somem ou são destruídas antes.
Qualquer loja de ferragens
vende uma serra para drywall, muito parecida com uma faca de cortar pão.
Não chega a 20 Reais. Os operários usavam uma lâmina de serra para metal, presa
em um pedaço de pau, com um só parafuso. Não havia esquadros, compassos ou
outras ferramentas de medida. No máximo, um fio de prumo, sempre largado pelo
chão.
E os formões, para instalar
os alisares das portas internas? O peão despeja no solo, literalmente, o
conteúdo da caixa de ferramentas. De cambulhada caem dois formões que nunca
haviam sido afiados, como admitido por ele. Aliás, ficou admirado quando lhe
foi explicado que, para afiar um formão, são usadas três pedras, de granulação
progressivamente menor. Jamais ouvira falar em tal exagero e não se interessou
mais pelo assunto.
Não é por acaso que os
alisares ficaram tortos. O carpinteiro improvisado não tinha o gabarito de
serrar, universal na profissão. E não tinha com que medir os 45º. Foi-lhe
emprestada uma suta com esse ângulo. Mas ele não sabia usá-la. Cortou com a
serra de mármore, sem gabarito, guiada à mão livre. Resultado péssimo.
O eletricista via como um
insulto modificar o que havia feito, por não corresponder às expectativas. E em uma obra, à medida que as coisas
acontecem, a atenção vai se fixando nos pontos menores, revelando que há
detalhes para mudar.
E o desperdício! Estimativas
conhecidas avaliam uma perda de 30% dos materiais na construção civil. Nesta
obra, não parece haver sido menos do que isso.
Ao terminar a instalação
elétrica, sobra uma enorme pilha das caixinhas onde se alojam tomadas e
interruptores. Como é possível, se o projeto elétrico mostra o seu número
exato? Sobraram braçadas de tubo de PVC e montes de conexões, apesar do projeto
hidráulico permitir calcular exatamente a quantidade necessária. E por que
sobraram, ainda fechadas, várias latas de tinta e massa corrida? Não é difícil
estimar o consumo, pois está escrito na lata.
No capítulo da instalação da
cobertura de lata nas paredes exteriores, também se repetia um vício crônico da
nossa construção civil: o desperdício. Apanhar no chão o parafuso que escapuliu
não é um hábito consagrado. Caiu? Deixa lá, dá trabalho, a caixa tem outro, é
mais fácil.
A lata de lixo da obra era
os dois mil metros do terreno. Terminada, nele foram encontrados restos de
telha, nacos de tijolo, garrafas de guaraná, camisas, pés desencontrados de
sandálias havaianas, embalagens de biscoitos, pedaços de pau, retalhos de PVC,
latas de tinta, pontas de fio e fragmentos de tudo que foi usado durante a
construção.
Desanimado, o construtor
confessou que havia desistido de ter um local para guardar materiais e
ferramentas. Não queria mais alugar um depósito, sempre sujeito a roubos. Como
consequência, fim de obra é o cemitério do que foi comprado a mais – e sobra de
quase tudo. Os peões levam alguma coisa, os gatunos outro tanto e o dono da
casa não sabe o que fazer com o resto.
Falando de segurança, dos
muitos soldadores que apareceram na obra, nenhum usava a clássica viseira da
profissão. No maçarico é menos grave, mas e na solda elétrica? As escadas,
precariamente construídas, quase não alcançam o local certo. E se estão do lado
de fora, são niveladas com uma pedra sob um dos pés. Capacete? Jamais!
Cadeirinha de segurança? Nunca foi avistada uma na obra.
Em resumo, o desperdício
pela displicência e descaso subtrai do que ganha o construtor, pois é uma obra
por administração. É ele quem perde e sabe disso. Mas confessa sua impotência
para fazer diferente. Na guerra entre o presente e o futuro, o vencedor é o
presente.
A Tese: Fatalismo versus
ativismo
De que depende o nosso
futuro? Para os fatalistas, lo que será, será, estava escrito, o futuro a Deus
pertence. Para outros (chamados ativistas), o futuro será fruto do esforço, da
iniciativa. Nada está escrito.
Nas sociedades
bem-sucedidas, o cidadão comum percebe o controle do destino como estando em
suas próprias mãos. Para ele, quem mais se esforça, mais longe vai. Nas
fatalistas, acomodam-se as pessoas ao que a vida lhes oferece.
A implicação para a
produtividade é óbvia. Alguns se contentam com o jeito aprendido – ou
improvisado - de executar o trabalho. Outros acham que deve haver formas
melhores ou de maior eficiência. Em sociedade em que as gentes são competentes
e criativas torna-se mais eficiente o processo produtivo.
Atualmente, muitos inquietos
graduados de instituições, como o ITA, querem inventar tudo, querem modificar o
que os outros fizeram. São membros de carteirinha do melhor que oferece o
Brasil Novo.
Mas em sociedades atrasadas,
espera-se passivamente que alguma coisa aconteça. Ou, mendiga-se um dinheiro ao
Estado. De Portugal herdamos o Sebastianismo que é a espera de um salvador
encantado – Dom Sebastião - que virá em algum momento. O Estado Babá é a
resposta dos políticos para o Brasil Velho.
A antítese na obra: lo que será, será?
Na construção civil,
modernidade é tentar controlar os processos e o fluxo da obra. É achar que é
possível não ser vítima de um destino pré-determinado. Mas não é isso que se
podia observar.
A desordem na obra é
permanente, como se fosse o estado natural e inevitável do seu curso. Nas duas
semanas que lá estiveram os montadores da estrutura metálica, com restos de
madeira, em minutos, construíram uma mesa para abrir as plantas. Os que se
seguiram, por dois anos, não construíram nada. Onde está a broca? Despeja-se no
solo imundo o bric-a-brac das suas caixas de ferramentas. Tudo sujo, malcuidado
e desgastado. Chega o material elétrico. Em vez de ser disposto sobre uma mesa,
é esparramado pelo chão. De tempos em tempos, o construtor manda varrer, o que
é feito mal e a contragosto.
Uma obra requer centenas de
materiais diferentes. Cada um será usado na hora certa, sob pena de atrasos, se
não estiver lá. O mesmo com o leque de competências profissionais necessárias.
Portanto, a logística de uma construção é delicada e complexa. É o que separa
uma obra com custos razoáveis e prazos cumpridos e uma outra onde nada é
previsível e tudo pode acontecer.
Voltando aos peões, talvez o
que mais impressionou foi uma característica sutil, mas gigantesca nas suas
consequências. Não é que não saibam trabalhar, o que é um fato. Mas é pior do
que isso. Não têm motivação alguma para aprender. Cursos? De que? Por quê? Esta
desmotivação foi uma das constatações mais alarmantes que pude fazer, ao longo
de minha presença na obra.
No fundo, parece predominar
um atavismo cultural, levando a um fatalismo resignado, uma grande passividade
diante da equação da vida.
Tal como são, os peões
jamais fariam as seguintes perguntas: Será que não há uma maneira melhor de se
fazer o serviço? Não haveria uma ferramenta mais apropriada?
A tese: O trabalho enobrece
Na velha tradição, o
trabalho era para o povo, não para a nobreza. Naqueles tempos, um homem não
podia ser um Cavalheiro (Knight),
se algum parente seu fosse ou tivesse sido comerciante ou artesão. A lista de
parentes incluía pai, avô, bisavô e tetravô.
No início do século 19, um
aristocrata polonês que ousasse entrar no comércio perderia a sua posição
nobiliárquica, suas terras e os privilégios correspondentes.
Mas a Revolução Industrial
que varreu o mundo, começando na Inglaterra, virou tudo de cabeça para baixo.
Muitos artesãos talentosos inventaram e patentearam máquinas fabulosas. Ou
criaram fábricas para produzi-las. Tornaram-se os grandes titãs da indústria.
Seu avanço vertiginoso na pirâmide econômica tornou os tradicionais
preconceitos mais um cacoete das velhas aristocracias do que normas vigentes.
Hoje, nas sociedades
modernas, o trabalho é valorizado. Nas mais atrasadas ainda é considerado algo
para os serviçais ou escravos. Essa é uma cruz que carregamos, como sociedade
por muito tempo escravocrata. É uma herança maldita esta visão negativa do
trabalho, como algo a ser evitado e o sucesso nisso uma razão para jactar-se.
Nas sociedades industriais,
o trabalho é visto de forma positiva. É uma obrigação moral, mas também, uma
fonte de realização pessoal. Forjou-se a ideia de que há um valor intrínseco em
trabalhar. Essa é a cartilha do protestantismo, ipsis literis, ainda que sociedades não protestantes possam
também cultivar valores equivalentes.
Se o trabalho é valorizado
em si, mais ainda será o trabalho bem feito. Aí está a raiz do
profissionalismo, característica marcante de sociedades modernas bem
resolvidas. Faço bem feito porque aprendi assim e não sei fazer de outro
jeito. E, de resto, faço com muito
orgulho.
“O brasileiro, com toda a sua predileção pelo
show, não acha prazer em se esforçar por realizar uma obra mais bem-acabada,
como se contrariasse as suas inclinações. No entanto, em geral, não é preciso
um trabalho excessivo para conseguir um serviço mais perfeito”.
A ferramenta é parte indissolúvel
do processo de trabalho. É curioso verificar, naquelas sociedades e naqueles
grupos em que se observa mais apreço ao trabalho, essa veneração migra para as
ferramentas. O profissionalismo valoriza o trabalho e idolatra seus
instrumentos. O estado de conservação, o fio impecável dos formões e o esforço
de comprar a melhor qualidade oferecida no mercado são corolários do
profissionalismo. Nos trabalhos de madeira, a caixa de ferramenta impecável é o
cartão de visita do profissional e lhe traz grande orgulho.
A antítese: quanto menos
esforço, melhor
Pela observação dos
operários, é inevitável concluir-se que não há realização pessoal na profissão.
Não aprenderam a ver no trabalho bem feito uma fonte intrínseca de felicidade.
Não se defende aqui uma utopia impossível, isso existe. Nas boas empresas, os
funcionários reportam o orgulho e a satisfação de fazer bem feito, tal como
seus antepassados medievais.
Como mencionado, a montagem
do chassi metálico da casa foi feita pela equipe da fábrica. Durante as duas
semanas de trabalho em que estiveram lá, via-se o oposto do que era o cotidiano
da obra.
Diante do desfile de
operários maltrapilhos e descoordenados, ver este time operar foi como assistir
a um espetáculo teatral bem ensaiado. Trajavam uniformes - os outros, se vinham
de uniforme, era de outra empresa onde havia algum dia estado. E portavam
sempre seus capacetes. Aliás, durante toda a obra, foi a única vez em que tais
objetos foram vistos.
O ferramental era completo e
de qualidade. Até o rádio, que berrava música sertaneja, tinha um belo estojo
de proteção. A eletricidade passava por uma caixa de distribuição de madeira,
bem construída. Os fios de extensão tinham tomadas! Um objeto que não foi mais
visto, durante toda a obra. Com efeito, os outros peões que por lá aportaram
enfiavam a ponta dos fios nus na base de tomada – se é que essa existia.
O time da montagem trazia um
micro-ondas para esquentar o almoço. Já os outros, cortavam uma latinha de
cerveja e a colocavam, entre três pregos, em um retalho de madeira. Com um
pouco de álcool, esquentavam a marmita. Será que o gasto mensal com álcool
seria menor do que a prestação de um micro-ondas?
Os terceirizados da montagem
haviam trabalhado na Europa ou Estados Unidos. Tinha que ser assim, já que esta
tecnologia construtiva é desconhecida dos operários locais. Mesclavam na
conversa palavras estrangeiras. Mas nos
verbos portugueses, invariavelmente, erravam a concordância. Eram capiaus
internacionais, pois do lado do profissionalismo eram impecáveis.
Sabiam o que estavam
fazendo. Trabalhavam rápido e sem vacilar. O líder era decidido e compenetrado.
Sempre de capacete, com a jugular bem apertada, dava ordens à sua tropa. Com a
intensidade de um general em batalha, comandava seu exército.
Em contraste, o serralheiro
contratado para o telhado não ultrapassava o nível porcalhão. O fato de a casa
estar ligeiramente fora de esquadro agravou as dificuldades. Foram meses de
fazer e desfazer o telhado, a cada tentativa, mais amassadas iam ficando as
telhas.
Nas três primeiras versões,
o telhado da cozinha vazou, de resto, copiosamente. Apenas a quarta tentativa
segurou a água. As anteriores não funcionaram, em parte, pela má execução,
vício crônico dos operários que lá arribaram. Testava-se cada versão com a mangueira
de água. Vazava! Quando parecia tudo perfeito, vinha uma chuva, deixando o chão
da cozinha inundado e o drywall empapado.
As janelas requeriam uma
moldura de placa cimentícia, com uma projeção. É óbvio, as peças horizontais
deveriam ter um caimento para fora, de tal forma a drenar a água da chuva. Mas
algumas tinham caimento para dentro, escorrendo a água até o encontro com uma
lata cortada imprecisamente, ficando por conta do veda-calhas a tarefa de
preencher um vão enorme. Daí as infiltrações inevitáveis.
De tudo que foi feito na
casa, a instalação das placas cimentícias atingiu o nadir da incompetência. O
construtor defendia seu terceirizado, afirmando que era assim mesmo: o material
não dava acabamento, não havia como evitar as rebarbas feias e os encontros
erráticos com as outras peças. Porém, trata-se de material dócil e bem
comportado. É tão fácil trabalhar quanto um compensado ou MDF.
Os dois bombeiros,
possivelmente, foram os piores operários a pisar na obra. Quase todas as
conexões vazaram. Em alguns casos, não foram coladas, mas meramente encaixadas.
Frequentemente, se diziam incapazes de instalar alguma peça.
A instalação do vidro
zenital foi um pesadelo. O instalador tinha medo de altura. Olhou o serviço e
partiu. Alguém o viu dormindo debaixo de uma árvore, no caminho de volta.
Passaram-se meses, até que a instalação acontecesse.
O banheiro tem duas portas
de vidro, uma ao lado da outra, a do o box do chuveiro e a do outro equipamento
clássico. Quem assoma à porta, está diante das duas. Na instalação, uma porta
ficou um centímetro e meio mais alta que a outra. Após múltiplas reclamações, o
time foi lá e consertou. Mas desta vez, inverteu-se. A que estava alta, ficou
baixa, também com o mesmo centímetro e meio de diferença.
Uma vez habitada a casa,
notou-se que, após uma chuveirada, escorria água do lado de fora do box. A
tentativa de refazer o veda-juntas de silicone não funcionou. Finalmente, foi
encontrado o problema. A porta corre em um trilho em “U”. Ora, os respingos do
chuveiro cairão dentro deste trilho. Como escoarão? Como não transbordava,
deveria haver um dreno. Eram dois furos laterais. O detalhe é que estavam
voltados para o lado de fora! Ou seja, a água que respingava no trilho era
escoada para o exterior do box. Melhorou o vazamento. Mas ainda havia mais
reparos. As duas extremidades do trilho da porta encostam no box. Como é uma
conexão imperfeita, precisa ser vedada com silicone. Mas isso não havia sido
feito.
Dentre as peças a se
instalar, havia uma base de tomada para o trifásico. Era uma dessas que não são
de embutir, basta aparafusar na parede. Em vez de três parafusos, mal que mal,
o eletricista fixou um, dizendo ao construtor que naquele tijolo de cimento não
era possível colocar os dois faltantes. Perfurar o tijolo, enfiar buchas de
nylon e instalar mais dois parafusos na caixa foi tarefa que tomou poucos
minutos.
Aberta uma caixa de tomada,
descobriu-se que não estava aterrada, como manda a Norma ABNT. De resto, esse
terceiro fio é exigido em todo o mundo civilizado. Diante da falha, foram
checadas as outras. Umas tinham fio terra e outras não. Em particular, a
ligação da resistência do boiler
do aquecimento solar, ao ar livre, não o tinha. É uma ligação próxima à telha
metálica, maltratada pelo sol e chuva e de alta amperagem. Também nas
luminárias do deck faltava aterramento. O construtor alegou que esse terceiro
fio era um capricho bobo.
Dando um rápido balanço
mental da construção, foi fácil concluir que sobraram situações em que a lei do
menor esforço prevaleceu: mal feito, improvisado, defeitos mal disfarçados e,
por aí afora.
A tese: A atração pela
tecnologia e pela complexidade
Algumas sociedades se
contentam com fórmulas simples para tratar dos problemas do cotidiano. Outras
gastam enorme tempo desenvolvendo soluções complexas para os mesmos problemas,
acertando e errando ao longo do caminho. As primeiras são inevitavelmente
pobres, pois essas soluções simples tendem a ser pouco eficazes. As segundas
vão ficando ricas, pois as soluções que dão certo podem levam a saltos de
produtividade.
O Homo sapiens, quanto mais
avança na sua evolução, mais complexas ficam as suas ferramentas. E com elas,
passa a obter um nível cada vez mais elevado de bem-estar material, pois
produzem mais.
Andar a pé é uma solução
simples, a sua tecnologia é dominada aos dois anos de idade. Domesticar o
cavalo foi bem mais complicado, provavelmente levando séculos, até que um bicho
bravo virasse uma montaria confiável. Mas diante do automóvel, como é simples o
cavalo!
A propensão, o gosto e a
competência para desbravar a complexidade são exigências pétreas para o avanço
tecnológico. E como dito, tal inclinação traz a reboque uma qualidade de vida
mais elevada.
Podemos pensar em dois
estágios do conhecimento. O primeiro é ser capaz de entender os processos,
materiais e ferramentas, de tal forma a lidar com eles de forma competente. Se
o pintor não sabe qual a tinta, se o pedreiro não conhece o melhor
impermeabilizante para o caso, se o eletricista não entende motor trifásico,
obviamente, o serviço vai ficar deplorável, se é que chega a bom termo.
O segundo estágio é fazer
avançar a tecnologia, as maneiras de trabalhar, os materiais e, assim por
diante. É uma fase superior de uma sociedade. É o território da inovação.
Nosso atraso, dentre outras
causas, está bastante associado à pouca afinidade das nossas gentes às soluções
de mais complexidade. Isso pode ser captado pela menor variedade de ferramentas
exibidas nas obras e oficinas. A maior complexidade é o resultado de buscar uma
solução mais eficaz para se fazer alguma coisa. As plainas mais antigas eram
reguladas batendo com um martelo na cunha de madeira. As mais novas, mediante
um parafuso que ajusta a posição da lâmina. É uma solução mais complexa, mas se
justifica por ser mais eficaz.
Indo ao outro lado do mundo,
nos damos conta de que os carpinteiros japoneses, ao longo de mais de mil anos,
serviram-se de, pelo menos, 400 formas de juntas ou encaixes de madeira, na
construção de suas casas e templos. Os nossos usam pouquíssimas variedades.
Juntando carpintaria com marcenaria, dez parece um limite superior.
Estados Unidos e Japão eram
pobres, mas as sementes do salto tecnológico já estavam plantadas. A propensão
para comprar ou desenvolver instrumentos complexos e especializados vem de longa
data na sociedade americana, herdeira direta das tradições inglesas e alemãs.
Esse gosto pela ferramenta
especializada é ubíquo naquele país e parece inexistir no Brasil. Nos Estados
Unidos, o encanador chega em um furgão abarrotado de ferramentas, as melhores
possíveis e aptas para cuidar de qualquer que seja o problema ou tarefa. Já o
nosso chega com uma caixinha acanhada e com ferramentas precárias e mal
conservadas. Isso, se não as traz embrulhadas em jornal. Peças de reposição,
nem falar.
O resultado é que nas nossas
obras faltam as ferramentas apropriadas. E ao longo do dia, alguém precisa
constantemente sair para comprar algum material que terminou.
Por que é assim? Só porque
um é rico e outro é pobre? Quem sabe é o inverso, o de lá é rico por ter sido
mais produtivo?
Nos países avançados, é
visível o gosto pela variedade e especialização das ferramentas. Quantos tipos
de alicate? Quantos tamanhos de chaves de fenda? Quantos tipos de serrotes? É
mais do que óbvio, empregando a ferramenta certa o serviço sai melhor e mais
rápido. Mas os nossos operários, ainda distantes dos padrões da modernidade,
não sentem a necessidade de possuir ferramentas mais apropriadas para cada
tarefa ou melhores. Contentam-se com pouco ou quase nada. Quando abrem a caixa de
ferramenta, se é que a tem, o que vemos é uma ruína.
E se para cumprir as tarefas
tradicionais já falta fôlego tecnológico ao Brasil Velho, não podemos esperar
que venha a inovar ou propor formas superiores de trabalhar. Para a
avassaladora maioria das sociedades atrasadas, achar soluções novas, está muito
distante de seu ideário. Inventar, explorar novas fórmulas, modificar as
velhas, errar muito, nada disso encontra terreno fértil na cabeça daqueles que
permanecem distanciados dos cânones das sociedades modernas.
A
antítese na obra: Para que complicar? Mas o mundo é complicado
A observação da obra nos
leva a duas categorias de comentários. O primeiro deles é que as casas de hoje
adotam um conjunto de tecnologias e técnicas construtivas que podem apresentar
um bom grau de complexidade. Inevitavelmente, a equipe da obra vê-se obrigada a
lidar com elas. Previsivelmente, falta-lhes capacidade para dominá-las e dar
conta do recado. Daí a coleção de tropeços e desastres, ao longo do caminho.
O segundo é o gosto pela
técnica e pela complexidade. É característica das sociedades modernas a atração
pela tecnologia e, por consequência, do desfrute de seu uso. Na obra,
observa-se o oposto, total ausência de interesse ou vontade de aproximar-se e
entender melhor os processos mais complexos. De fato, muitas soluções são
evitadas pela inapetência dos operários para dominá-las.
Examinemos uma categoria de
cada vez. Comecemos pelo analfabetismo tecnológico. Ou seja, os operários não
sabem lidar com os materiais, as técnicas e as ferramentas que entram em cena
na obra.
Em um cômodo a ser usado
como oficina, decidiu-se usar compensado, em vez de drywall, para facilitar a
montagem das ferramentas. Por sugestão do instalador, comprou-se um tipo de
compensado revestido de plástico, próprio para formas de concreto.
Erro fatal! Este plástico
está lá com a missão de não colar no cimento. Portanto, no caso, não dava
aderência à massa corrida e à pintura. E como é preto, não poderia ser deixado
sem pintura. Tentaram-se todas as técnicas para remover o revestimento
plástico. Lixa, escova, raspadeira de aço e, por aí afora. Com uma lixadeira de
disco, bem agressiva, o plástico cedia. Mas foram mais de 50 horas de luta, até
pelar tudo, chegando na madeira.
Lá pelas tantas, o caminhão
entrega o aquecedor solar. No caso, um aparelho chinês, com tubos de vácuo.
Após a compra, veio o cavalheiro para instalar a peça. Depois de algumas
peripécias, o aquecedor é instalado e ligado. Mas em um lugar demasiado
visível, o “técnico” instalou canos tortos e voltinhas desnecessárias.
Instalou também um suspiro,
feito de tubo de PVC comum. No dia seguinte, verga completamente, fica
prostrado, como se fosse uma mangueira de jardim. Ao ser trocado por um tubo
mais rígido, uma surpresa nos esperava. Ao abrir o registro, já não era mais um
aquecedor solar, mas um chafariz, esguichando água para cima, do alto da
cumeeira.
O instalador estava
completamente perdido. Por que o suspiro esguicha água? Após muitas consultas,
finalmente, começa a decantar a teoria de que a caixa d’água e o boiler solar
eram vasos comunicantes. Portanto, o suspiro nada mais seria, senão um cano
aberto no circuito, em um ponto mais baixo. Como resultado, jogava pelos ares a
água da caixa. Para funcionar como suspiro, deveria ultrapassar a altura da
caixa. Mas a engenharia de um suspiro com mais de cinco metros não é tão
simples assim. Estais de cabo de aço? Foi decidida a instalação de uma caixa
auxiliar, com boia, pousada no topo do boiler, para que o suspiro pudesse ser
curto. Horroroso!
O último capítulo das águas
e canos foi a fossa séptica. Na época do primeiro construtor, aparecem dois
cilindros plásticos azuis, iniciando-se o processo de enterrá-los nos fundos do
terreno. Mas o primeiro construtor escapuliu, sem deixar traço – e nem o manual
do fabricante. O segundo confessou nada saber de fossas sépticas – apesar de
não estar longe da aposentadoria. Pela lógica, conecta-se o cano saindo da
caixa de gordura ao cilindro que estava mais perto. Afinal, não faz sentido
colocar o primeiro cilindro mais longe da casa.
Nas fainas de lidar com
objetos tão misteriosos, o construtor descobre que no cilindro maior havia uma
grande quantidade de aparas de plástico. Sabotagem do primeiro bombeiro? Nada
improvável, pois o construtor não pagou por seus serviços, apesar de que
recebeu o dinheiro para tal.
Foi impossível a tarefa de
retirar o plástico. Falou-se com um serviço de limpeza de fossas, para que
cuidasse do assunto. Mas um telefonema
para o fabricante desencantou o mistério. As aparas são uma espécie de
habitação popular para as bactérias que digerem o esgoto. Fazem parte da fossa.
Se forem retiradas, as “bactérias sem teto” falecem, não cumprindo a sua nobre
função.
Canos ligados, está tudo
pronto e funcionando. Mas pairavam dúvidas. Finalmente, confirmou-se a suspeita
de que, apesar do cilindro pequeno estar enterrado mais longe da casa, é ele o
primeiro estágio do esgoto. O grande vem depois. Ou seja, a ordem dos cilindros
estava errada e as ligações trocadas.
Como já havia abandonado a
obra o segundo construtor, o proprietário contratou um outro bombeiro, este de
longa trajetória. Ao desfazer a instalação existente, duas surpresas. A
primeira foi que os bombeiros nem colaram os canos e nem usaram gaxetas de
borracha para a sua vedação. Simplesmente, encaixaram e cobriram de terra.
A segunda é que o cano
saindo da caixa de gordura foi instalado sem remover o seu tampão de plástico.
Ou seja, até esse dia, a fossa não havia recebido sequer um grama de esgoto.
Entendemos então por que foi difícil a encontrar a caixa de gordura, já que
estava sob um viçoso capinzal. Todo o esgoto dos meses precedentes transbordava
e fertilizava a terra próxima.
Com duas horas de trabalho,
terminou uma novela tecnológica que já datava de dois anos. Só não se resolveu
um mistério: Por que o cano arrolhado? Burrice ou sabotagem?
Passemos ao segundo tópico.
Vai com a Modernidade o gosto pelas ferramentas especializadas e pelos
processos que podem ser mais complexos ou requerem aprendizado mais longo.
Justificam-se pela sua maior produtividade. Mas isso é o oposto ao que se podia
observar na obra.
O capítulo das ferramentas
traz perplexidades. Quem deveria ser o dono delas, em um arranjo produtivo em
que há um construtor, um terceirizado e uma tropa de operários, contratados a
cada dia? Desde as eras medievais, o artesão é o orgulhoso proprietário das
suas ferramentas. Mais que isso, são o seu cartão de visita.
Por que não se usam as
ferramentas adequadas? Quantas vezes, tiraram a broca da furadeira com martelo
e talhadeira, pois havia se perdido a chave? Na instalação da rampa, o
serralheiro não tinha as chaves de cachimbo requeridas para a tarefa. Usou e
inutilizou as que lhes foram emprestadas.
Os operários não mostravam a
menor propensão para possuir ferramentas, fossem boas ou boas ou ordinárias.
Logo dizem que são muito pobres. Tecnicamente, é verdade, mas são pobres por
serem improdutivos e boas ferramentas alavancam muito a produtividade.
O terceirizado não quer
investir, pois tem medo que desapareçam. O construtor opera sob a mesma
equação, agravada pela volatilidade de sua associação com o terceirizado. Na
falta de alternativas, o construtor acaba comprando o mínimo, de péssima
qualidade, complementando o pouco que possui o empreiteiro.
Em resumo, há uma
incompatibilidade entre as tecnologias construtivas usadas na casa e o que
sabem fazer e o que gostam os operários. Em grande medida, não dominam os
conhecimentos requeridos para uma montagem eficiente e correta, seja o telhado
ou a ligação trifásica.
Lições: o contraste da
modernidade com o mundo da obra
Foi com o conjunto de
valores, crenças e propensões - definidos como Modernidade - que se deu a
Revolução Industrial, ao longo de suas sucessivas ondas. Com as variações
esperadas, as sociedades que têm hoje os IDHs mais altos compartilharam essas
mesmas visões de mundo. Por elas seus cidadãos pautam o cotidiano, seja no
comportamento, seja na legitimidade conferida aos seus princípios. Em forte
contraste, a cultura do atraso perpassa as sociedades mais atrasadas e mais
pobres.
Por muito simplistas que
possam parecer estes raciocínios, sempre contém um fundo de verdade. No caso do
Brasil, são duas sociedades, a Velha e a Nova. O grande desafio é reduzir o
número daqueles que pensam e agem pelas pautas do atraso cultural e alargar a
abrangência dos que se apropriaram desta nova coleção de valores, batizados
como Modernidade. Em outras palavras, ampliar o Brasil Novo e reduzir o Velho.
E o que dizer do exército de maltrapilhos que
construiu a casa? A primeira reação, politicamente correta, é ficar com pena de
gente tão desprovida de tudo. Mas não é tão simples, pois quase todos gastam
seus proventos em bens de consumo não-essenciais. Não é o bolso deles que vai
mal, a cabeça é a causa dos desacertos, pois seus valores estão estacionados em
sociedades pré-industriais de séculos pretéritos. O imediatismo é capturado
pela opção do consumo, em vez de investir no que resulta em maiores ganhos
futuros. Pode parecer um raciocínio de livro-texto, mas é impossível não
encontrar um fundo de verdade nele.
Em sua maioria, são pouco
conhecedores das artes da construção e distantes das tradições de
profissionalismo. Por conseguinte, convivem com o atraso técnico e um código
bastardo de valores. Persistem atitudes incompatíveis com o progresso e com a
produtividade, em aras de um imediatismo de péssimas consequências no longo
prazo.
Para estas tribos, mal feito
ou bem feito não está no seu radar. O que conta é se o construtor deixa passar
o serviço tosco. Este, por sua vez, não é guiado pelo orgulho da obra
impecável, mas pelas exigências – frouxas ou severas - do dono da casa. Cada um
tenta fazer o mínimo, para ver se ‘cola’. Essa equação contêm todos os
ingredientes para gerar conflitos permanentes, entre todas as partes.
Voltando ao que sabem os
peões, talvez o que mais impressionou foi uma diferença sutil. Não é que não
saibam trabalhar, o que é um fato. É pior do que isso. Não têm motivação alguma
para aprender. Cursos? De que? Por quê?
No fundo, parece predominar
um atavismo cultural, um fatalismo discreto, uma resignação diante da equação
da vida. Não há realização pessoal no trabalho. Não aprenderam a ver no
trabalho bem feito uma fonte intrínseca de felicidade.
Tampouco se trata de ter um
pouquinho mais ou um pouquinho menos de dinheiro. As pessoas que construíram a
casa são o resíduo de um Brasil arcaico, amorfo e herdeiro de populações
largadas ao léu. Se o operariado brasileiro fosse todo como o desta obra, a
indústria entraria em colapso – ou não existiria. A boa notícia é que esse
grupo encolhe. Mas, teimosamente, não desaparece.
Ao examinar o desenrolar da
construção, põe-se a descoberto o outro Brasil, o Velho, o fim da linha da
nossa sociedade. Um submundo desolador.
Em contraponto, os únicos
operários que merecem esse nome haviam trabalhado na Europa ou Estados Unidos.
Ou seja, mantiveram os hábitos que aprenderam no exterior, pois concluíram que
são eficazes.
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