Manoel Renato Machado Filho (MPDG)* e B.V. Dagnino (ABQ)**
Em anos recentes o poder público realizou um vigoroso programa de investimentos fortemente concentrado na execução de obras públicas dos mais diversos segmentos da infraestrutura. Entre os setores beneficiados destacam-se: ferrovias, energia, portos, habitação, saneamento e mobilidade urbana, entre outros.
Os resultados alcançados revelaram que, ao contrário do que se defendia antes da realização dos investimentos, um dos principais obstáculos não foi a escassez de recursos, mas a qualidade do seu dispêndio. Este dado da realidade deve nos fazer refletir sobre a necessidade de discutir e implementar alternativas para incrementar a qualidade dos investimentos, tanto aos processos e meios de produção, quanto aos produtos.
Além dos frequentes desvios de conduta ética de agentes públicos e privados, infelizmente tão recorrentes, as deficiências identificadas vão desde a fragilidade dos mecanismos de tomada de decisão para realização de um investimento, deficiências no planejamento e implementação das obras, até a quase ausência de preocupação com a gestão, operação e manutenção dos produtos gerados pelas intervenções.
A superação destas deficiências exigirá de todos os atores envolvidos no processo de provisão de infraestrutura no Brasil mais do que reclamar dos governos, demandando uma severa autocrítica sobre valores, práticas e processos de trabalho.
Tomando como exemplo o Rio de Janeiro no caso de obras de grande vulto, será muito fácil encontrar exemplos de projetos que, embora relevantes para a Cidade, são facilmente identificáveis como de duvidosa relação custo-benefício:
- acesso ao Metrô na Lagoa Rodrigo de Freitas (estação General Osório): a largura do longo túnel que foi construído, inclusive passagem sob a Avenida Epitácio Pessoa, estimado em pelo menos 15 metros, quando talvez pudesse ter no máximo 5; o reduzidíssimo número de pessoas que o utilizam evidencia que a obra está superdimensionada, logo com custo muito acima do recomendável
- a utilização da linha 4 do Metrô, Ipanema – Barra, está muito abaixo do calculado em termos de número de passageiros; só a ponte sobre canal de lagoa da Barra da Tijuca foi obra de elevado custo
- o mesmo ocorre com o bonde moderno, o VLT no centro da cidade, operando bem abaixo da sua capacidade; é fácil a constatação do baixo nível de utilização da linha Rodoviária – Aeroporto Santos-Dumont; nesse caso a redução do tráfego de veículos poluidores pode justificá-lo em termos ambientais
- ainda sobre o tema mobilidade, a ponte para o BRT (seria necessária essa sigla em inglês?) na Ilha do Governador então, se afigura um despropósito; seu custo elevadíssimo é difícil de considerar justificável, pois é usado por um ônibus cada 15 ou mais minutos; recentemente se permitiu o trânsito de táxis para se obter uma taxa mínima de utilização; taxistas comentam que é frequente irem ao aeroporto e não observarem nenhum ônibus percorrendo-a.
Mencionar a ociosidade das obras das Olimpíadas (o tão decantado legado) e o excessivo número e custo dos estádios da Copa seria redundante. Nesse caso, é o conjunto da obra, ou seja, o excessivo número de arenas, inclusive onde a prática do futebol profissional é irrelevante, choca qualquer observador, mesmo pouco atento.
O que parece é que essas obras não foram objeto de um estudo de viabilidade técnico-econômica abrangente, em particular, quanto a sua relação custo-benefício; haveria soluções alternativas ou mais conservadoras em termos de dimensionamento?
É evidente que uma maior soma de recursos deve ser alocada a essas análises preliminares por ocasião do projeto. Dessa forma a alocação de recursos seria otimizada, propiciando mitigar sua carência para a realização de empreendimentos de que tanto o País necessita.
O que temos observado e estes exemplos ilustram bem é que o planejamento das intervenções de infraestrutura em nosso país tem deixado muito a desejar, permitindo ineficiências associadas a superdimensionamento e desperdício.
Neste tipo de obra, quando financiadas com recursos federais, há exigência de estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA). Desta forma, o problema parece estar na qualidade destes estudos.
Se os estudos são feitos e concluem pela viabilidade da obra, temos dois aspectos a considerar: i) o da capacidade, autonomia e independência da equipe técnica responsável por sua elaboração e ii) o tipo de análise a que os órgãos financiadores submetem os estudos, antes de seu aceite ou aprovação.
Pelas informações coletadas em discussões técnicas com a participação das principais instituições financiadoras, a análise a que são submetidos os EVTEA antes do acesso aos financiamentos é superficial e se limita a verificar se as conclusões do estudo recomendam a execução da obra ou não. As iniciativas implementadas para modificar esta realidade identificaram dificuldades técnicas e jurídicas.
As dificuldades técnicas estão associadas à capacidade institucional para análise dos estudos, os custos, prazos e o nível de detalhamento exigido para conferência e análise pormenorizada dos parâmetros utilizados nos EVTEA. As dificuldades jurídicas relacionam-se aos níveis de responsabilidade que a análise crítica dos estudos traria para os técnicos e as instituições financiadoras, haja vista que os estudos já possuem responsável técnico formalmente instituído e legalmente responsabilizável pela questão.
Estas dificuldades devem nos fazer refletir sobre o acerto deste caminho. Será que a melhor opção para a desejada melhoria de qualidade passa mesmo pelo detalhamento da análise dos estudos pelo órgão financiador? Será que um processo unificado de análise dos estudos por um certificador externo não poderia substituir as múltiplas camadas de análise atualmente existentes, com ganhos de eficiência?
O contexto que o setor público vive hoje é avesso à inovação e ao risco, produto da inadequação das estruturas governamentais aos novos tempos (anacronismo institucional) e, principalmente, à rigidez da legislação e ao excesso de controles. À luz de todos os desmandos que vêm sendo revelados, soará estranha esta afirmação, mas pergunto: todos estes controles e a rigidez da legislação foram eficazes na prevenção dos malfeitos? Por que não?
Entende-se que é preciso aprofundar a discussão e ir às causas dos problemas. A título de contribuição, utilizando uma ferramenta simples de gestão que é o diagrama espinha de peixe, ou de Ishikawa ou dos 5M, são relacionadas a seguir possíveis causas dessa situação, cuja análise geraria ações para corrigi-las ou mitigá-las:
M – Mão de obra (Manpower):
Falta de preparo dos governantes, servidores públicos e colaboradores de empresas e outras organizações envolvidas em projetos nas áreas de planejamento nacional, regional e urbanístico, planejamento orçamentário e estudos de viabilidade, bem como desconhecimento da sua importância na priorização e no dimensionamento de empreendimentos
M – Métodos
Inexistência ou obsolescência da legislação, regulamentação, procedimentos, instruções e outros documentos normativos em nível federal, estadual e municipal capazes de, com base na experiência adquirida (especialmente as malsucedidas, mas também as boas), propiciar meios e modos para evitar a repetição dos insucessos.
M- Material
Inadequação ou desatualização de sistemas de computação que considere a multidisciplinaridade dos empreendimentos e inexistência ou não utilização de ferramentas como o desenvolvimento de modelos e simulações de impactos
M – Meio
Refere-se à não-consideração das especificidades ambientais, econômicas, sociais e culturais, dentre outras do local ou região onde será localizado o empreendimento, ou seja, o contexto ou condições atuais em que será implementado.
M – Management (Gestão)
Envolve capacidade de governança/ liderança para dirigir equipes e grupos de trabalho e a alocação de recursos de toda ordem para que um dado objetivo seja atingido com economia de meios.
Conclusão:
Uma análise dos sucessos e insucessos, do thingsgonewronge do thingsgoneright, permitiria aprender com os erros e acertos e, consequentemente, evitar as falhas recorrentes observadas.
Nessa análise, sem dúvida a questão da corrupção merece atenção, em suas várias nuances: propinas em espécie para proveito pessoal e/ou de partidos em malas ou em depósitos em paraísos fiscais, depois de tortuosos caminhos por instituições bancárias pelo mundo afora, com o objetivo de obter vantagens futuras em novos empreendimentos; perdões de multas ou outras benesses inclusive via os chamados jabutis embutidos na legislação, juros abaixo do mercado, processos licitatórios viciados direcionados para empresas não qualificadas etc. Todas essas práticas desviam de sua aplicação adequada os já limitados recursos orçamentários, adicionando óbices à eficácia do seu emprego em projetos relevantes. A correta execução da EVTEA e o uso de certificador externo propiciariam sem dúvida uma sensível diminuição dessas práticas nefastas ao desenvolvimento do País.
A decisão de implementar um empreendimento público precisa se dar em bases técnicas mais qualificadas, exigindo uma disciplina legal estável, capaz de conferir previsibilidade e ensejar continuidade à sua implementação, notadamente nos empreendimentos que por imposição técnica possuem cronogramas plurianuais.
Nem sempre a qualificação da decisão precisa se dar pelo incremento do nível de análise pelos órgãos financiadores, devendo-se investir na certificação externa de estudos e projetos para evitar a superposição de atividades e a perda de eficiência no processo.
É desejável que o Governo Federal concentre seus esforços nas iniciativas de caráter regional, de preferência multimunicipais, e de maior envergadura técnica e econômica, evitando a sobreposição de competências com Estados e Municípios e oportunizando a concentração dos escassos recursos na ampliação e na melhoria de qualidade da infraestrutura do País.
* Manoel Renato Machado Filho é integrante da carreira de especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
** Basílio V. Dagnino é Diretor Presidente da ABQ.