Itiro Iida
Os conhecimentos humanos, armazenados na memória de longa duração, podem classificar-se em declarativo e operacional. Aquele declarativo contém informações de natureza estática (um estado de coisas), enquanto o operacional relaciona-se com as ações (saber fazer, know-how). O conhecimento das qualidades nutricionais de alimentos é de natureza declarativa, enquanto saber cozinhar é de natureza operacional.
Algumas pessoas utilizam mais intensamente um desses dois tipos de memória em suas atividades profissionais e nos afazeres diários. Um guia experiente deve ter um bom conhecimento do caminho (operacional), embora possa ter parcos conhecimentos da fauna e flora (declarativa) ao longo desse caminho. Já o biólogo, que trabalha em laboratório, terá conhecimentos declarativos, mas não conhecerá o caminho para guiar o grupo.
Isso acontece também com algumas profissões. Um padre ou um advogado utiliza mais os conhecimentos declarativos, enquanto um cirurgião ou um dentista, aqueles operacionais.
Naturalmente, na maioria das atividades, há uma composição entre esses dois tipos de conhecimentos. Por exemplo, para obter carteira de habilitação para dirigir, há a prova teórica (declarativa) e aquela prática (operacional). Durante a direção no trânsito usamos, continuamente, esses dois tipos de conhecimentos.
Tradicionalmente, em nossa sociedade, os profissionais que utilizam mais intensamente os conhecimentos declarativos tendem a ser valorizados, enquanto aqueles operacionais são, muitas vezes, relegados aos escalões inferiores. Isso acontece também na maioria das provas de avaliação dos cursos e dos concursos aos empregos públicos.
As provas como o ENEM, ENADE, vestibulares, e a maioria das provas semelhantes exigem apenas conhecimentos declarativos. Isso seria correto, se elas se destinassem a realizar seleção dos candidatos a cursos, cargos ou profissões com predominância desses conhecimentos declarativos. Contudo, falham na exigência dos conhecimentos operacionais desses candidatos.
No caso dos concursos públicos, observa-se o mesmo tipo de falha, pois os candidatos são selecionados por provas de conteúdos declarativos, mesmo para os cargos que exigem, predominantemente, conhecimentos operacionais. Em consequência, ocorrem sérias distorções, como pessoas que preferem exercer cargos burocráticos ou aqueles de análise e planejamento, sem se envolverem nas respectivas ações necessárias.
Na educação superior, a maioria dos docentes é selecionada em concursos públicos de conteúdos predominantemente declarativos. Isso seria adequado para cursos como filosofia, direito, economia e administração, que utilizam, predominantemente, conhecimentos declarativos.
Contudo, torna-se falha nos casos de profissionais que dependem de conhecimentos operacionais, como engenheiros, agrônomos e artistas. Na área de artes visuais, por exemplo, seria selecionado o candidato a professor que domine a história das artes e a teoria da estética, em detrimentos a outros que saibam pintar ou esculpir. Em consequência, seus alunos saberão fazer um belo discurso sobre a importância da arte, mas não serão capazes de produzir uma pintura ou escultura.
Essa falha torna-se maior, quando se sabe o trabalho moderno exige principalmente dois tipos de habilidades que não são desenvolvidos na escola e nem são avaliados em concursos. Um deles é a habilidade de trabalhar em grupo e exercer liderança, com capacidade de negociar, ser tolerante, e adotar soluções de compromisso. A outra, não menos importante, é a capacidade de tomar decisões complexas, quando nem todas as informações estiverem disponíveis, exigindo o uso da intuição para avaliar a situação real e as tendências futuras.
Essas habilidades não são desenvolvidas no ensino formal, onde predominam, largamente, os conhecimentos declarativos e o comportamento individual. Não é de estranhar, assim, o sucesso de alguns estudantes que desenvolveram essas habilidades exercendo atividades extras-classes, como o de lideranças em grêmios estudantis. Enquanto isso, estudantes que foram considerados “brilhantes” durante o curso, não conseguem o mesmo sucesso profissional, embora possam ser bem sucedidos em concursos públicos.
A aplicação das provas predominantes em conteúdos declarativos tem provocado sérias distorções em algumas instituições públicas. É como se habilitássemos os motoristas apenas pelos conhecimentos teóricos, dispensando-os da prova prática.
Itiro Iida é engenheiro mecânico-produção pela EPUSP, doutor em engenharia e membro da Academia Brasileira da Qualidade (ABQ).