Por que o Brasil não escapa da Armadilha da Renda Média?

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Vivaldo Antonio Fernandes Russo[2]

 

1. Considerações iniciais

No ano do descobrimento do Brasil em 1500, Pero Vaz de Caminha era o escrivão da armada de Pedro Alvares Cabral. Ele redigiu uma longa carta para o rei de Portugal D. Manuel I contando a boa nova. Ao final dela, assim escreveu: “Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem” (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2020). Este foi o primeiro registro oficial de que um futuro promissor era reservado ao Brasil.

Transcorridos quinhentos e vinte anos, hoje sabemos que Caminha estava certo. O território brasileiro tem dimensões continentais. Praticamente oitenta porcento da Europa cabe dentro dele. O solo é rico em minerais, metais preciosos como ouro e metais industriais como ferro, alumínio, nióbio, além de vários outros. Há extensas florestas, a fauna é rica, os inúmeros rios, como o Amazonas, caudalosos. O clima é equatorial e temperado. E, praticamente, livre de fenômenos climáticos notáveis como terremotos, vulcões, tornados e furacões. Conforme dados da Carlos Cogo Consultoria (2017) a área total do país tem mais de 850 milhões de hectares, dos quais 30% é disponível para agricultura. Esta por sua vez, somente 32% é utilizada atualmente. A área ainda disponível para agricultura é a maior do planeta. Seremos celeiro do mundo. A população passa de 210 milhões de habitantes. Muitas universidades tanto públicas como da iniciativa privada complementam a rede de ensino. Todavia, ainda, o Brasil não é um país desenvolvido!

De fato, de acordo com o Banco Mundial, o Brasil é classificado como país de renda média[3]. Seu Produto Interno Bruto (PIB) per capita anual é em torno de 15 mil dólares norte-americanos, enquanto países de renda alta como Estados Unidos e Alemanha, apresentam PIB per capita de, no mínimo, 50 mil dólares norte-americanos por ano. Em outras palavras, o Brasil está preso na armadilha da renda média. O país continua, desde a época de Caminha, sendo o país do futuro!

O objetivo do trabalho mostrado nesse relatório é estudar as razões pelas quais o Brasil está preso e não consegue escapar desta armadilha. Iniciaremos o estudo analisando, naturalmente, publicações de cunho econômico. Todavia, veremos que, provavelmente, no Brasil, as causas raízes desse desafio são mais profundas e se devem às certas características intrínsecas da sociedade brasileira adquirida ao longo de sua formação.

 

2. Teoria da “Armadilha da Renda Média”

O termo “armadilha da renda média” foi cunhado em 2006 por Homi Kharas e Indermit Gill quando estudaram a economia de países do Leste Asiático[4]. Desde então, inúmeros especialistas pesquisaram o assunto, basicamente para responder sobre duas questões: há evidência que suporta a existência da armadilha? E como os países de renda média podem escapar delas?

Kharas & Gill (2020) fizeram uma síntese do que foi escrito até agora sobre o tema. Analisando a vasta quantidade de artigos publicados, os autores encontraram várias dificuldades para identificar áreas que pudessem ser sugeridas aos responsáveis por definir políticas públicas para manter o crescimento econômico dos países de renda média. Entre essas dificuldades, destacam muitos problemas econométricos, limitado número de transições bem sucedidas de renda média para renda alta e o caráter muito geral de evidências robustas (como, por exemplo, economias abertas crescem mais rápido).

Tais obstáculos levaram os autores a buscarem teorias que possuem como temas centrais as transições e suas dinâmicas, pois devemos imaginar os países de renda média como estando numa fase de transição complexa de uma economia entre acumulação e inovação. Portanto, esta fase envolve, aumentar investimento em capital humano e financeiro (acumulação), criar incentivo para inovação e criar instituições que assegurem o alinhamento, no tempo, da transição da acumulação à inovação, isto é, garantir que não apareçam estruturas obsoletas que emperrem o crescimento. Esta estratégia de três pontas é bem mais complexa do que a simples estratégia de transformar um país de renda baixa em renda média cujo foco primário se assenta na acumulação ou a estratégia, também relativamente simples, de fazer um país de renda alta crescer ainda mais, onde o foco primário está na inovação, embora algumas vezes englobe acumulação de capital. Os responsáveis por definição de políticas públicas envolvidos em situações como as dos países de renda média têm encontrado, em modelos fundamentados na teoria Schumpeteriana da destruição criadora, boas orientações.

O economista Joseph Shumpeter, reconhecido como um dos gigantes do pensamento econômico, considerava que a instabilidade seria parte da própria essência do capitalismo. O dinamismo desse resultaria justamente da possibilidade de novos entrantes no sistema – os participantes inovadores com alguma descoberta relevante – desafiarem o poder de mercado das empresas até então dominantes. Daí o nome de “destruição criadora”. Destruição, porque não há como uma inovação surgir sem deixar um rastro dela no caminho e, criadora, porque a inovação seria a força-motriz do sistema (GIAMBIAGI, 2015).

Esses modelos, segundo Kharas & Gill (2020), ajudam explicar o investimento necessário na acumulação de capital humano, em infraestrutura e em esforços para acelerar inovações. Como exemplo, os autores citam o caso de várias economias da América Latina que, de acordo com McKinsey Global Institute (2019)[5], apresentam incontáveis empresas, frequentemente, informais, que coletivamente empregam milhões, mas que seguram o crescimento do país devido à baixa produtividade. Além disso, a competição doméstica não é forte suficiente para obrigar estas firmas se inovarem, ou forçá-las a falir, liberando recursos a ser empregados de maneira mais produtiva. Para casos como esses, os autores mencionam que Lee (2014)[6] sugere que países de renda média deveriam se especializar naqueles setores onde a tecnologia está movendo mais rapidamente. Nesses setores, Lee enfatiza que a legislação para “pequenas patentes” exige menor grau de inovação para períodos de proteção de apenas 10 anos, porem elas podem ser registradas mais rapidamente e a menor custo.

Tendo isso em mente, os autores complementam suas sugestões recomendando que os responsáveis por políticas públicas dos países de renda média procedam uma análise séria no ambiente competitivo, cuidem da gestão de crises decorrentes da destruição criadora e garantam a mobilidade social, que permitem empreendedores de sucesso moverem em direção à elite econômica e diminuam a desigualdade social. Todavia, esta última sugestão é polêmica e geram caminhos alternativos.

Assim sendo, os autores concluem que o Banco Mundial identifica poucos caminhos para igualar as oportunidades econômicas: cuidados maternais decentes e desenvolvimento, desde cedo, da criança; acessibilidade de educação de qualidade para todos; e mercado de trabalho eficiente. Tudo próprio de políticas públicas através investimentos, legislação e incentivos.

Dentro dessas perspectivas, eles declaram, é difícil não concluir que os desafios de um país de renda média são assustadores.

Para consolidar esses conceitos, vamos, a seguir, extrair alguns trechos da entrevista do economista Otaviano Canuto, do Banco Mundial, realizada em 2014 e posta no sítio InfoMoney:

“A armadilha da renda média é o risco de que um país, depois de transitar de níveis baixos de renda para níveis médios, não consiga manter o ritmo e ascender aos patamares de países desenvolvidos. Há coisas em comum em todos os casos de transição de renda baixa para renda média: a transferência de pessoas de atividades de subsistência para atividades modernas, em geral nas cidades, grandes aumentos na produtividade total, até porque os trabalhadores não precisam ganhar muita escolaridade, usasse tecnologias existentes, etc. e tal. Pois bem, a partir daí, o quadro de políticas necessárias muda, porque se passa a se precisar de mais inovação interna e menos imitação, há necessidade de níveis de educação mais elevados da população, há necessidade de instituições que permitam o funcionamento da economia com baixos custos de transação, porque elas se tornam mais complexas…Grandes cadeias de produção… E aí a tarefa se torna, às vezes, muito difícil para alguns países transitar de uma fase para outra. A América Latina, de certa maneira, que tem países quase todos de renda média, alcançou esse estágio há algum tempo atrás, várias décadas atrás, e, no entanto, não conseguiu transitar para cima”. … “O Brasil tem uma renda média, mas ele tem pedaços de renda baixa. Tem uma parcela da população com atividades de baixa produtividade, cada vez menos, felizmente, mas tem, e tem pedaços de economia avançada. Pense na agricultura sofisticada brasileira, é uma agricultura intensiva em tecnologia, intensiva em informação meteorológica, intensiva em insumos modernos e em maquinário. Pense na capacidade de produção de petróleo em águas profundas, ou a Embraer, que é também um excelente exemplo de uma cadeia de valor agregado global que está sob o comando por conta da capacidade de design dos aviões etc. Mas esses pedaços, essa parcela da população ocupadas nessas atividades de alta renda, não é suficientemente grande para permitir a subida do nível de renda como um todo”. … “Na verdade, ao invés da dicotomia entre importar ou produzir, o que vale é a solução criativa. Hoje em dia, e há muito tempo, as tecnologias são sistemas complexos que não tem que ser inteiramente geradas no mesmo local. A interação com o que acontece no resto do mundo é fundamental, porque ela permite a fertilização. É preciso haver um esforço criativo de adaptação da tecnologia, porque a partir da adaptação criativa é que se cria outras inovações. Na verdade, não há anteposição entre a imitação e a inovação, desde que se valendo do mero processo de utilizar tecnologias padronizadas sem agregar nada” (CANUTO, 2014).

 

3. Causas econômicas ou político-sociais?

Pelo que vimos no item anterior, a complexidade para um país de renda média saltar na direção de um país de renda alta exige grande liderança e suporte do Governo, através de políticas públicas, no sentido de dar esse salto com sucesso, através da criação de um ambiente competitivo, da administração de crise e da mobilidade social (redução da desigualdade social).

Uma vez que, até hoje, o Brasil nunca escapou da armadilha da renda média, podemos questionar se as causas que impedem o crescimento econômico e, consequentemente, seu desenvolvimento, fazem parte de certas características intrínsecas do perfil da própria sociedade brasileira.  Tudo indica que, se for o caso, essas causas nasceram durante sua formação ao longo da história. Mas a tarefa de responder tal questionamento é extremamente complexa. Em artigo sobre ataques a monumentos considerados símbolos da injustiça social, Martins (2020a) advertiu que “na mentalidade popular e na da elite, a mesma distorção preside nossa concepção da história, a de que é ela unilateral, linear e dos que mandam. A história é processo movido por contradições que respondem pela legítima diversidade dos atores, seus desencontros e, também, seus encontros”.

Sendo assim, propomos o seguinte método para tentar esclarecer as razões da prisão do país na armadilha da renda média: com opiniões sobre o tema de alguns especialistas, montamos uma hipótese e depois verificamos se ela atende a alguns momentos históricos importantes, atuais e passados. Mas, essa verificação não será exaustiva. Ficará em aberto para eventuais contestações no futuro, que sempre serão bem-vindas e analisadas. Portanto, a hipótese aqui formulada, se confirmada, permanecerá, mas não necessariamente, para sempre…

Este procedimento é bem conhecido e adequado quando estamos diante de um problema complexo cujas causas são difíceis de encontrar e comprovar. Um exemplo famoso trata da proposta de Albert Einstein denominada Teoria da Relatividade Especial[7]. No início do século passado, alguns aspectos relacionados à velocidade da luz ainda não eram bem entendidos pela comunidade científica. A mecânica clássica de Newton considera que tempo e espaço são grandezas absolutas. Mas, a velocidade precisa de uma referência para ser definida. Por exemplo, provavelmente, o leitor deste relatório esteja sentado numa poltrona no interior de uma sala lendo-o. Sua velocidade em relação às paredes é nula, porem sua velocidade em relação ao sol não é zero, pois acompanha o movimento da Terra! Em 1905 Einstein concebeu que a velocidade da luz no vácuo é sempre a mesma, independente do referencial usualmente escolhido. Esta hipótese chocou o universo científico. Ela oferece uma explicação para as dúvidas acima mencionadas, todavia admiti-la significa aceitar que espaço e tempo não são absolutos! Na época não havia condições técnicas de montar experimentos para provar a nova Teoria. Por outro lado, aqueles que ainda ponderam pela validade da mecânica newtoniana são contestados pelo fato de que as velocidades dos corpos ao nosso redor são muito menores do que a da luz. Assim, as variações de tempo e espaço em relação às velocidades desta ordem de grandeza são imperceptíveis ao observador. Mais tarde, com o avanço da tecnologia, novas situações foram respondidas positivamente pela hipótese relativística. E, isso, permanece até agora, mas não, necessariamente, para sempre…

Voltando à nossa hipótese, é preciso confrontá-la também com a história dos Estados Unidos, tomada por referência, uma vez que eles foram colonizados, como o Brasil, pelos europeus e, na mesma época. Martins (2020b) comentando o saber médico e o popular disse “o brasileiro é culturalmente duplo, nas concepções e na língua, uma das consequências das duas escravidões que fizeram o Brasil que conhecemos, a indígena e a negra, além da influência do branco retrógrado. Somos um país atrasado”. … “O problema começa pelo fato de que há no Brasil, historicamente, uma ampla ignorância induzida, que se tornou o fundamento de uma cultura paralela de permanente disputa entre juízos de valor e juízos de realidade. A ignorância é desde a origem do Brasil, um instrumento de poder”. Entretanto, os Estados Unidos experimentaram também a escravidão negra e, mesmo assim, ela não impediu que o país se transformasse na maior potência do planeta.

Antes de formular a hipótese acima, é importante trazer alguns conceitos sobre desenvolvimento e o papel do crescimento econômico – medido pelo PIB ou PIB per capita – neste processo. Caso contrário, não há justificativa para encontrar as causas que levaram o Brasil à armadilha da renda média e a necessidade de sair dela pela eliminação destas causas.

O crescimento econômico aumenta a renda real da maioria das famílias, mas não garante o bem-estar social. Em outras palavras, crescimento econômico é condição necessária, porém não suficiente para melhorar o bem-estar da população. “Portanto, o crescimento econômico é um importante impulso para o bem-estar nos estágios iniciais, mas torna-se menos significante nos estágios posteriores do ciclo de desenvolvimento sustentável” (RUSSO & BRESCIANI, 2020).

Os autores mostram ainda como algumas instituições internacionais avaliam o bem-estar social. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, “identifica três pilares para entender e medir o bem-estar social: a) condições materiais de vida; b) qualidade de vida; c) sustentabilidade”.

As condições materiais consideram renda e riqueza, trabalho e suas condições e moradia. A qualidade de vida reúne as dimensões saúde, equilíbrio vida-trabalho, educação, conexões sociais, engajamento cívico e governança, qualidade do meio ambiente, segurança pessoal e bem-estar subjetivo, muitas vezes conhecido como felicidade. Finalmente, a sustentabilidade se refere às fontes dos recursos que garantem o bem-estar futuro, isto é, capital natural, capital econômico, capital humano e capital social.

 

4. Formulação da hipótese sobre as causas da prisão do Brasil na armadilha da renda média

A armadilha da renda média tem, a princípio, caráter econômico. Desta forma, lançamos mão das opiniões sobre o assunto por parte de alguns analistas brasileiros especialistas na área da Economia. Com isto esperamos criar uma hipótese consistente.

Em sua coluna no jornal O Estado de São Paulo, Celso Ming, faz referência aos quinhentos anos da Reforma Protestante de Martinho Lutero, da qual destacamos:

“Algumas considerações publicadas na imprensa brasileira sobre esses 500 anos sugerem que a Reforma Protestante teve baixo impacto sobre a formação do nosso povo e da nossa cultura. É grave equívoco. O principal impacto pode ser mais bem avaliado de maneira negativa. Enquanto as colônias da Inglaterra e da Holanda nas Américas foram plasmadas pela ética protestante e pelo espírito da Reforma, as colônias de Portugal e Espanha foram construídas pelas doutrinas da Contrarreforma e do Concílio de Trento (1545 a 1563). Essa diferença explica muita coisa. Enquanto as colônias informadas pela Reforma tiveram mais condições para prosperar, construíram nova ética do trabalho, cujo fruto passou a ser apropriado em consequência do mérito e não das concessões do rei, as colônias ibéricas, Nova Espanha e Brasil, foram conduzidas à Inquisição e à retranca, e até hoje continuam paralisadas pelo patrimonialismo, pelo nepotismo e pela corrupção. A Reforma não se conteve nas 95 teses … mas foi alavancada pelo pensamento modernizador, que valorizou o ser humano. Começou com o Renascimento, de Erasmo de Roterdã, foi aprofundado por Descartes, Hobbes e pela crítica ao atraso, que culminou no Iluminismo e em Immanuel Kant. A Contrarreforma caminhou em círculos no âmbito da ortodoxia, da sociedade fechada, das nomeações – que, dependendo da situação do tesouro, podiam ser obtidas a peso de ouro -, das honrarias concedidas pela coroa e por força dos seus monopólios. Nesse modelo, a sociedade não é um conjunto de indivíduos com autonomia para tomar decisões, construir sua vida, escolher seus dirigentes e criar as bases do estado moderno. Na Contrarreforma, a sociedade é formada por associações de subgrupos hierarquicamente organizados, impostos de cima para baixo, e não o fruto do contrato social”. … “Enfim, cá estamos nós, 500 anos depois, tentando construir o futuro com essa matéria-prima, com essa circunstância, com a liberdade possível”. (MING, 2017).

 

Posteriormente, o autor publica na sua coluna artigo sobre a atuação das corporações na política e na economia onde afirma, entre outras coisas:

“É conceito antigo. Dá para dizer que vem da concepção aristotélica da sociedade e da política segundo a qual os homens são naturalmente desiguais. Há as elites dirigentes, os cidadãos comuns e … também naturalmente, os escravos. Enfim, na sociedade há uma ordem. A partir da cabeça, que é o rei, seus membros mantêm posição que corresponde a uma função, como no corpo humano – daí o conceito de corporativismo. Os privilégios decorrem do exercício da função na sociedade. São direitos adquiridos. Cabe ao rei e aos dirigentes organizar essa desigualdade e à Justiça, garanti-la”. … “Em Portugal, a concepção corporativista foi sacramentada por um corpo de leis denominadas Ordenações Manuelinas (do rei dom Manuel), no qual são definidos e reconhecidos os principais privilégios que se entendem como intangíveis, portanto não podem ser removidos nem sequer pela Justiça.” … “Até o fim do Império, o Brasil não reconhecia a igualdade entre os homens. A abolição da escravatura, por exemplo, só chegou 18 meses antes da Proclamação da República. Mas muitos privilégios do Império, como o dos cartórios, continuam aí. Outros foram se instalando e tomando corpo, apesar da revolução iluminista, como certas entidades empresariais e segmentos do funcionalismo público. É gente que se organiza em grupos, bancadas e associações informais para defender seus próprios interesses e os interesses do grupo”. … “E já foi identificada a do BBB (Bala, Boi e Bíblia) que reuniria, evidentemente não em bloco único, os defensores de uma segurança rígida, os pecuaristas e os evangélicos. O presidente Getúlio Vargas inspirou-se no sistema corporativo da Itália fascista, que se organizou a partir de um modelo de governo baseado na representação de grandes grupos de interesses coordenados pelo Estado. Na versão tupiniquim, a ideia pretendeu exercer controle tanto sobre o proletariado como sobre as entidades patronais. A Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, deriva desse espírito. As corporações não se aferram apenas a uma concepção em última análise de desigualdade entre pessoas e, nessas condições, pretendem ser “mais desiguais do que os outros”, no conceito desenvolvido pelo britânico George Orwell no seu livro 1984” (MING, 2018).

 

Marcos Mendes ao analisar 10 causas do baixo crescimento da economia brasileira desde 1985 comenta a história por traz desta realidade sobre a qual nos chama atenção:

“Ao longo da história do país, desde o período colonial, os grupos mais ricos usaram seu poder econômico e antigos laços com a elite política para criar, preservar e ampliar seus privilégios: crédito subsidiado de bancos públicos para grandes empresas; socorros financeiros a empresas e empreendimentos agrícolas; sistema judiciário frágil e sujeito a influência de poder econômico; proteção comercial aos produtores nacionais etc” (p. 74). … “Criou-se no Brasil um forte estímulo ao comportamento rent-seeking, no qual cada grupo tenta extrair o máximo possível de benefícios para si, ao mesmo tempo em que procura empurrar o custo das políticas públicas para outros, fugindo à tributação” (p. 76). … “Em suma, a “a história por traz do baixo crescimento” parece ser a de um conflito social existente em uma sociedade muito desigual, na qual os vários grupos pressionam o governo por políticas distintas.  O Estado, por sua vez, tenta acomodar o conflito “redistribuindo renda para todos, ou quase todos” com efeitos perversos sobre o potencial de crescimento econômico. Cria-se assim, um modelo de baixo crescimento com distribuição dissipativa”. … “Ao longo de quase 30 anos de regime democrático, foi possível equilibrar as pressões políticas e preservar a democracia. A economia, porém, está sobrecarregada por tributação excessiva, infraestrutura ruim, educação precária, altas taxas de juros e ambiente de negócios inóspito. As perspectivas de crescimento de médio prazo são pálidas”. … “Há um cenário negativo, de perpetuação do atual modelo disfuncional. Para que se entre no círculo virtuoso, seria necessária uma queda muito forte da desigualdade, que ainda está em níveis muito altos apesar das reduções da última década” (ps. 78-79) (MENDES, 2014)

Em sua coluna para o jornal Valor Econômico, Armando Castelar Pinheiro tratou da armadilha da renda média, da qual destacamos:

“Entre 1985, ano da redemocratização, e 2018 nosso PIB per capita cresceu à taxa média de 0,9% ao ano (a.a.)”. … “Caminhamos para deixar de ser um país de renda média e voltar a ser um país pobre. Por que o Brasil fracassou de forma tão retumbante em se desenvolver durante um período tão longo? Fracasso que, diga-se de passagem, não damos indicação de estar em vias de superar”. … “Melhor teria sido perguntar por que fomos incapazes de utilizar a mesma “tecnologia de desenvolvimento” adotada por tantos outros países? Por que insistimos em adotar políticas que já se mostraram incapazes de gerar desenvolvimento, quando há alternativas comprovadamente mais bem sucedidas e estas são de conhecimento público? Há anos me debato com estas perguntas e, confesso, não parece haver resposta simples. De algum tempo para cá convergi para a conclusão que uma das principais causas de não nos desenvolvermos é adotarmos o presidencialismo de coalizão, que, talvez não por coincidência, prevaleceu durante todo esse período. Também penso que, sem mudar isso, continuaremos fracassando em nos desenvolver. Como explica Carlos Pereira, o modelo eleitoral adotado pela Constituição de 1988 incentiva o multipartidarismo e, “quanto maior o número de partidos, menor a chance de o partido do presidente alcançar sozinho a maioria de cadeiras do Congresso. Se desejar governar evitando o desconforto da condição de minoria, terá de gerenciar coalizões pós-eleitorais. Para tal, precisa ofertar recursos políticos e financeiros com os potenciais parceiros em troca de apoio político no Legislativo” Entre esses “recursos” estão “ministérios, cargos na burocracia, emendas no Orçamento etc.”. … “Ora, é mais ou menos óbvio que um sistema desse dá fortes incentivos para que o Congresso mantenha o governo -e o país – refém de seu apoio, de forma a poder continuar usufruindo dos “recursos” que lhe são dados pelo presidente. Assim, ainda que não deseje jogar o país no abismo da crise, o Congresso também não deseja que o país se afaste muito dele”. … “A falta de disciplina fiscal, em especial com a forte expansão do gasto público, é outro problema causado, pelo menos em parte, pelo presidencialismo de coalizão. De um lado, porque o presidente precisa de recursos públicos para distribuir entre os partidos com representação no Congresso. De outro, pois a falta de responsabilização dos partidos pelos problemas do país estimula a aprovação de “pautas bombas”. Não por coincidência, a gestão do presidencialismo de coalizão ficou mais difícil a partir de 2015, quando o governo passou a ter de conter o aumento do gasto público”. … “Penso que precisamos caminhar para um sistema com poucos partidos, em que a sociedade reconheça claramente aqueles que apoiam o governo, responsabilizando-os por seus erros e acertos” (PINHEIRO, 2019).

 

Em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo sobre desigualdade, Arminio Fraga relacionou-a com a armadilha da renda média:

“O Bolsa Família é o programa mais relevante e há outras iniciativas, como a política do salário mínimo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e uma série de ações ligadas à saúde, como a Atenção Primária, que é o pilar fundamental do SUS. Mas é preciso turbinar e fortalecer tudo isso”. Perguntado se a China é exemplo, respondeu; “Eles partiram de uma situação igualitária de extrema pobreza, para índices de crescimento gigantescos. Isso gerou riqueza e, em certa medida, um país mais desigual. Porém, o crescimento foi tão astronômico que a qualidade de vida da esmagadora maioria das pessoas melhorou muitíssimo”. … “O Brasil parte de um ponto extremamente desigual e pouco capaz de gerar crescimento. É o pior dos mundos. O País ficou preso nessa armadilha da renda média. E o atual governo, equivocadamente, está preferindo adotar uma linha bem mais liberal, sem olhar o social. Essa era a ideia original, lá atrás, de que o crescimento viria e resolveria o problema”. E, justificou que não deu certo “porque o grau de desigualdade aqui é tal que o Brasil se tornou presa fácil para populismos. E estes, por sua vez, tendem a gerar políticas públicas de péssima qualidade, que não produzem melhoria de vida e bem-estar. A resposta para as extremas desigualdades é investir na criação de oportunidades, melhorando a educação, sobretudo a pública, melhorando a saúde, resolvendo o saneamento básico, investindo em infraestrutura, em bens públicos. Tudo isso é pró-crescimento”. E completou dizendo: “É impossível um país se desenvolver sem um Estado bom. Que cumpra suas funções direitinho e que pense no bem maior, no bem público, e que aja de maneira competente. Pode ser um Estado pequeno, médio, grande, isso não importa. Como se sabe, há países que se desenvolveram com um Estado pequeno, como os EUA. E há outros, como os escandinavos, com um Estado grande. O modelo não faz diferença, desde que o Estado funcione”. (FRAGA, 2020).

 

Recentemente, opinando no jornal O Estado de São Paulo, Roberto Macedo aproveita o momento da pandemia do COVID-19 e cria o termo “embromavírus” para justificar a prisão do Brasil na armadilha da renda média;

““Embromavírus” é metáfora para um mal que acomete seriamente o Brasil, o adiamento ou procrastinação de soluções para graves problemas que o País enfrenta há décadas, ou mesmo séculos. O resultado é sintetizado por sua queda na armadilha da renda média. O crescimento econômico do País desde o início do século passado, revelado por seu produto interno bruto (PIB), foi bastante acelerado até a década de 1970, levando-o, em termos per capita, a deixar o grupo dos países de renda baixa e a integrar o de renda média. Mas ficou por aí, pois desde a década de 1980 o PIB passou a uma fase de estagnação, definida como a de um crescimento bem abaixo do potencial do País, que dura até hoje”. … “Na raiz dos problemas da economia está o “embromavirus”. … “Gestores devem buscar a solução de problemas importantes e urgentes, mas não podem, como se faz aqui no setor público, descuidar dos importantes, mas não tão urgentes, pois essa procrastinação pode agravar tais problemas, e dificultar ainda mais a sua solução. O “embromavírus” chegou ao Brasil desde os seus primórdios. Quem aqui mandava criou problemas e procrastinou sua solução, como ao permitir escravos, adiar a sua libertação e, depois que esta veio, descuidar do sustento deles e da sua educação. Hoje, com seus mandões atacados fortemente por esse vírus, entre outros casos a má qualidade da educação pública infantil e básica permanece como sério problema. A Previdência Social teve sua reforma adiada por décadas e a de 2019 ainda deixou questões por resolver. Há a aversão a reformas, a lenta burocracia, os super salários, um Executivo também lento, os privilégios de um Judiciário igualmente marcado pela lentidão e os de um Legislativo aético ao não se pautar pelo bem comum, salvo exceções cada vez mais excepcionais. Os parlamentares prezam principalmente seus privilégios e a reeleição de seus membros, outorgando-se as tais emendas parlamentares e uma profusão de assessores, o que é indiretamente um financiamento público de campanhas eleitorais para incumbentes, em prejuízo dos demais candidatos. O sistema eleitoral proporcional, para escolha de deputados e vereadores, facilita a eleição de bancadas voltadas para interesses de grupos organizados e que se opõem a reformas que contrariem esses interesses. O que tem isso que ver com o crescimento econômico? Sucumbindo a pressões políticas, o governo passou a um custoso distributivismo de recursos, que levou a um forte aumento da carga tributária. Essa carga retira recursos de empresas e cidadãos, que, da sua renda, poupam e investem uma proporção maior que a do governo, de sua arrecadação e do que toma de empréstimos, o que prejudica o investimento em capital produtivo, um motor muito importante do crescimento. Também ao financiar seus déficits o governo toma poupança do setor privado, e em larga medida a “despoupa” ao não investi-la. No setor financeiro, os altos spreads bancários continuam a inibir quem busca financiar-se para investir produtivamente. Sem investimentos, como em educação, saúde, infraestrutura, incluído saneamento, inovação, competitividade, e outros postergados pelo “embromavírus”, o Brasil não vai aumentar sensivelmente seu PIB per capita, o que equivaleria a tornar seus cidadãos bem mais produtivos por unidade de tempo e precisa ser incutido na cabeça de todos. Ou o País acorda para derrotar o “embromavirus”, ou continuará na estagnação em que se encontra, agravada pela enorme depressão ora em andamento e agravamento. Sem derrotar esse vírus o País permanecerá na armadilha da renda média” (MACEDO, 2020).

 

Logo depois, Zeina Latif também escrevendo para o jornal O Estado de São Paulo abordou diretamente o desafio da armadilha da renda média. Destacamos os seguintes trechos do artigo:

“É mais fácil um país pobre tornar-se um país de renda média do que este se tornar rico. Os economistas Homi Kharas e Indermit Gill, do Banco Mundial, identificaram essa dificuldade e a denominaram como “armadilha da renda média” em 2007”. … “As dificuldades são de duas naturezas. A primeira é mais técnica: o investimento em infraestrutura e capital instalado gera crescimento do PIB, mas em intensidade decrescente ao longo do tempo. Ficar rico exige passos além: ganhos de produtividade, o que depende de muitas variáveis. A segunda dificuldade é política. É necessário um arranjo institucional mais sofisticado envolvendo a academia, imprensa, órgãos públicos e privados para se construir consensos sobre políticas pró-crescimento. Boa vontade dos governantes é essencial, mas não basta. Há um grande consenso entre economistas mundo afora de que a educação de qualidade é variável chave para um país sair da armadilha da renda média. No entanto, em países de renda média não se nota mobilização de atores políticos nessa direção e tampouco envolvimento da sociedade”. … “Nesses países, o setor produtivo é, grosso modo, pouco sofisticado, sendo menos penalizado com a falta de mão de obra qualificada em comparação ao que ocorre em países ricos, que produzem tecnologia e buscam inovação. O que o mobiliza não é a cobrança por educação de qualidade, mas sim benefícios diretos”. … “Direcionar mais recursos para abrir vagas e aumentar salários é tarefa fácil e traz resultados e dividendos políticos rapidamente. Difícil mesmo é pular para um segundo estágio de elevar a qualidade do ensino, como fizeram os países ricos, para manter os jovens motivados na escola e prepará-los para a vida. Especialistas apontam a necessidade de afastar professores pouco eficientes, enfrentar sindicatos, treinar professores, revisar currículos e adequar as escolas para a nova realidade tecnológica” (LATIF, 2020).

 

Após estes comentários dos analistas escolhidos já podemos montar a hipótese que, acreditamos, ser bastante provável para justificar o Brasil ter caído na armadilha da renda média e dela não ter saído mais até agora. A redistribuição dissipativa do Estado para atender os vários grupos que pressionam o governo. apontada por Mendes (2014). A quantidade excessiva de partidos políticos que impedem a sociedade brasileira consiga identificar a responsabilidades deles pelos acertos e erros, levantada por Pinheiro (2019). A enorme desigualdade social que fez o Brasil tornar presa fácil do populismo que gera políticas públicas de péssima qualidade, na visão de Fraga (2020). O “embromavirus” que chegou ao Brasil desde seus primórdios e que sempre procrastinou as soluções de sérios problemas, observado por Macedo (2020). A falta de mobilização de atores políticos e envolvimento da sociedade na direção da educação de qualidade alertada por Latif (2020). Todas essas conclusões, convergem para a sociedade aristotélica da aceitação natural da desigualdade entre os seres humanos adotada pelo corporativismo, tomado como sendo um dos fundamentos básicos da Contrarreforma, seguida por Portugal e Espanha desde a colonização da América, descrita acima por Ming (2018). Tal perfil social compõe a raiz da nossa hipótese a ser testada, ou seja, os motivos que levaram o Brasil a ficar preso e não se libertar da armadilha da renda média são oriundos de um forte traço de corporativismo da sociedade brasileira deixado como herança por Portugal, desde o período da colonização, por este último ter adotado os princípios da Contrarreforma para se opor a Reforma Protestante de Martinho Lutero.

Em nossa hipótese, o conceito de corporativismo é o indicado pelos artigos do Ming (2017 e 2018), citados anteriormente, no qual a formação da sociedade obedece a uma ordem. “A partir da cabeça, que é o rei, seus membros mantêm posição que corresponde a uma função, como no corpo humano”. Portanto, “nesse modelo, a sociedade não é um conjunto de indivíduos com autonomia para tomar decisões, construir sua vida, escolher seus dirigentes e criar as bases do estado moderno”.

Todavia, devemos ter em mente que o conceito de corporativismo é mais amplo. De acordo com Noto (2014), o corporativismo é um fenômeno multifacetado compreendendo muitos aspectos. Para o autor, embora haja importantes teorias, o corporativismo é indubitavelmente fundamentado em fatos históricos. Mais de 2000 anos de História nos impedem de defini-lo simplesmente como estando posicionado em algum lugar entre o capitalismo e o socialismo ou como a doutrina econômica de alguns regimes autoritários.

Dito isso, passamos a testar nossa hipótese, nos próximos itens, confrontando-a com alguns fatos históricos que julgamos importantes para sua comprovação.

 

5. Formação dos Estados Unidos

Antes de tudo, temos que testar nossa hipótese diante dos Estados Unidos, tomado como referência neste estudo, indagando a razão pela qual a hipótese a ser testada não os impediu de alcançar alto grau de desenvolvimento econômico. Afinal, a estratificação da sociedade aristotélica também aparece por lá. A meritocracia tomada como valor primordial da Reforma Protestante e aceita pela Inglaterra e Holanda conforme relatada por Ming (2017) nos dá uma pista.

Vamos lançar mão de alguns trechos iniciais da seminal obra de Alexis de Tocqueville escrita no século XIX sobre a democracia nos Estados Unidos:

“A América é o único país onde se pôde assistir ao crescimento natural e tranquilo de uma sociedade e no qual foi possível distinguir precisamente a influência exercida pela origem sobre o futuro dos Estados” (p.54). … “Na época das primeiras imigrações, o governo comunal, esse fecundo germe das instituições livres, já penetrara profundamente nos hábitos ingleses e, com ele, o dogma da soberania do povo se introduzira no próprio seio da monarquia dos Tudores. Estávamos, por essa época, em meio às querelas religiosas que agitaram o mundo cristão. A Inglaterra precipitara-se com extrema veemência naquela nova ordem de coisas. O caráter dos habitantes, que sempre fora grave e reflexivo, tornara-se austero e argumentador. A instrução havia crescido muito naquelas lutas intelectuais; o espírito recebera nelas uma cultura mais profunda. Enquanto ocupavam as gentes de falar de religião, os costumes tornavam-se mais puros. Todos esses traços gerais da nação se encontravam, em maior ou menor grau, na fisionomia daqueles filhos seus que tinham ido buscar um novo porvir nas bordas opostas do Oceano” (p.55). … “Todas colônias inglesas tinham pois, entre si, na época de seu nascimento, extraordinárias semelhanças. Todas, desde o princípio pareciam destinadas a oferecer terreno propício ao desenvolvimento da liberdade, não a liberdade aristocrática de sua pátria, mas a liberdade burguesa e democrática, de que a história do mundo de nenhum modo apresentava ainda um modelo completo. No meio desta uniformidade geral, percebiam-se, porém, acentuados matizes, e é necessário mostrá-los. Podem distinguir-se na grande família anglo-americana dois ramos principais que até o presente, cresceram sem se confundir inteiramente, um do sul e um do norte. A Virginia recebeu a primeira colônia inglesa. Os imigrantes lá chegaram em 1607. Nessa época, estava ainda a Europa singularmente preocupada com a ideia de que as minas de ouro e prata constituem a riqueza dos povos: ideia funesta que mais empobreceu as nações europeias que a ela se entregaram e destruiu mais homens na América do que a guerra e todas as más leis no seu conjunto. Foram, pois, homens à procura de ouro que se enviaram à Virgínia; homens sem recursos e sem conduta, cujo espírito inquieto e turbulento perturbou a infância da colônia e tornou incertos os seus progressos. Chegaram depois os artífices e os cultivadores, raça mais moral e mais tranquila, mas que quase não se elevava, em ponto algum, acima do nível das classes inferiores da Inglaterra. Nenhum pensamento nobre, nenhuma combinação imaterial presidiu à fundação das novas colônias. Mal era criada esta, introduzia-se nela a escravidão; foi este o fato capital, que deveria exercer uma influência imensa no caráter, nas leis e no futuro todo do Sul. A escravidão … desonra o trabalho; introduz a ociosidade na sociedade e, com ela, a ignorância e o orgulho, a pobreza e o luxo. Obnumbra os poderes da mente e adormece a atividade humana. A influência da escravidão, combinada com o caráter inglês, explica os costumes e o estado social do Sul. Sobre esses mesmos alicerces ingleses, desenvolvera-se ao Norte matizes inteiramente contrários. … Foi nas colônias inglesas do Norte, mais conhecidas sob o nome de Estados da Nova Inglaterra, que se combinaram as duas ou três ideias principais que hoje constituem as bases da teoria social dos Estados Unidos. Os princípios da Nova Inglaterra propagaram-se, de início pelos Estados vizinhos; depois, pouco a pouco, foram chegando aos mais afastados, acabando, se assim me posso exprimir, por penetrar na Confederação inteira. Exercem hoje a sua influência para além dos seus limites, abrangendo todo o mundo americano. A civilização da Nova Inglaterra foi como esses fogos que se acendem nas culminâncias e que, depois de ser propagado o calor à sua volta, ainda tingem com a sua claridade os mais remotos confins do horizonte. A fundação da Nova Inglaterra ofereceu um espetáculo novo; ali, tudo ere singular e original. Quase todas as colônias tiveram como primeiros habitantes homens sem educação e recursos, impelidos pela miséria e pela má conduta, para fora dos países que os tinham visto nascer, ou especuladores ávidos e empreendedores de indústria. Há colônias que não podem reclamar sequer tão honrada origem: São Domingos foi fundada por piratas e, hoje em dia, as cortes de justiça da Inglaterra se encarregam de povoar a Austrália. Os imigrantes que foram estabelecer nas praias da Nova Inglaterra pertenciam todos às classes independentes da metrópole. A sua reunião em solo americano apresentou, desde o início, o fenômeno singular de uma sociedade na qual não se encontravam nem grandes senhores, nem povo, nem, por assim dizer, pobres ou ricos. Havia, guardada as proporções, um acervo maior de inteligência distribuído entre aqueles homens do que no seio de qualquer nação europeia de nossos dias. Todos, sem exceção de um sequer, tinham recebido uma educação bastante avançada e vários dentre eles se tinham feito conhecer na Europa pelos seus talentos e pela sua ciência. As outras colônias tinham sido fundadas por aventureiros sem família; os imigrantes da Nova Inglaterra levaram consigo admiráveis elementos de ordem e de moralidade; entravam pelo deserto acompanhados de suas esposas e de seus filhos. Mas o que os distinguia sobretudo de todos os outros era a própria finalidade de sua empreitada. Não tinham abandonado o seu país forçados pela necessidade, deixavam para trás uma posição social cuja perda seria lamentável e meios de vida garantidos; tampouco passavam ao Novo Mundo a fim de ali melhorar a sua situação ou de fazer aumentar as suas riquezas; arrancavam-se às doçuras da pátria para obedecer a uma necessidade puramente intelectual, expondo-se às misérias inevitáveis do exílio, desejavam fazer triunfar uma ideia. Os imigrantes, ou, como eles mesmos merecidamente se denominavam, os peregrinos (Pilgrims)[8], pertenciam àquela seita inglesa que, por causa da austeridade de seus princípios, tinham recebido o nome de puritana. O puritanismo não era apenas uma doutrina religiosa; confundia-se ainda, em vários aspectos, com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas. Por causa dessa tendência, tinha ganha os seus mais perigosos adversários. Perseguidos pelo governo da mãe-pátria, ofendidos no rigor de seus princípios pela marcha quotidiana da sociedade em cujo seio viviam, os puritanos procuravam uma terra tão bárbara e tão abandonada pelo mundo que nela pudessem ainda viver à sua maneira e rezar a Deus em liberdade” (ps. 56 – 57). … “Satisfeitos de ver afastarem-se dele germes de perturbações e elementos de novas revoluções, o governo inglês assistia de bom grado àquela emigração numerosa. Chegava até a encorajá-la com todo seu poder e mal parecia preocupar-se com o destino daqueles que iam procurar em solo americano asilo contra os rigores das suas leis. Dissera-se que encarava a Nova Inglaterra como uma região entregue aos devaneios da imigração e que deveria ser abandonada aos livres esforços dos inovadores. As colônias inglesas, e foi esta uma das principais causas da sua prosperidade, sempre gozaram de maior liberdade interior e de maior independência política, que as de outras nações; em nenhuma parte, porém, foi esse princípio de liberdade mais completamente aplicado que nos Estados da Nova Inglaterra” (p. 60). (TOCQUEVILLE, 2010).

 

Após a publicação da Declaração de Independência em 4 de julho de 1776 e as hostilidades militares contra a Inglaterra que se seguiram, finalmente esta reconhece, através do Tratado de Paris em 1783, a independência dos Estados Unidos da América. Em 1787 a Assembleia Constituinte elabora sua Constituição. De acordo com Nancy Priscilla S. Naro, a Constituição encorajou o surgimento de um sistema partidário, sendo o Partido Republicano um dos primeiros a surgir. Vejamos a seguir alguns comentários da autora:

“A proposta de cidadania tinha como traço fundamental o vínculo entre o cidadão e a economia de mercado; mas isto foi insuficiente para eliminar os antigos localismos do período posterior à independência, que voltaram à tona, atualizando as divergências entre os estados recém-formados. Mesmo assim, os sentimentos republicanos e capitalistas se juntaram aos poderes do Estado para motivar a expansão gradativa do mecanismo do mercado. Para T.H. Marshall[9], os direitos que formaram o elemento civil da cidadania no século XVIII não estavam em conflito com as desigualdades da sociedade capitalista; eram, ao contrário, necessários para a manutenção daquela determinada forma de desigualdade, porque o núcleo da cidadania se compunham de direitos civis tidos como indispensáveis a uma economia de mercado competitivo. Esta definição de Marshall seria mais relevante para a cidadania que se estava desenvolvendo no Norte. Lá, a influência moral e religiosa dos primeiros colonos impediu que a sociedade adotasse as normas e os valores associados à condição de nascimento, de linhagem e de riqueza, como era comum na Europa da época. A sociedade do Norte consolidou a sua participação política através dos governos das comunidades locais onde a soberania do povo era respeitada. É claro que, nesta sociedade estável e há muito estabelecida, reinava o princípio do igualitarismo. Na prática, estas comunidades elegiam líderes considerados como portadores de uma educação formal e de probidade moral. E, embora fosse praticamente anulada no Norte a restrição do voto àqueles que possuíam propriedades, o sufrágio eleitoral mantinha-se restrito àqueles reconhecidos com “gente de bem”. Antes da independência, a maneira pela qual a coerção econômica externa se manifestava sobre as colônias situadas ao norte da Pensilvânia foi diferente da das colônias do Sul. Por um lado, a forma pela qual foi feita a distribuição de terras no Norte permitiu ao pequeno proprietário trabalhar em conjunto com sua família e diversificar progressivamente a sua produção. O excedente desta produção era finalmente destinado aos mercados locais e regionais” (p.14). … “No Sul, as raízes sociais eram menos profundas do que no Norte. A própria distância entre as plantations espalhadas no território dificultava um convívio social intenso entre os colonos, como o que era visto nas cidades do Norte. Por isso, predominou no Sul um sistema de distribuição de terras administradas por grandes proprietários, que não eram portadores de privilégios especiais, que lhes permitissem controlar a população nas suas terras no estilo de um grande senhor feudal. Mas, mesmo assim, o conceito de cidadania no Sul se associou ao poder absoluto de um só homem” (p.15). … “Uma plantation é uma propriedade agrícola extensiva dirigida por proprietários (organizados em sociedades mercantis) e operada por uma força de trabalho submetida ao controle dos primeiros. Contando com o emprego de abundantes capitais, tem como objetivo suprir um mercado de grande escala. Os fatores de produção são aí dirigidos principalmente para garantir a acumulação do capital mercantil. A partir da década de 1630, escravos foram introduzidos com bastante regularidade para cumprir as exigências da produção mercantil” (p.16). … “A Constituição de 1787 estipulava que a importação de escravos seria permitida apenas até o ano de 1807 e, mesmo assim, com a cobrança pela federação de um imposto sobre cada escravo importado. … Naturalmente, a questão da expansão devia ser analisada através dos pontos de vista quer dos defensores da escravidão quer dos que defendiam a mão-de-obra livre. E, à medida que os Estados Unidos se expandiam, o problema tornava-se cada vez mais discutido” (p.19). … “Os discursos públicos do candidato vitorioso do partido[10] para a presidência em 1860, Abraham Lincoln, deixavam bem claros, já na década de 1850, que a nação não poderia suportar por tempo indeterminado a coexistência de dois sistemas que eram diametralmente opostos. Ele advertiu que um acabaria predominando sobre o outro. Na verdade, Lincoln procurava preservar o mundo pré-industrial – o mundo do artesão e do assalariado, que, segundo ele, tinham possibilidades de ascender socialmente naquela sociedade. Não se entenda, por isso que Lincoln se preocupasse com a condição dos operários que eram vítimas das desigualdades provocadas pelo capitalismo. Interessava-lhe, apenas, a abolição do mal moral que ameaçava expandir-se e tomar o controle da sociedade livre: a escravidão. Segundo seu pensamento, a escravidão enfraquecia o poder da mente e paralisava a atividade humana. Ela desonrava o trabalho (entendido como liberdade) e introduzia na sociedade a ociosidade, a ignorância, o orgulho, a pobreza e o luxo ostentatório” (ps. 31 – 32). … “As opiniões dos historiadores diferem com respeito às principais causas da guerra entre os estados conhecida como a Guerra Civil. Para uns, a questão das tarifas foi de primeira importância; para outros, foi a escravidão a causa principal. E um terceiro conjunto de opiniões ainda ressalta que a questão da preservação da União foi o dado decisivo. A Guerra Civil começou em 1861, depois da separação dos estados sulistas da União e da formação de uma Confederação dos Estados do Sul … Depois de quatro anos de luta, o Sul reconheceu sua derrota e terminou em 1865 uma guerra que custou … 250 000 vidas do Sul e 360 000 vidas do Norte” (p. 34) … O legado da Guerra Civil acabou sendo a transmissão para o negro de uma condição ambígua: a de ser nem escravo e nem cidadão. O negro passou ainda muitos anos como um membro de um sistema de castas e vivendo como um cidadão de segunda classe numa sociedade que, desde o século XVIII tinha se manifestado a favor da proposta de que “todos os homens eram criados iguais” (p. 38). (NARO, 1991).

 

Não podemos nos esquecer de que a independência dos Estados Unidos coincidiu com o início da Revolução Industrial na Inglaterra. Após o final da Guerra Civil, as condições do país se mostraram favoráveis a que ele aproveitasse a oportunidade de embarcar naquele processo histórico da Europa. Podemos ainda supor que o capitalismo industrial estivesse alinhado aos valores da Reforma Protestante e, portanto, que o caráter empreendedor do indivíduo e as forças do mercado seriam, por si sós, suficientes para iniciar essa transformação durante o século XIX sem a participação maior do Estado. Todavia, Reginaldo C. Moraes & Maitá de Paula e Silva, mostram o contrário, ou seja, que a participação do Estado foi de vital importância para que os Estados Unidos se tornassem a maior potência capitalista do mundo. Vamos então extrair alguns trechos dos autores para entender melhor como esta transformação aconteceu durante o século XIX.

“Na primeira metade do século XIX, dois ilustres europeus visitaram a jovem república americana e delas desenharam retratos bem diferentes. O magistral Da democracia na América, de Alexis de Tocqueville, levava aos europeus aquilo que a aristocracia normanda via como as grandes lições do Novo Mundo – o avanço da igualdade, suas glórias e seus riscos. A ciência política ocidental (e a norte-americana, em especial) sublinhou duas ideias fortes desse estudo. Uma delas a inclinação dos norte-americanos para criar e multiplicar associações civis. A outra a fraca presença do Estado na regulação da vida social. De outro lado, o alemão Georg Friedrich List destacava, no experimento além-mar, algo que sugeria lições bem diferentes. Entusiasmava-se com a intervenção estatal na construção da infraestrutura para o desenvolvimento do país, com ênfase nas ferrovias e na política industrialista de Alexander Hamilton[11]. A mensagem de List não se tornou mainstream na ciência política norte-americana, mas fez germinar correntes heterodoxas nada desprezíveis no Novo Mundo, no Velho Mundo e … naquilo que viria ser o “Terceito” Mundo” (p. 1). …“[O fim da guerra civil] muda completamente o cenário do país. … a destruição do Sul e a subordinação dos democratas – escravistas, latifundiários e separatistas – aos republicanos – abolicionistas, industrialistas e integracionistas. Os indicadores de riqueza deslocam-se, algo que só podemos compreender se levarmos em conta que grande parte dos “ativos” do Sul era composta de uma propriedade que evaporou exatamente em razão da guerra, uma massa enorme de escravos que deixaram de ser “propriedade” para se tornar “gente”. … Ao longo do século XIX, o país acelerou a marcha para o oeste, abrindo estradas, construindo escolas … O modo como se deu esse avanço das ferrovias para o oeste também é uma particularidade norte-americana, quando comparado com o mesmo processo na Inglaterra. Os estudiosos da expansão ferroviária na ilha-mãe apontam o caráter essencialmente privado do empreendimento: as linhas eram inversões de capitalistas interessados em responder a uma demanda claramente identificada. Uma linha ligava uma cidade a outra e assim o investimento era recuperado. Nos Estados Unidos, as linhas saiam de algo mais ou menos parecido com uma cidade e iam em direção a algo parecido com … nada. De fato, as cidades nasceriam ao longo da ferrovia, quase como resultado da construção da linha, não como demanda pressuposta e atendida. … As terras doadas pela União viabilizaram as ferrovias, fizeram surgir as cidades, orientaram a ocupação do território e abriram caminho para o sonho de migrantes e imigrantes de todo tipo. Além disso, criaram as bases para o surgimento do maior mercado interno do mundo, algo decisivo para os ganhos de escala das corporações que vão surgir no fim do século. E, de quebra, foram as especulações financeiras em torno de terras e ferrovias que deram origem às primeiras grandes fortunas do país” (ps. 27 – 31). … “Outro fato notável da história norte-americana na virada do século XIX para o XX foi a mudança radical das estruturas da produção e do mercado, do capitalismo competitivo fortemente ancorado em empresas individuais e familiares para o corporate capitalism [capitalismo corporativo]. … O caminho rumo ao capitalismo corporativo foi traçado em duas etapas. Antes de 1890, eram poucas as manufaturas organizadas segundo esse padrão. As grandes empresas privadas corporativas eram coisas híbridas – quase agências governamentais, licenciadas pelo Estado, verdadeiros “santuários” privados. E concentravam-se em áreas como infraestrutura, transporte, comunicações e crédito. Num segundo momento, diz Roy[12], isso se estendeu à manufatura. Até 1890, indústria e capital financeiro viviam em mundos bem separados, do ponto de vista institucional. Os papéis negociados em Wall Street concentravam-se em negócios como ferrovias, telégrafos, obras públicas de municípios e estados. A junção dos dois mundos – Wall Street (finanças) e Main Street (indústria e comércio) – é o que se pode chamar de revolução corporativa. … Esse processo provoca transformações na forma da propriedade – algo que o estudo de Berle e Means[13] já sublinhara em 1932, ao chamar a atenção para a separação entre gestão e propriedade – e alavanca um novo segmento dentro da classe capitalista norte-americana. … O capitalismo corporativo, levou ao divórcio entre a representação em papel da propriedade e os objetos físicos do capital, redefinindo deste modo o significado da propriedade. Esta se tornou mais substituível e alienável. Podia ser parcelada e vendida sem afetar diretamente a administração e a operação, criando uma forma de lucro distinta das rendas e gastos da companhia. … Como resultado, as empresas capitalizadas como corporações publicamente negociadas podiam operar de forma algo independente dos rendimentos, podiam crescer com facilidade e associar-se com relativamente pouco capital em dinheiro” (ps. 32 – 35) (MORAES & PAULA E SILVA. 2013).

 

A interferência do Estado para o desenvolvimento do país se deu também no campo do ensino e pesquisa. Isto resultou numa vasta rede de universidades e faculdades (colleges) no século XIX através do sistema de doação condicional de terra federais (lend grant colleges and universities). Vejamos alguns aspectos importantes desta evolução segundo os autores acima:

“No período colonial, o ensino superior, nos Estados Unidos, concentrava-se em algumas poucas instituições, sujeitas a diferentes graus de controle público, mas essencialmente controladas por entes privados. Após a Guerra da Independência, alguns estados começaram a criar universidades públicas. … O congressista Justin Smith Morrill apresentou sua primeira proposta de lei para a criação de land grant colleges em 1857. Após um ano de manobras legislativas, o Congresso aprovou em 1859 a Lei Morrill (Morrill Act). Ela foi vetada pelo presidente Buchanan (eleito com apoio dos sulistas) sob a alegação de que violava a tradição da política federal de deixar aos estados o controle da educação. … Com a Guerra Civil e a ausência dos congressistas dos estados do Sul, então separados da União, o ambiente no Congresso se tornou mais favorável e a Lei Morrill foi aprovada em 1862. … A Lei Morrill concedia terras públicas aos estados para que fossem usadas (diretamente ou por sua venda) para o estabelecimento de ao menos um college voltado para a agricultura e a engenharia. Embora alguns estados já possuíssem universidades pública, a maioria respondeu à lei com legislações que estabeleciam novos colleges, ao invés de simplesmente canalizar os recursos recebidos para os já existentes. Assim começou a se formar uma grande rede de instituições, colleges e universidades, que, ainda hoje, mantem a designação A&M (Agricultura e Mecânica)” (ps. 46 – 48) … “A trajetória do sistema é reveladora. Em 1860, década em que os land grant colleges foram estabelecidos, metade da população norte-americana vivia no campo e mais da metade da força de trabalho era empregada na agricultura. O número de propriedades agrícolas aumentou até 1920, mas depois começou a cair e a população rural diminuiu rapidamente. No entanto, a produtividade agrícola cresceu tanto depois da criação dos land grant colleges – em parte como consequência delas – que um número menor de propriedades agrícolas e agricultores pode alimentar, hoje, muito mais pessoas do que há cem anos” (p.55). … “Algo salta aos olhos quando observamos a história da economia norte-americana, ainda em seus primórdios. É que o país que poderia ser chamado “celeiro do mundo” no século XIX, também havia produzido um modo novo de organizar a indústria, o “sistema norte-americano de manufatura”, que já assombrava os europeus em 1850, antes, portanto, da segunda revolução tecnológica e do casamento da ciência com o mundo produtivo. Numerosos historiadores têm sublinhado que, até então, os inventos eram herdeiros apenas indiretos, quando tanto, do saber que se gerava nas academias: artesãos habilidosos eram responsáveis pelos dispositivos que revolucionavam o mundo desde o fim do século XVIII. E o que o “sistema norte-americano de manufatura” introduzia não era um ou outro invento, mas algo que autores como Vernon Ruttan[14] chamam de “general purpose technologies”, inovações persuasivas e revolucionárias que invadem e transformam radicalmente vários ramos produtivos. O sistema norte-americano era um modo novo de organizar o trabalho produtivo e gerar o produto final: a ideia das partes padronizadas e intercambiáveis, aparentemente engendrada pelos franceses, mas desenvolvidas nos arsenais da jovem república norte-americana e estendida a seus ramos industriais. Um meio caminho para a produção em massa que se configuraria, no começo do século XX, com o taylor-fordismo. … A capacidade de responder às necessidades dos negócios e da indústria, em especial, não estava apenas confinado[a] no lado “pesquisa” do sistema de ensino superior norte-americano, altamente descentralizado e capilarizado. O alto grau de acessibilidade teve um papel fundamental nesse caso. Já se notava uma iniciativa inovadora na relação do ensino superior com a agricultura por meio dos land grant colleges e das estações experimentais, no século XIX. E prolongava-se com a multiplicação de escolas superiores voltadas para a formação de professores (teachers colleges), os junior colleges e as instituições locais e estaduais que democratizavam e capilarizavam o acesso. Mowery e Rosenberg[15] destacam que a “crescente utilização de métodos e conhecimentos científicos na indústria era amplamente acelerada por uma expansão de pessoal tecnicamente treinado – especialmente engenheiros”. Reconhecem que o treinamento “era em com frequência de natureza elementar e não preparava os engenheiros para trabalhar na fronteira da ciência”. No entanto, asseveram que esse – e não necessariamente a “frontier science” – era o tipo de conhecimento requerido pelo aparato industrial em expansão. Os engenheiros são vistos por esses autores como “mensageiros” ou “portadores” do conhecimento científico, de modo que o número de pessoas que lidavam com conhecimento e métodos científicos nas atividades produtivas era bem maior do que aquilo que a sociedade costuma rotular de “cientistas”” (ps. 57 – 60) … “Ora, tanto a natureza da “maioria dos trabalhos” quanto o perfil das “técnicas relevante” para execução mudam velozmente. Assim, muda não apenas o repertório das “habilidades para finalidades gerais” que o sistema educativo tem de prover, como também a forma e os ritmos de sua provisão. No gerenciamento dessa mudança, enquadrando-a em uma grande estratégia nacional que vai além das divisões partidárias, um papel central coube ao estado norte-americano, um ente que está longe de ser simples expectador da mudança e resultado passivo de pressões de grupos de interesse ou paralelogramos de forças vetoriais” (p. 78). (MORAES & PAULA E SILVA. 2013).

 

6. Formação da sociedade brasileira

Desde o início do século XVI até o final do século XVIII, a colonização portuguesa se caracterizou pela exploração das riquezas da América, a começar do pau-brasil, conforme nos mostra Jorge Caldeira et al de cuja obra retiramos alguns trechos:

“No século XVII, o trabalho em toda Europa ainda era organizado segundo um modelo medieval. No campo os senhores cobravam impostos e tinham participações nas colheitas, mas não interferiam no modo como o trabalho era realizado. Nas cidades, as corporações de ofícios determinavam os métodos de produção e os preços, sobre os quais os comerciantes não tinham o menor controle. Na América, ocorreu algo muito diferente. A escravidão em massa permitiu outra organização do trabalho. Como não estavam sujeitos a nenhuma limitação ao seu poder imposta pelos costumes ou pela tradição, os senhores de engenho portugueses acabaram mostrando um protótipo do que seriam as grandes indústrias. As tarefas dos escravos eram definidas segundo as necessidades da produção. Na época da moagem de cana, trabalhavam dia e noite no engenho, em turnos, como hoje nas grandes fábricas. Tal coisa seria inconcebível no esquema feudal. Além disso, como ocorreria na Europa da Revolução Industrial, os escravos não eram donos de suas ferramentas, tendo de usar as do senhor como esse indicasse. Para os proprietários de engenhos, o negócio era excelente: a produtividade era altíssima se comparada à da Europa e os lucros, imensos. Para escravos, contudo, manter esse ritmo de trabalho era massacrante. Em média, não suportavam mais de oito anos de labuta em engenho sob esse regime, ficando incapacitados ou morrendo. Os índios sucumbiam com rapidez ainda maior. Só restava aos escravos tentar reduzir o ritmo de trabalho ou então fugir. O primeiro método diminuía o esgotamento, mas era combatido pelos feitores com o chicote. A fuga, no início mais usada pelos índios, bons conhecedores do território, passou depois a atrair também os negros do Nordeste na medida em que aprendiam a sobreviver no mato. Para minimizar isso, os senhores recorriam aos capitães-do-mato, em geral mestiços que caçavam escravos fugidos em troca de recompensa” (p. 51). … “Apesar de sua desumanidade – ou talvez por causa dela -, o tráfico de africanos foi fundamental para os brasileiros. Proibidos de exercer por sua conta o comércio internacional, a grande fonte de lucros durante toda a era mercantilista, os habitantes da Colônia encontraram uma fresta e uma oportunidade no comércio de escravos. Na época da invasão holandesa de Pernambuco, a Coroa portuguesa (então parte da União Ibérica), sem dispor de alternativas, permitiu que negociantes brasileiros armassem navios para comercializar com a África. Estes – como não dispunham de recursos para concorrer com os ingleses, franceses, holandeses e espanhóis – montaram um esquema de escambo: seus navios levavam para a África tabaco, aguardente e búzios produzidos no Brasil e os trocavam por escravos. A autorização para que os brasileiros fizessem tais negócios nunca foi aceita pelos portugueses, que sempre protestaram contra ela. Os coloniais, por sua vez, agarraram a oportunidade por unhas e dentes. Como produziam as matérias-primas para a troca, acabaram se impondo e romperam, no Brasil, o ciclo do comércio triangular. A partir do século XVIII, houve uma divisão: navios e comerciantes portugueses cuidavam do comércio europeu, enquanto os brasileiros ficaram com os negócios africanos. O custo disso foi elevado. Os navios brasileiros jamais receberam proteção da marinha portuguesa, e assim tornaram-se alvos fáceis na África. Sem temer represálias, naus de todos os países europeus os assaltavam para tomar tabaco e aguardente. E, além disso, volta e meia uma ordem régia mandava prender ou tirava os bens de comerciantes que sobressaiam. Ainda assim, valia a pena. O lucro médio de uma travessia bem sucedida, isto é, daquelas nas quais não morreriam de fome ou sede muitos escravos, era em geral de 50%, num período de três meses. Com o extraordinário aumento da demanda por escravo após a descoberta do ouro, os lucros cresceram ainda mais. Em função disso, os traficantes tornaram-se cada vez mais poderosos. No final do século XVIII eram os homens mais ricos da Colônia, com fortunas maiores do que as dos mais ricos fazendeiros e mineradores. Logo os traficantes diversificaram suas atividades, passando a armadores de navios e emprestadores de dinheiro a juros altos. E, tanto no Rio de Janeiro como na Bahia, passaram a oferecer seguros de grande porte, de modo a atenuar os riscos das viagens” (p. 76). … “A súbita riqueza do ouro tornou o Brasil atraente para um tipo de português que raramente viera para cá no início da colonização: os nobres. No século XVIII, porém, eles começaram a ocupar cargos como os de governador-geral, comandantes de capitanias ou até intendentes de certas regiões. Como responsáveis pela coleta de impostos, não lhes era difícil de enriquecer. E havia muitos impostos a serem cobrados. Em geral, a Coroa ficava com 20% do ouro extraído: era o “quinto”. Mas também havia direitos de passagem de escravos e mercadorias para as zonas mineradoras, taxas alfandegárias, impostos por indivíduo. Todos esses tributos eram pagos sem reclamações, pois os caminhos melhoravam e a autoridade dirimia os inevitáveis conflitos” (p. 87). (CALDEIRA et al, 1999).

 

O século XIX foi de grandes transformações para o Brasil. Em 1808 ele se transforma em Colônia-Reino com a chegada de D.João VI acompanhado da Corte e da Família Real em fuga das invasões napoleônicas na Europa. Em 1822, ocorre a Independência em relação a Portugal, seguida de dois reinados – D.Pedro I e seu filho D.Pedro II – e, em 1888, a abolição da escravatura. Finalmente, em 1889 termina o regime imperial em função da Proclamação da República. Vamos destacar alguns aspectos relevantes deste período tomando como referência Adriana Lopez & Carlos Guilherme Mota:

Exótica e pitoresca, a cidade do Rio de Janeiro, muito precariamente, tornou-se uma capital cosmopolita. Grande quantidade de pintores, artistas, escritores, comerciantes, diplomatas, financistas, jornalistas e um leque variado de profissionais deram um novo tom à vida social, política, econômica e artística no Brasil. A ex-colônia passou a beneficiar-se de internacionalização, entrando no circuito mundial e livrando-se de alguns entraves do sistema colonial. … A presença inusitada no Novo Mundo do paciencioso príncipe regente João de Bragança, casado com a inquieta Carlota Joaquina de Bourbon, não evitou que o processo de descolonização continuasse em curso no mundo luso-brasileiro, e nele se afirmasse as novas elites nativas, com suas lideranças formadas e cientes de seu papel nos negócios do Estado e nas relações internacionais. Tal processo, um tanto desacelerado pela transmigração da corte, revela-se na série de movimentos liberais e liberal-nacionais, desde a insurreição republicanas no Nordeste, em 1817 e 1824, movimentos com foco em Recife (Pernambuco), a Independência em 1822, prosseguindo depois na expulsão de Pedro I em 1831 e nos conflitos, levantes e revoluções do período regencial (1830-40). Quando Pedro II neto de João VI, assumiu a Coroa com o golpe da Maioridade em 1840 definiu-se a “paz” do Segundo Império. ,,, Neste longo processo, articulou-se o complexo sistema oligárquico-imperial escravista (1822-1889), cristalizando-se num modelo político e burocrático, já nacionalizado, de grande poder e complexidade administrativa asfixiante. … Única monarquia na América do Sul – com hábitos, mecanismos e até uma nobreza própria, criada artificialmente após a Independência -, ao longo do século plasmou-se no Brasil uma sociedade aristocrática de mentalidade arraigadamente escravista. Escravismo que penetrou fundo nas instituições e, sobretudo, na maneira de pensar-se a vida social e política. … Nesse período decisivo da formação histórica de Estado-nação brasileiro, travaram-se embates crescentes – no plano social e na construção da arquitetura política -, que se prolongariam pelo século a fora. … Mais tarde, a Guerra contra o Paraguai (a guerra da Tríplice Aliança, entre 1865 e 1870) revelaria o lado brutal dessa época, provocando a reação dos jovens militares das camadas médias urbanas que, ao se recusarem a ser “capitães-do-mato” em terras estrangeiras, ampliaram as razões para o movimento republicano” (ps. 305 – 307). … “A abolição do tráfico de escravos (1850) foi um dos principais fatores que afetaram a economia do Império na segunda metade do século XIX. O vínculo econômico entre o Império e os países industrializados continuou o mesmo: o Brasil era um país essencialmente agrário-exportador, isto é, especializava-se na produção agrícola para ser vendida no mercado internacional. Se os principais gêneros exportados pelo Brasil durante o período colonial foram o açúcar e o algodão, no século XIX, nas províncias do Rio, Minas e São Paulo, o café tornou-se o produto de exportação mais rentável para os cofres do Tesouro. Já no final do século, a borracha e o cacau assumiram, no comércio de exportação, lugar de importância comparável. O café fora introduzido no Brasil na primeira metade do século XVIII. Naquela época, a mineração de ouro e diamantes era a principal atividade econômica da colônia: a maioria dos investimentos em capital e mão-de-obra era absorvida pelas minas. No início do século XIX, o café adquiriu importância econômica, tornando-se, na década de 1830, um dos principais gêneros tropicais de exportação para os países industrializados. … No Vale do Paraíba, formaram-se grandes fazendas, com seus pomares, bosques e senzalas, e nelas se cultivou um estilo de vida europeizado, com bibliotecas, mestres-escolas e preceptores europeus. Desenvolveu-se um colar de cidades, e arregimentaram-se milhares de escravos. … Esvaziada a economia cafeeira a decadência deixou uma nobreza da terra déclassée e as “cidades mortas”, tão bem descritas por Monteiro Lobato. E, ainda, uma particular cultura de violência, que pode ser constatada no estudo de Maria Sylvia de Carvalho Franco[16], além de persistente ranço conservador de uma sociedade com marcas profundas de um ethos estamental-escravista passadista, asfixiante” (ps. 479 – 480). … “Em 1889, o Brasil do fim do Império era um semideserto, com população muito rarefeita. Contando com apenas 12 milhões de habitantes, 1 milhão deles era de escravos, o restante compunha a maioria de mestiços. A população quase toda analfabeta, estava dispersa principalmente em centros urbanos litorâneos” (p. 530). (LOPEZ & MOTA, 2008).

 

Desde seu início em 1889 até os dias de hoje, o período republicano do Brasil tem assistido a inúmeros acidentes de percurso. Tentativas de golpe fracassadas, golpes consolidados, anulação de vigentes e promulgação de novas Constituições, suicídio, renúncias e impedimentos de Presidentes. Para entender um pouco sobre essa fase recente da História do país, iniciamos por Caldeira et al (1999):

“A abolição chegou tarde demais. O governo não tinha planos para o dia seguinte, para o país sem escravos. Passado o entusiasmo inicial, recrudesceu o divórcio entre o governo e a sociedade. As reuniões republicanas tornaram-se mais concorridas, configurando uma vasta conspiração. … Tamanha era a desarticulação do governo imperial que foi fácil derrubá-lo. Em 15 de novembro de 1889, d. Pedro II estava em Petrópolis, desinformado do que acontecia ao seu redor. Em poucas horas, um movimento militar o afastaria do trono quase sem fazer disparos; apesar da simpatia geral, o velho imperador não tinha a quem recorrer. Foi tão fácil como inesperado. Só depois os novos governantes lembraram-se de convocar o povo, que parecia desinteressado. Afinal, vivia sem governo por tanto tempo que o fim do Império não fazia muita diferença” (ps. 222 – 223). … “A monarquia caiu mais por sua incompetência para conceber e dirigir uma sociedade sem escravos – problema que se arrastou por 67 anos – do que por méritos de seus adversários. Embora os novos governantes também não tivessem solução para o problema, possuíam mais disposição que o velho rei. Partilhavam a id[e]ia de que a República era a melhor forma de organizar o país – e por isso o regime foi aceito depressa – mas divergiam sobre como alcançar esse objetivo. Cada grupo via de modo diverso o legado do Império” (p. 228). … “O arrastado e vão esforço do Império para encontrar uma alternativa para a escravidão dificultou a tarefa dos republicanos, eles próprios desunidos. Mesmos passando por mudanças aceleradas, o país herdou as instituições da monarquia: o mundo político que valoriza a permanência contra a mudança, a elite com valores aristocráticos, a massa de ex-escravos cujo objetivo era não trabalhar. Isso contrastava com a sociedade que, na base, era aberta e democrática. O desafio do regime era adaptar a lentidão do comando político à rapidez das mudanças sociais. Tal como a classe política, a elite social organizou-se no Império em torno de um ideal de permanência e imutabilidade, que refletia na extraordinária valorização do comportamento aristocrático – numa época em que, desde a Revolução Francesa, a nobreza fora varrida do mapa pelo avanço do capitalismo. … Desse modo, os princípios que organizaram o mundo político transmitiam-se para a sociedade. Criava-se uma forma de carreira. Os empresários mais bem sucedidos, sobretudo os fazendeiros, abandonavam seus negócios na tentativa de se tornar nobres. E eram portadores do ideal de não trabalhar que caracterizara os proprietários de escravos – cuja tradução econômica mais acabada era a pessoa que, vivendo de rendas, dedicava-se ao ócio e quase sempre era favorecida pelas decisões econômicas. A lógica da escravidão, valorizando os que não trabalhavam, foi incorporada pelos próprios escravos no momento de sua libertação. Para a maioria deles a passagem da condição de cativos para a de cidadãos significava sobretudo a possibilidade de fazer o que antes não lhes era permitido e que marcava os homens livres: não trabalhar. Evidentemente que a grande maioria não tinha de fato essa possibilidade. Precisavam ganhar a vida, e não havia quem trabalhasse por eles. Mas isso não os impedia de serem contaminados pelo ideal secular que permeava toda a sociedade brasileira. … Muitos adotaram como seus os objetivos dos homens livres que conheciam, arranjar um cargo, ainda que subalterno, no governo, ou um meio de vida que os poupasse da sina do trabalho manual – condenado pela sociedade escravista. Tanto quanto a elite escravista, também eles tiveram de se acostumar a uma realidade distante do mundo das senzalas que conheciam: a do trabalho livre. … Enquanto, na fase final do Império, a elite brasileira apegava-se a seu caráter fechado, a população prosseguia com a abertura e mobilidade que sempre marcaram sua formação. As uniões interétnicas, comuns desde o início da colonização, continuavam corriqueiras, sobretudo entre os mais pobres. A força desse costume ultrapassava os limites da economia escravista e sobreviveu à sua ruína: mulatos, mamelucos, cafuzos, índios, negros e brancos continuaram casando entre si. O afluxo de imigrantes não alternou tal padrão: como os primeiros habitantes do país, os recém-chegados precisaram se adaptar à realidade tropical. … Tudo isso favorecia a aceitação de mudanças – o que não era considerado positivo pelos novos donos do poder. No início da República, a elite agia da maneira que lhe era habitual, tentando impor um projeto de desenvolvimento contrário a essa realidade, considerada “anárquica” pelos governantes. … Nenhum projeto republicano para o Brasil levava em conta as tradições políticas herdadas do Império ou a imensa fecundidade da cultura popular. Desde logo, os recém-chegados ao poder colocaram-se em posição de ruptura, divergindo apenas quanto ao método a ser adotado. Os militares, fortemente influenciados pelo positivismo, queriam um Estado forte e unitário, enquanto os republicanos paulistas privilegiavam o federalismo. Ambos só estavam de acordo em que deveria ser um governo de elite. … Nem o modelo militar nem o dos republicanos paulistas previam uma grande participação popular no governo. Para os militares, não só o povo mas também uma parte da própria elite deveria ser excluída das decisões – que caberiam só aos mais comprometidos com os ideais de ordem e progresso. Já os paulistas, ainda que menos radicais, defendiam as eleições como a principal forma de participação popular, mas com a ressalva de que nem todos estavam aptos a votar. Na solução adotada, limitou-se o direito de voto apenas aos alfabetizados. Como apenas cerca de 8% da população sabia ler e escrever, a maioria ficou de fora do âmbito da política” (ps. 230 – 234). … “[No alvorecer do século XX,] no fim de seu governo, apesar de todo o favorecimento aos cafeicultores, Rodrigues Alves enfrentou protestos dos fazendeiros, que queriam ainda mais ajuda federal. Como nada conseguiram, conceberam em 1906 uma política para favorec[e]-los, financiadas pelos governos estaduais: o convênio de Taubaté. Para o sucessor de Rodrigues Alves, o mineiro Afonso Pena, o esquema foi um alívio: permitiu que o governo federal praticasse uma política de apoio à indústria e à imigração. O desenvolvimento industrial se fez sentir sobretudo em São Paulo, onde surgiram os primeiros bairros operários, com forte presença italiana e o primeiro grande conglomerado industrial, controlado pelo imigrante Francisco Matarazzo” (p. 246). (CALDEIRA et al, 1999).

 

É interessante também recorrer à outra obra de Jorge Caldeira para analisar o período republicano, retirando dela alguns trechos:

“Para aquilatar as transformações ocorridas no Brasil entre a Proclamação da República e o momento em que Getúlio Vargas tomou o poder, o melhor é recorrer aos números disponíveis, apesar de toda imprecisão que ainda guardam. Para começar, os relativos à população. De 14,3 milhões de pessoas em 1890 passou a 30,5 milhões em 1920, crescendo 113% nessas três décadas. Não houve censo em 1930; o de 1940 apontou uma população de 41 milhões de pessoas, com crescimento de 36% no intervalo de 20 anos, bem menos acentuado que no primeiro intervalo. … Tanto quanto se pode inferir de dados tão precários, o período entre 1889 e 1920 foi de considerável aumento da população das grandes cidades em relação ao restante do país, e essa mudança evoluiu de maneira bem menos atenuada nas duas décadas seguintes. Outra maneira de entender as mudanças é examinar a relação entre o número de operários e o de trabalhadores agrícolas. Em 1900 o contingente dos primeiros representava 6,4% dos trabalhadores no campo; em 1920 essa proporção havia dobrado, chegando a 12,8%. … No período, o maior investimento em infraestrutura ocorreu no setor ferroviário. Em 1890 havia 9,9 mil quilômetros de linhas férreas no Brasil … Em 1920, a 28,5 mil quilômetros. … Em 1930 atingiram 32 mil quilômetros … Em 1890 foram vendidas [ao exterior] 5,1 milhões de sacas [de café]. … Em 1920 foram exportadas 11,5 milhões de sacas … em 1890, apenas 17,4% da população brasileira eram alfabetizadas. Em 1920, a taxa subiu para 28,8% … Assim se pode focar melhor naquilo que muitos estudos econométricos começam a revelar com clareza cada vez maior sobre o período, e que as interpretações clássicas não permitem alcançar: o padrão de crescimento da economia brasileira mudou com a República. Comparada com o passado imperial, a economia deixou para trás a estagnação ao iniciar o desenvolvimento capitalista. E comparado com o mundo, o Brasil deixou a posição de atraso crônico, mostrando uma economia não só vigorosa, mas das que mais cresceu no período. … A indústria vendia para o sertão, o sertão vendia para a cidade – e essas trocas iam constituindo esse mercado interno, impulsionadas pela capacidade de, explorando o cenário internacional, exportar café e importar equipamentos industriais. … A comprovação numérica de uma dinâmica interna ainda mais acelerada que a externa tem, para análise desse período [de 1889 a 1930], uma decorrência similar à da época colonial: mais do que buscar novas explicações, trata-se de recolocar o problema. Em vez de ser uma continuidade do atraso, cabe explicar a ruptura e o desenvolvimento capitalista que marcam o período, associados à exportação agrícola. O novo enfoque do problema muda também a forma de se entender o papel dos governos – e, nesse sentido é essencial o plural “governos”. Tanto quanto a noção de economia de subsistência impede a visão da dinâmica efetiva do desenvolvimento no sertão, uma secular elaboração imagética mostra a realidade brasileira como decorrente de uma dupla formação: o governo central como parte ativa (centro do dinamismo econômico da política civilizada e da esfera letrada) e o sertão (imobilizado na economia de subsistência, bárbaro em política e analfabeto, portanto incapaz de articular formalmente o seu lugar no mundo). Em termos simbólicos essa imagem do Brasil é herança direta da visão de mundo corporativista portuguesa, que mostrava o governo central como cabeça permanente e o restante da sociedade como corpo obediente com funções especializadas. Até o Império essa grande metáfora – derivada também das imagens de senhor e escravo, fulcro da concepção de governo aristotélica – inspirou a organização do sistema governamental e das instituições civis, das leis que regiam as relações entre governados. Toda ação do governo central na colônia e no Império pautou-se pela reiteração dessa distância. O grande empenho nesse sentido, foi a manutenção seja do analfabetismo generalizado, seja do mercado como instituição marginal que – relembrando a definição de frei Vicente do Salvador no século XVII – acontecia nas casas, mas não nas ruas. A principal diferença na passagem de país independente fora de nuance: Enquanto os governos coloniais fundavam-se na crença de uma soberania monárquica única, o governo imperial sustentou-se admitindo a fórmula de duas soberanias, mas forcejando o tempo todo para subordinar a soberania do eleitor. Na via inversa, o espaço de soberania popular aumentou em relação ao da colônia, mas não o suficiente para impedir as instituições centrais da economia na direção do capitalismo – ou da democracia, se pensada a partir da progressiva implantação do voto universal e de eleições que obrigassem o governo à vontade do eleitor soberano. O emprego da noção de economia de subsistência permitiu que essa grande imagem corporativa/dualista fosse aplicada também no período republicano. A falta de dados numéricos no campo da economia, nesse momento, ajudou a manter a essencial impressão de uma falta de dinamismo no sertão. Havia base real: a regressão no sistema eleitoral reforçava a continuidade do papel apenas ritual das eleições comandadas pelo governo central – e a soma gerava o foco interpretativo da continuidade do atraso. Mas a realidade numérica agora visível é de ruptura do padrão de desenvolvimento, o que leva a buscar fatores de ruptura também no lugar do governo como promotor do desenvolvimento. A primeira e mais evidente ruptura prometida pelo regime republicano foi a abolição do Poder Moderador: a autoridade central arbitrária e irresponsável. Com isso se promoveu, muito rapidamente, uma inversão fundamental entre costume e lei no que se refere à economia. Durante a colônia e o Império, o viver pelo mercado e o empreendedorismo formam costumes gerais, mas praticados num ambiente legal que relegava tudo isso a um plano marginal. Em parte, o governo central – governo federal no período republicano – mudou radicalmente esse cenário já em seus primeiros dias. Depois dos decretos de Ruy Barbosa em 1890, o governo renunciou ao papel de interventor vigilante na vida econômica e criou as condições legais para que empresários pudessem atuar em liberdade. … Bastou esse ato para que os empresários se libertassem do confinamento de suas atividades à casa (isto é, a seus negócios pessoais) e oferecessem os produtos de suas empresas (agora pessoas jurídicas legalizadas) no mercado (agora uma instituição capaz de funcionar com o apoio da lei). A mudança fez toda diferença para os industriais e financiadores do sistema de crédito que atuavam na direção do capitalismo. A organização formal de uma empresa era necessária para juntar capital, próprio ou por meio de crédito (agora legal, com os bancos privados se multiplicando), tanto em empresas pessoais quanto em sociedades anônimas (antes o capital de risco só podia ser reunido com autorização do governo)” (ps. 512 – 517). …  “Apesar dessa capacidade dos nativos e sertanejos de conviver sem problemas com o capitalismo industrial já avançado, a Constituição de 1946 recriou diferenças típicas da imagem corporativista: mantinha tanto os governos indígenas como a vasta populações dos sertões à margem do direito de propriedade – e à margem da lei de uma economia produtiva. Enquadrava a produção sertaneja como economia informal, economia do costume, tal como nos tempos da colônia, ignorando que, apesar do tratamento ideológico, era uma economia de empreendedorismo, e essencial para o mercado nacional formal. Mesmo sem direitos, essa grande parcela da população continuou sendo a maior consumidora de produtos industriais e a maior fornecedora de produtos para os centros industriais e de serviço. As trocas entre essas partes, isoladas tanto no mercado externo quanto da ação do governo federal, continuaram sendo aquelas que geravam a dinâmica de crescimento da economia” (ps. 546 – 547). … “O que parecia uma crise impossível no governo interrompido pelo suicídio de [Getúlio] Vargas foi superado com facilidade quando Juscelino Kubitschek soube se aproveitar da recuperação no cenário internacional para alargar as portas da felicidade industrial, atraindo o capital estrangeiro de risco para a montagem da indústria automobilística. Ao mesmo tempo construiu Brasília, rompendo a secular ligação entre sede de governo e sede da região importadora do país, em clima de Bossa Nova e modernismo. Rasgou estradas de rodagem pelo sertão onde foi erguida a nova capital, viabilizando a rapina das posses dos moradores e tornando urgente um mínimo de igualdade entre os brasileiros” (p. 551). … “Como resultado, as rendas no sertão continuaram a crescer no período republicano, mas em proporção menor que o incremento dos ganhos dos trabalhadores urbanos. Assim, à medida que apareciam oportunidades, as pessoas iam se mudando para a cidade. A intervenção governamental se resumia à definição do salário mínimo, instrumento que afetava cada vez mais gente, mas não a maioria da população que continuava no campo onde não valiam as regras de reajustes. Tal equilíbrio automático pelas regras de mercado foi rompido com a ditadura. … O instrumento [do presidente Ernesto] Geisel chamava-se Plano Nacional de Desenvolvimento. Nele havia previsão para construir, ao mesmo tempo, tudo o que faltava para o país virar uma grande potência: usinas nucleares, empresas petroquímicas, siderurgias, mineradoras, indústria pesada, novas ferrovias e rodovias, energias alternativas ao petróleo, hidrelétricas, centro de pesquisas – e o mais que a imaginação permitia colocar numa folha de papel. Como todos os planos ousados, o PND deixava de lado detalhes como custos exatos, viabilidade, disposição dos agentes” (ps. 566 – 568). … “No auge do endividamento e da infinidade de obras em andamento, em 1979, os produtores da OPEP aumentaram ainda mais o preço do barril de petróleo: o patamar de 12 dólares em 1978, foi sendo elevado continuamente até atingir 29 dólares em 1980. … O governo federal agora tinha muito buraco comercial para cobrir, muito juro para pagar, muita dívida vencendo. E quem ficaria com a conta? Claro que com o setor produtivo nacional, agora formado por centenas de estatais endividadas (muitas sem a menor perspectiva de faturar nem sequer uma fração dos empréstimos tomados), pelas empresas privadas que ainda tivessem lucro – e pelos cidadãos que pagavam impostos” (ps. 570 – 571). … “Num resumo bruto, nos tempos em que se evidenciou o fracasso da onda empresarial estatal, o governo central, no fim da ditadura, mais lembrava o que havia sido o governo central imperial: pomposo no todo e ineficiente no que interessava. Em vez da almejada economia líder em desenvolvimento, havia outra marcada pelo atraso estrutural” (p. 582). … “As pesadas marcas sociais deixadas como herança pela ditadura pareciam estar sendo curadas. O prestígio do presidente [Luiz Inácio Lula da Silva] era de tal ordem que foi reeleito no primeiro turno em 2006, apesar de um processo por corrupção aberto contra os principais líderes de seu partido e alguns aliados do governo. Nesse cenário ainda dominado pelo otimismo vem outra notícia econômica relevante, em 2007: a intensificação das pesquisas petrolíferas implantada com o fim do monopólio estatal do petróleo levara à descoberta de gigantescas reservas na plataforma marítima brasileira, tão grande que poderiam impulsionar um novo surto de progresso do país” (p. 597). … “Todo investimento público havia sido feito com o pressuposto de receitas proporcionadas por um patamar de preço do barril de petróleo da ordem de 120 dólares. No entanto ao longo de 2015 esse patamar foi baixando até se estabilizar em 30 dólares, fazendo ruir o castelo de sonhos do crescimento como nos tempos de Geisel. Ficou para o país, como antes, a obrigação de pagar o preço da aposta perdida contra a globalização. … Com isso, numa sociedade dominada por costumes igualitários e globalizados, o corporativismo luta para sobreviver no poder, para manter a imagem hierárquica como modelo” (p. 599). (CALDEIRA, 2017).

 

No caso dos Estados Unidos, vimos acima que o ensino superior teve papel preponderante na arrancada do país para o sucesso da implantação do capitalismo industrial e o desenvolvimento social. Vamos a seguir analisar o papel do ensino superior no Brasil tendo como referência o artigo de Helena Sampaio do qual retiramos alguns trechos:

O ensino superior no Brasil só veio a adquirir cunho universitário nos anos 30, em contraste com alguns países da América espanhola que tiveram suas primeiras universidades ainda no período colonial, como o México e Peru, ou no pós-independência, como o Chile. Por mais de um século, de 1808 – quando foram criadas as primeiras escolas superiores – até 1934, o modelo de ensino superior foi o da formação para profissões liberais tradicionais, como direito e medicina, ou para as engenharias”. … “A vinda da corte portuguesa, em 1808, marca o início da constituição do núcleo de ensino superior no Brasil, cujo padrão de desenvolvimento teve, como características principais, sua orientação para formação profissional e o controle do Estado sobre o sistema”. … “O modelo de formação profissional combinou, em sua origem, duas influências: o pragmatismo que havia orientado o projeto de modernização em Portugal, no final do século XVIII – cuja expressão mais significativa no campo educacional foi a reforma da Universidade de Coimbra – e o modelo napoleônico do divórcio entre ensino e a pesquisa científica. No Brasil, a criação de instituições de ensino superior, seguindo esse modelo, buscava formar quadros profissionais para a administração dos negócios do Estado e para a descoberta de novas riquezas, e implicava em rejeitar qualquer papel educacional da Igreja Católica que fosse além do ensino das primeiras letras. Ainda que reforma de Coimbra tendesse a favorecer a formação especializada, o que acabou prevalecendo, no Brasil como na França e em tantas outras partes, foi a formação para as profissões liberais, nas quais o cunho propriamente técnico e especializado, presente em áreas como a engenharia e a medicina, não chegou a predominar. As escolas de Medicina, Engenharia e, mais tarde, de Direito, se constituiram na espinha dorsal do sistema, e ainda onde estão entre as profissões de maior prestígio e demanda. Durante esse primeiro período, de 1808 a 1889, o sistema de ensino superior se desenvolve lentamente, em compasso com as rasas transformações sociais e econômicas da sociedade brasileira. Tratava-se de um sistema voltado para o ensino, que assegurava um diploma profissional, o qual dava direito a ocupar posições privilegiadas no restrito mercado de trabalho existente e a assegurar prestígio social. A independência política, em 1822, não implicou em mudança de formato do ensino superior nem tampouco em uma ampliação ou diversificação do sistema. Os novos dirigentes não vislumbraram qualquer vantagem na criação de universidades, prevalecendo o modelo de formação para profissões, em faculdades isoladas. Na verdade, o processo de emancipação não foi além de uma transferência formal de poder. A sociedade pós-colonial permaneceu escravocrata até o final do século XIX, atrelada a uma economia baseada largamente na exportação de produtos, com uma vida urbana restrita a poucos núcleos de assentamento ─ tradicionais e/ou decadentes ─ e a alguns centros administrativos e exportadores”. … “Nesse contexto de centralismo político do regime imperial, o debate sobre a criação de uma universidade no Brasil passava, inevitavelmente, pela discussão sobre o grau de controle do Estado na educação. Para muitos, uma universidade seria exatamente uma forma de atender aos objetivos centralizadores do governo. Assim, tanto para os defensores deste tipo de organização do ensino superior como para os positivistas, seus principais opositores, a id[e]ia de universidade aparecia associada, com raras exceções, à de ingerência oficial no ensino”. … “Com a abolição da escravidão (1888), a queda do Império e a proclamação da República (1889), o Brasil entra em um período de grandes mudanças sociais, que a educação acabou por acompanhar. A Constituição da República descentraliza o ensino superior, que era privativo do poder central, aos governos estaduais, e permite a criação de instituições privadas, o que teve como efeito imediato a ampliação e a diversificação do sistema, Entre 1889 e 1918, 56 novas escolas de ensino superior, na sua maioria privadas, são criadas no país”. … “No Brasil, curiosamente, as id[e]ias gestadas no período de liberdade política e efervescência social tendem a ser implementadas por regimes autoritários e centralizadores que lhes seguem. Antes mesmo de ser criada qualquer universidade desse novo estilo, o governo provisório de Getúlio Vargas, tendo fundado em 1930 o Ministério de Educação e Saúde, publicou uma lei que definia como a universidade deveria ser, e que ficou conhecida com o nome do primeiro Ministro da Educação do país, como a “Reforma Francisco Campos””. … “A Universidade de São Paulo tem uma história diferente, e faz parte da resistência da elite paulista ao governo central no Rio de Janeiro, e que teve seu ponto culminante com a Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1934 há uma reconciliação entre as elites paulistas e o governo federal, e é neste ano que a Universidade de São Paulo é criada, dentro das normas gerais da legislação de Francisco Campos, com uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mas com uma orientação própria e grande autonomia”. … “As novas universidades, desta forma, não se constituíram a partir de demandas de amplos setores da sociedade nem de reivindicações do pessoal das instituições de ensino superior existentes. Foi antes uma iniciativa de grupos de políticos, intelectuais, e educadores, nem sempre ligados [ao] ensino superior. A universidade se implanta através de confrontos, negociações e compromissos, que envolviam intelectuais e setores dentro da própria burocracia estatal. Este processo é extremamente complexo, pois se dá em um momento de mudança de regime político de tal forma que os proponentes da reforma se encontram ora integrados nos grupos dominantes, ora em oposição a ele”. … “Existe uma tensão histórica entre o governo central e os Estados, que encontra seus extremos no período imperial ─ quando todas as iniciativas eram do governo central ─ e o primeiro período republicano, quando todas as iniciativas eram estaduais. Apesar da grande centralização política que ocorre na década de 30, o governo federal não consegue impor uma política centralizada para todo o ensino superior, graças à resistência de São Paulo, e também a iniciativas de outros estados, que, de uma forma ou outra, deram início a seus próprios sistemas universitários. Em 1945 o regime democrático é restabelecido, mas o peso crescente do governo federal faz com que muitas universidades criadas timidamente pelos Estados busquem, e consigam, passar para a jurisdição do governo federal. É assim que o governo central, que na década de 30 pretendia ter somente uma universidade padrão, a Universidade do Brasil, cujo modelo seria imposto ao resto do país, termina com uma rede de dezenas de instituições em todo o território nacional, que tem que administrar e financiar. É a partir da reforma de 1968 que o governo central assume novo papel de liderança, pela introdução da reforma, pela repressão dos primeiros anos da década de 70, e pela criação da rede de programas de pós-graduação e pesquisa nos anos posteriores. Apesar disto tudo, sistemas estaduais continuam a existir, e a marca principal do ensino superior público brasileiro é o contraste entre o sistema federal e o sistema paulista, que concentra os principais programas de pós-graduação e pesquisa, e os cursos profissionais mais prestigiados do país”. (SAMPAIO, 1991).

 

Embora já tenhamos uma boa visão da formação da sociedade brasileira a partir do que vimos até aqui, não poderíamos deixar de trazer alguns pontos importantes relativos às raízes do Brasil obtidos da consagrada obra escrita durante a primeira metade do século XX por Sérgio Buarque de Holanda:

“E o círculo de virtudes capitais para a gente ibérica relaciona-se de modo direto com o sentimento da própria dignidade de cada indivíduo. Comum a nobres e plebeus, esse sentimento corresponde, sem embargo, a uma ética de fidalgos, não de vilões. Para espanhóis e portugueses, os valores que ele anima são universais e permanentes”. … “Efetivamente, as teorias negadoras do livre arbítrio foram sempre encaradas com desconfiança e antipatia pelos espanhóis e portugueses. … Foi essa mentalidade, justamente, que se tornou o maior óbice, entre eles, ao espírito de organização espontânea, tão característica de povos protestantes, e sobretudo de calvinistas. Porque, na verdade, as doutrinas que apregoam e a responsabilidade pessoal são tudo, menos favorecedoras da associação entre os homens. Nas nações ibéricas, à falta dessa racionalização da vida, que tão cedo experimentaram algumas terras protestantes, o princípio unificador foi sempre representado pelos governos. Nela predominou, incessantemente, o tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares. Um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho. … É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre a gente hispânica, a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E, assim, enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da antiguidade clássica. O que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor. Também se compreende que a carência dessa moral do trabalho se ajuste bem a uma reduzida capacidade de organização social. … No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa à Península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo que nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma” (ps. 9 – 11). … “Nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princípios que se combatem e regulam diversamente as atividades dos homens. Esses dois princípios encarnam-se nos tipos do aventureiro e do trabalhador. Já nas sociedades rudimentares manifestam-se eles, segundo sua predominância, na distinção fundamental entre os povos caçadores ou coletores e os povos lavradores. Para uns, o objeto final, a mira de todo esforço, o ponto de chegada, assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundário, quase supérfluos, todos os processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore. Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apresenta a ele em generosa amplitude e onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes. O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do insignificante, tem sentido bem nítido para ele. Seu campo visual é naturalmente restrito. A parte maior do que o todo. … Na obra da conquista e colonização dos novos mundos coube ao “trabalhador”, no sentido aqui compreendido, papel muito limitado, quase nulo. A época predispunha aos gestos e façanhas audaciosos, galardoando bem os homens de grandes v[o]os. E não foi furtuita a circunstância de se terem encontrado neste continente, empenhadas nessa obra, principalmente as nações onde o tipo do trabalhador, tal como acaba de ser descriminado, encontrou ambiente menos propício. … E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente caracterizada da gente da nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura? … Nas suas plantações de cana, bastou que desenvolvessem em grande escala o processo já instituído, segundo todas as probabilidades, na Madeira e em outras ilhas do Atlântico, onde o negro da Guiné era utilizado nas fainas rurais. … Pode dizer-se que a presença do negro representou sempre fator obrigatório no desenvolvimento dos latifúndios coloniais. Os antigos moradores da terra foram, eventualmente, prestimosos colaboradores na indústria extrativa, na caça, na pesca, em determinados ofícios mecânicos e na criação do gado. Dificilmente se acomodavam, porém, ao trabalho acurado e metódico que exige a exploração dos canaviais. … O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho” (ps. 13 – 18). … “Compreende-se, assim, que já fosse exíguo o sentimento de distância, entre os dominadores, aqui, e a massa trabalhadora constituída de homens de cor. O escravo das plantações e das minas não era um simples manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o substituísse pelo combustível. Com frequência as suas relações com os donos oscilavam de dependente para a de protegido, e até de solidário e afim. Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de qualquer ideia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação” (p. 24). … “Em sociedade de origem tão nitidamente personalista como a nossa é compreensível que os simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e até exclusivos de qualquer tendência para a cooperação autêntica entre os indivíduos, tenham sido quase sempre os mais decisivos. As agregações e relações pessoais, embora por vezes precárias e, de outro lado, as lutas entre facções, entre famílias, entre regionalismos, faziam dela um todo incoerente e amorfo. O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente energética do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente ao contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente. À influência dos negros, não apenas como negros, mas ainda, e sobretudo, como escravos, essa população não tinha como oferecer obstáculos sérios. Uma suavidade dengosa e açucarada invade desde cedo, todas as esferas da vida colonial” (ps. 30 – 31). … “Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na Península Ibérica através inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda organização. Os escravos das plantações e das casas, e não somente escravos, como os agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famílias. Esse núcleo bem característico, em tudo se comporta como seu modelo da antiguidade, em que  a própria palavra “família”, derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à ideia de escravidão, e em que mesmos os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi. … Com o declínio da velha lavoura e a quase concomitante ascendência dos centros urbanos, precipitada grandemente pela vinda, em 1808, da Corte Portuguesa e depois pela Independência, os senhorios rurais principiam a perder muito de sua posição privilegiada e singular. Outras ocupações reclamam agora igual eminência, ocupações nitidamente citadinas, como a atividade política, a burocracia, as profissões liberais. … O trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, ocupação em todos os sentidos digna dos antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo – a verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos de modo geral, pouca estima às especulações intelectuais – mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e ação” (ps. 49 – 51). … “Esse caráter puramente exterior, epidérmico, de numerosas agitações ocorridas entre nós durante os anos que antecederam e sucederam à Independência, mostra o quanto era difícil ultrapassarem-se os limites que à nossa vida política tinham traçado certas condições específicas geradas pela colonização portuguesa. Um dos efeitos da improvisação quase forçada de uma espécie de burguesia urbana no Brasil, está em que certas atitudes peculiares, até então, ao patriciado rural, logo se tornaram comuns a todas as classes como norma ideal de conduta. Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade de casa-grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes. É bem típico o caso testemunhado por um John Luccock, no Rio de Janeiro, de simples oficial de carpintaria que se vestia à maneira de um fidalgo, com tricórnio e sapatos de fivela, e se recusava a usar as próprias mãos para carregar as ferramentas de seu ofício, preferindo entregá-las a um preto. … Toda a ordem administrativa do país, durante o Império e mesmo depois, já no regime republicano, há de comportar, por isso, elementos estreitamente vinculados ao velho sistema senhorial” (ps. 55 – 57). (HOLANDA, 1994).

 

Em seguida, por tudo aquilo que já vimos até aqui, vamos considerar verdadeira nossa hipótese inicial, e analisar o efeito do corporativismo sobre dois elementos básicos da sociedade: a Constituição e a questão ética.

 

7. Constituição Federal

A Carta Magna de um país é o espelho da sua sociedade. Vamos analisar alguns importantes aspectos da Constituição Federal do Brasil lançando mão da obra de Almir Pazzianotto Pinto publicada em 2017:

“Toda as nossas oito constituições resultaram de alguma modalidade de golpe contra o regime vigente. Assim foi em 1824 após o Brasil se separar de Portugal em 1822, repetiu-se em 1891, como resultado inevitável da proclamação da República; o mesmo aconteceu em 1934, após ser vitoriosa a Revolução de 1930; novamente em 1937 com a implantação da ditadura de Vargas. As constituições de 1946, 1967 e 1969 (Emenda Constitucional nº 1/69) tiveram origem idêntica: a queda abrupta do governo exigindo mudança da Lei Fundamental. Em 1985 ruptura com o regime autoritário ocorreu sem violência” (p. 189). … “Para afastar a Emenda 1/69, promulgada pelos Ministros Militares que haviam substituído o general Costa e Silva, o presidente [José] Sarney submeteu ao Congresso a proposta de Emenda Constitucional nº 26, de 28.6.1985, cujo art. 1º prescrevia: “Os membros da Câmara dos Deputados e o [Senado]r reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembl[e]ia Nacional Constituinte livre e soberana, no dia 1º de janeiro de [1987] 1967, na sede do Congresso Nacional”. Não havia projeto ou data para a conclusão dos trabalhos. O resultado consistiu na Constituição de 5.10.1988 com 250 artigos e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) contendo 94 outros” (p. 191). … “Na definição do jurista Pedro Nunes, “República é a realização da democracia, o estado no qual há liberdade para todos e perfeita igualdade de direito e deveres dos cidadãos”. … Ao declararem que todo poder emana do povo, para em seu nome ser exercido, ouso afirmar que todas as Constituições faltaram com a verdade. Do pecado original não escapou a Constituição de 1988. … Igualdade é utopia … Uma das manifestações odiosas e óbvias da desigualdade resulta do foro privilegiado. Quem desfruta do privilégio se beneficia de prerrogativas inacessíveis aos cidadãos comuns. É o caso do presidente da República, do vice-presidente, dos membros do Congresso Nacional, que se valem do benefício de serem julgados, por crime de responsabilidade, no Supremo Tribunal Federal. Gozam da mesma prerrogativa ministros de Estado, comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, membros dos tribunais superiores, do Tribunal de Contas da União e chefes de missões diplomáticas de caráter permanente. A Lei Maior deixa, também, de ser verdadeira nos direitos assegurados, pelo artigo 6º, à saúde, educação, trabalho, moradia, lazer, segurança, Previdência Social, proteção à maternidade e à infância e assistências aos desamparados. … Matéria de O Estado publicada no caderno Aliás de 25/5/2016, com o título Os filhos da garapa, desnuda a realidade do agreste nordestino: “Garapa é o leite de quem não tem. Uma água levada ao fogão de barro logo pela manhã, quando as crianças sentem a dor da primeira fome. Água adoçada com açúcar, o mel que as deixará vivas por mais um dia”. Famílias desestruturadas, abrigadas em choças de ripas e barro socado, sem energia elétrica, água encanada, esgoto, com filhos doentes e passando fome desmoralizam os devaneios constitucionais. Redigida em 1787 por 55 representantes de 13 Estados, a Constituição norte-americana cont[e]m 7 artigos que, em 229 anos, receberam 27 emendas. A Constituição brasileira de 1988, com 250 artigos[17] e 94 disposições foi redigida por 594 deputados e senadores. Já sofreu 97 alterações[18], que não a tornaram melhor” (ps. 83 – 87). … “A prioridade há de ser concedida, neste primeiro momento, à reforma partidária, para reduzir o irracional número de partidos políticos com registro no Superior Tribunal Eleitoral. São 35 legendas[19]. … Em síntese, entre 35 legendas, não mais que 6 ou 7 são representativas … Urge iniciar a limpeza das legendas para deixarem de agir como moeda de troca em conchavos políticos” (ps. 194 – 195). (PINTO, 2017).

 

8. A questão ética

A questão ética é sempre um grande desafio para uma sociedade com forte perfil corporativista. Vamos analisar esse aspecto com relação ao Brasil, inicialmente, através de Lilia Moritz Schwarcz:

Desde o início dessa breve história de cinco séculos foi logo ficando patente a dificuldade que temos de construir modelos compartilhados de zelo pelo bem comum. Em seu lugar, várias formas de compadrio, a moeda de troca dos favores, o recurso a pistolões, o famoso hábito de furar fila, de levar vantagem ou a utilização de intermediários se enraizaram nesta terra do uso abusivo do Estado para fins privados. O certo é que persistirá no Brasil um sério déficit republicano enquanto práticas patrimoniais e clientelistas continuarem a imperar no interior do nosso sistema político e no coração de nossas instituições públicas. “República” significa “coisa pública” – bem comum – em oposição ao bem particular: a res privada. Pensada nesses termos, como bem ajuíza o historiador José Murilo de Carvalho, “nossa República nunca foi republicana”. Por mais tautológico que possa parecer, não pode haver república sem valores republicanos, e por aqui sempre faz falta o interesse pelo coletivo, a virtude cívica e os princípios próprios ao exercício da vida pública. Nos falta ainda mais, o exercício dos direitos sociais, qual seja a participação na riqueza coletiva: o direito, ou melhor, o pleno exercício do direito à saúde, à educação, ao emprego, à moradia, ao transporte e ao lazer. Diante desses impedimentos, ficam expostas a cidadania precarizada de certos grupos sociais brasileiros e as práticas de segregação a que continuam sujeitos. Sobretudo para os setores vulneráveis da sociedade, a regra democrática permanece muitas vezes suspensas, e nosso presente, ainda muito marcado pelo passado escravocrata, autoritário e controlado pelos mandonismos locais. E como nossa República é frágil, ela se torna particularmente vulnerável ao ataque de seus dois principais inimigos: o patrimonialismo e a corrupção. O primeiro deles, o patrimonialismo, é resultado da relação viciada que se estabelece entre a sociedade e o Estado, quando o bem público é apropriado privadamente. Ou, dito de outra maneira, trata-se do entendimento, equivocado, de que o Estado é bem pessoal, “patrimônio” de quem detém o poder” (ps. 64 – 65). … “Se o patrimonialismo é o primeiro inimigo da República, o segundo principal adversário atende pelo nome de corrupção. Trata-se de uma prática que degrada a confiança que temos uns nos outros e desagrega o espaço público, desviando recursos e direitos dos cidadãos. Não por coincidência, ela se encontra, muitas vezes, associada ao mau trato do dinheiro público ocasionando o descontrole das políticas governamentais” (p. 88). … “A corrupção se manifesta em qualquer época histórica, mas seu significado é amplo, pode variar muito, e não existe uma linha única de continuidade. Não obstante, a corrupção que hoje assola a política nacional, e tem indignado os brasileiros, faz parte, em maior ou menor escala, do cotidiano do país desde os tempos do Brasil colônia. Por isso, estratagemas usados pelas elites coloniais lembram, de forma direta ou mais distante, as várias práticas ilícitas preparadas por alguns de nossos governantes atuais. … No século XVII, viajantes costumavam afirmar que era preferível ser roubado por piratas em alto-mar a aportar no Brasil, onde teriam de pagar uma série de taxas sobre a mercadoria comercializada, além de serem obrigados a adular os administradores e grandes proprietários com todo tipo de presente. Em relatos de viajantes do século XVIII , um certo “jeitinho” brasileiro já chamava a atenção daqueles que percorriam as Minas Gerais. Nas cartas deixadas, navegadores narravam sua surpresa diante da “esperteza dos brasileiros”, que contrabandeavam cargas preciosas e misturavam pó com ouro para passar a impressão de que a produção era ainda maior e assim conseguir mais lucros. … Além do mais, não se pode esquecer que o Brasil financiou a existência do sistema escravocrata até apenas 130 atrás. Ora, para manter uma instituição como essa, e durante tantos séculos – a despeito de a prática não ser penalizada por lei -, era preciso diminuir a dose de espírito moral em relação ao outro e pensar muito mais no proveito próprio. A escravidão minava conceitos como moral e ética; era comercializada diretamente entre proprietários e traficantes, e seu dia a dia vigia à margem do controle do Estado português, que era dono das feitorias africanas, mas não controlava o tráfico nem os mercados de escravos” (ps. 90 – 93). … “Chama atenção como durante o Império e também no decorrer da Primeira República (1889 – 1930) falava-se em corrupção referindo-se a governos e não a indivíduos. Foi com esse espírito que Alberto Sales, irmão do presidente Campos Sales (1898 – 1902), arrependido de ter apoiado a República, desabafou, ainda em 1901, dizendo que o regime era “mais corrupto que a monarquia”” (ps. 103 – 104). … “História não é competição de salto em distância, nem é possível elaborar uma narrativa evolutiva quando o tema é corrupção. O que se pode afirmar é que foi somente a partir de 1945 que no Brasil se passou a legislar não apenas sobre a corrupção do Estado, mas também a cerca daquela individual e de responsabilidade do chefe do governo” (p. 106). … “Quebrar o pacto implícito que se estabelece com a prática da corrupção é um dos enormes desafios que os brasileiros têm pela frente. A urgência faz parte da nossa própria agenda democrática, que prevê a distribuição equânime de direitos. … A captura do Estado por interesses particulares e a consequente prática de corrupção que se instaura visando a própria conservação desse tipo de esquema é um dos principais fatores que explicam a crise que vivemos atualmente. Além de afetar a economia, alocando recursos de forma ineficiente, a corrupção tem o poder de instalar uma burocracia inapta, na medida em que o funcionamento desta não é gerido pela necessidade do Estado, mas pela distribuição farta de cargos e verbas para os “amigos fiéis”, que trocam “favores” e “interesses”. Por último, a corrupção viceja quando há uma mentalidade mais ampla que não só a aceita, como a naturaliza em seu cotidiano. A corrupção pública se prolonga nas práticas individuais que visam sempre “dar um jeitinho”, “quebrar o galho”, “fechar um olho” (ps. 121 – 123). (SCHWARCZ, 2019).

 

Vamos também buscar alguns trechos da palestra do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, proferida na Universidade de Harward em 2018 sobre o tema.

           “A corrupção na América Latina tem origens e causas remotas. Aponto sumariamente três. A primeira é o patrimonialismo, decorrente da colonização ibérica, marcada pela má separação entre a esfera pública e a esfera privada. Não havia distinção entre a Fazenda do rei e a Fazenda do reino, o rei era sócio dos colonizadores e as obrigações privadas e os deveres públicos se superpunham. A segunda causa é a onipresença do Estado, com o controle da política e das atividades econômicas, seja pela exploração direta seja por mecanismos de financiamento a empresas privadas e de concessão de benefícios. A sociedade torna-se dependente do Estado para quase tudo o que é importante, sejam projetos pessoais, sociais ou empresariais. Cria-se uma cultura de paternalismo e compadrio, acima do mérito e da virtude. O Estado e seus representantes vendem favores e cobram lealdades. A terceira causa é a cultura da desigualdade. As origens aristocráticas e escravocratas formaram uma sociedade na qual existem superiores e inferiores, os que estão sujeitos à lei e os que se consideram acima dela. A elite dos superiores se protege contra o alcance das leis, circunstância que incentiva as condutas erradas. A essas origens mais remotas somam-se duas causas mais imediatas. A primeira é o sistema político, que produz eleições excessivamente caras, com baixa representatividade dos eleitos devido ao sistema eleitoral proporcional em lista aberta e que dificulta a governabilidade. As eleições excessivamente caras fazem com que o financiamento eleitoral esteja por trás de boa parte dos escândalos de corrupção; a baixa representatividade gera uma classe política descolada da sociedade civil; e a governabilidade é comprometida por mais de duas dezenas de partidos políticos que tornam o Presidente da República refém de práticas fisiológicas – quando não desonestas – do Congresso. Uma segunda causa é a impunidade. O sistema criminal brasileiro, até muito pouco tempo atrás, mantinha uma postura de leniência em relação à criminalidade do colarinho branco, tanto por deficiência das leis como pela pouca disposição dos juízes em condenar por tais crimes, considerados não violentos e não muito graves. O sistema punitivo brasileiro, historicamente, só foi capaz de punir gente pobre, por delitos violentos ou por drogas”. … “A corrupção no Brasil não foi produto de falhas individuais ou pequenas fraquezas humanas. O que nós tivemos foi uma corrupção sistêmica, com um espantoso arco de alianças que incluiu empresas privadas, empresas estatais, empresários, servidores públicos, membros do Executivo e do Legislativo. Foram esquemas profissionais de arrecadação e de distribuição de dinheiro público desviado. Como tenho dito, é impossível não sentir vergonha pelo que aconteceu no Brasil. Esses esquemas se transformaram no modo natural de se fazer política e de se fazerem negócios no Brasil. A corrupção generalizada, no topo da pirâmide política, foi produto de um pacto oligárquico celebrado por parte da classe política, parte da classe empresarial e parte da burocracia estatal para saque do Estado brasileiro e, em última análise, da sociedade e do povo brasileiro. O Estado brasileiro é um Estado apropriado privadamente. Aliás, como as investigações revelaram, duas empresas tinham o Estado brasileiro na sua folha de pagamento. A corrupção tem custos elevados para o país. De acordo com a Transparência Internacional, em 2016 o Brasil foi o 96º colocado no ranking sobre percepção da corrupção no mundo, entre 168 países analisados. Em 2015, havíamos ocupado o 79º lugar. Em 2014, o 69º. Ou seja: pioramos. Estatísticas como essas comprometem a imagem do país, o nível de investimento, a credibilidade das instituições e, em escala sutil e imensurável, a autoestima das pessoas. A corrupção acarreta custos de naturezas diversas, inclusive econômicos, políticos e no plano dos direitos humanos. Não é fácil estimar os custos econômicos da corrupção. Trata-se de um tipo de crime difícil de rastrear, porque subornos e propinas não vêm a público facilmente nem são lançados na contabilidade oficial. Ainda assim, existem algumas análises a respeito. É difícil avaliar a metodologia desses cálculos. E os custos indiretos da corrupção são praticamente incalculáveis, sendo que nem tudo na vida pode ser medido em dinheiro. Mas não há dúvida de que a corrupção tem uma correlação inversa com a taxa de investimento e com a produtividade da economia. A corrupção compromete de forma grave a boa governança. No Brasil, algumas decisões econômicas importantes foram tomadas sob influência de mecanismos de corrupção e de capitalismo de compadrio” … “Nada obstante, o país precisa de reformas estruturais para superar a corrupção. Dentre elas, uma reforma política, a redução do tamanho do Estado e do seu peso nas atividades econômicas e um sistema de justiça criminal mais eficiente no combate a criminalidade do colarinho branco. No seu aclamado livro Why Nations Fail, Daron Acemoglu e James A. Robinson procuram identificar as razões que levam países à prosperidade ou à pobreza. De acordo com os autores, essas razões não se encontram – ao menos em sua parcela mais relevante – na geografia, na cultura ou na ignorância de qual é a coisa certa a fazer. Elas se encontram, acima de tudo, na existência ou não de instituições econômicas e políticas verdadeiramente inclusivas”. (BARROSO. 2018).

Para não deixar de mencionar os Estados Unidos, nosso país de referência, conforme acima definimos no método de análise da sociedade brasileira, mostramos uma rápida observação feita por Deltan Dallagnol:

“Se a meta era vencer a impunidade, seria necessário mudar as regras e a cultura jurídica. Não bastava tentar mudar o sistema por dentro – era necessário atuar fora dele, na academia e por meio de propostas de reformas. Para dar contribuição neste sentido, nada melhor do que buscar aperfeiçoamento nos Estados Unidos, um país em que o sistema de Justiça Criminal funciona muito melhor do que o nosso e que é, ao mesmo tempo, berço da proteção aos direitos humanos. Lá, por exemplo, os políticos não têm foro privilegiado e são julgados como qualquer cidadão. Além disso, o júri é composto por pessoas comuns, nunca por juízes indicados politicamente. O resultado dessa receita é uma longa lista de autoridades condenadas e presas por corrupção” (p. 33). (DALLAGNOL, 2017).

 

9. Considerações finais

Pelo que vimos, a escravidão foi um fator decisivo na formação da sociedade brasileira. Implantada no Brasil desde o início da colonização portuguesa no século XVI, perdurou até as vésperas da Proclamação da República em 1889. Hoje, ela deixou como herança o ranço do autoritarismo, da ignorância, da ociosidade, do orgulho, da pobreza e do luxo exibicionista. O período republicano já conheceu sete Constituições Federais, todas relacionadas a algum tipo de golpe. A atual, aprovada em 1988, embora afirme que todos são iguais perante a lei, garante foro privilegiado a inúmeros detentores de cargos públicos. O sistema de governo, presidencialista pluripartidário, tem atualmente mais de 30 legendas, a maioria sem representatividade. O patrimonialismo e a corrupção sistêmica não estão somente no topo da pirâmide política, envolvendo a classe política e empresarial, mas invade por capilaridade todo tecido social. O “dar um jeitinho”, “quebrar o galho”, “furar a fila” e “fechar o olho” são exemplos que fazem parte do cotidiano do brasileiro.

Este quadro, acima descrito, é entendido como sendo uma forte característica da sociedade brasileira, que estamos chamando de corporativismo e que nos remete ao conceito de sociedade aristotélica que aceita, como natural, a desigualdade entre os seres humanos. Nela, a partir da cabeça, que é o rei, seus membros mantêm posição que corresponde a uma função, como no corpo humano e, portanto, nesse modelo, a sociedade não é um conjunto de indivíduos com autonomia para tomar decisões, construir sua vida, escolher seus dirigentes e criar as bases do estado moderno.

Assim, não é surpresa que o Brasil não seja protagonista na criação de monumentos históricos que deram grandes impulsos nas economias capitalistas. O fordismo e o taylorismo, o computador mainframe e o notebook, a manufatura enxuta de Taiichi Ohno e o sistema de controle da qualidade total de Feigenbaun, o celular e a internet, o sítio de procura da Google e o de relacionamento da Facebook, o sistema de venda e distribuição da Amazon e outros. Nenhum deles teve origem no Brasil.

Por outro lado, os Estados Unidos, tomados como referência neste trabalho, também conheceram o regime escravocrata em seus latifúndios das colônias do Sul. Todavia, a escravidão sofreu resistência das colônias do Norte – conhecidas por Nova Inglaterra – nas quais os protestantes que lá chegaram tiveram a anuência da Inglaterra para desenvolver seu modelo de colonização baseado no trabalho do homem livre e na meritocracia.

A escravidão do Sul norte-americano não teve, como no Brasil, um regime monárquico após a Independência para lhe dar suporte. Além disso, os sulistas foram derrotados, em seguida, na Guerra Civil em 1865. Mesmo assim, a escravidão cobrou seu preço na formação do perfil da sociedade atual dos Estados Unidos, externado, principalmente, pelo racismo radical e violento.

Graças a esses e outros fatos históricos, os Estados Unidos puderam criar excelentes condições para o florescimento do capitalismo industrial. O alinhamento dos esforços do Governo Federal para expansão do Oeste com a ferrovia – que ligava uma cidade ao nada – deu origem a um enorme mercado. Alinhamento esse esteve também presente na criação de faculdades e universidades que desenvolveram, através da ciência aplicada, não somente a agricultura como, igualmente, o sistema de manufatura. Tudo isso, consequentemente, abriu espaço para novos produtos de preços acessíveis à população, gerando um ciclo virtuoso que impulsionou sua economia num crescimento fabuloso rumo a um país de renda alta e desenvolvido.

Desta forma, podemos supor um modelo básico para o Brasil crescer economicamente e escapar da armadilha da renda média. Imaginamos um modelo onde o país tivesse à sua disposição um grande mercado e com condições de oferecer a ele alguns produtos – bens e ou serviços – extremamente competitivos e de enorme aceitação neste mercado.

Em relação ao grande mercado, sabemos que o interno tem excelente potencial para atender a esse requisito, pois sua população é composta por mais de 210 milhões de habitantes. Todavia, ela possui renda média e, por consequência, seu poder aquisitivo é limitado. É preciso também conquistar o mercado externo, pelo menos inicialmente. Agora, olhando para a competitividade dos produtos e sua ampla aceitação, o Brasil necessita, para desenvolver tais produtos, de recursos financeiros e humanos. Quanto aos recursos financeiros, o país está diante da necessidade de equacionar o enfrentamento de uma dívida pública bruta superior a 80% do PIB[20] – previsão de 100% do PIB no pós-COVID 19 – e um déficit público crescente. Quanto aos recursos humanos, são importantes a melhoria da qualidade de ensino e o suporte da ciência aplicada[21]. Portanto, o papel do Governo é vital para criação de um ambiente competitivo, para a administração de crise e para a garantia da mobilidade social (redução da desigualdade social).

Tendo em mente esse modelo básico e seus requisitos, pode-se imaginar que há várias estratégias possíveis de planejamento e execução visando torná-lo uma realidade de sucesso. Potencial existe. É viável explorar, ainda mais, a condição do país como celeiro do mundo, seus polos de alta tecnologia – como, por exemplo, a aeronáutica, a extração do petróleo em águas profundas, a própria agricultura – além de criar incentivo às pequenas e microempresas para embarcar em tecnologias avançadas de ciclo curto etc.

Todavia, qualquer que seja a alternativa escolhida, para que o Governo possa atuar positivamente como vimos acima, é vital que, a priori, se atenue ou se elimine a causa raiz que prende o Brasil na armadilha da renda média, isto é, o forte traço de corporativismo da sua sociedade. Entendemos, que isso somente é possível através da conscientização desta causa raiz – e seus efeitos – por parte de toda sociedade, depois, da sua vontade política de eliminá-la e, por fim, da decisão de, em seguida, trabalhar duramente para conquistar essa desafiadora transformação social.

 

Referências

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[1] Relatório técnico, Academia Brasileira da Qualidade, São Paulo, setembro de 2020

[2] Engenheiro Mecânico (FEM-UNICAMP); Diretor Presidente Aposentado da EATON – Hydraulics da América do Sul; Professor do Curso de Extensão (FEM-UNICAMP); Membro da ABQ.

[3] Para quem tiver interesse sobre os critérios de classificação dos países por sua renda bruta per capita, consultar The World Bank Data Team (2019)

[4] GILL & KHARAS, An East Asian Renaissance: Ideas for Economic Growth, USA, The World Bank, 2007 (NA)

[5] McKINSEN GLOBAL INSTITUTE, Latin America’s missing middle: Rebooting inclusive growth, May 2019 (NA)

[6] LEE, K., Schumpeterian Analysis of Economic Catch-Up: knowledge, path creation, and the middle-income trap, UK, Cambridge University Press, 2014 (NA)

[7] Dez anos mais tarde, em 1915, Einstein publicou a Teoria da Relatividade Geral que considera o efeito da gravidade. Para o leitor interessado em maiores detalhes sobre o tema, sugerimos Gardner (1996).

[8] Protestantes calvinistas

[9] MARSHALL, T.H., Cidadania, Classe social e Status, Rio de Janeiro, Zahar editores, 1967 (NA)

[10] Partido Republicano

[11] Secretário do Tesouro dos Estados Unidos (NA)

[12] ROY, W.G., Socializing the Capital: The rise of the Large Industrial Corporation in America, Princeton: Princeton University Press, 1977 (NA)

[13] BERLE, A.A. & MEANS, G.C., A moderna sociedade anônima e a propriedade privada, São Paulo, Nova Cultural, 1988. (NA)

[14] RUTTAN, V.W., Is War Necessary for Economic Growth? Military Procurement and Technology Developmente. Oxford: Oxford University Press, 2006 (NA)

[15] MOWERY, D.C. & ROSENBERG, N., Technology and Pursuit of Economic Growth, Cambridge: Cambridge University Press, 1995 (NA)

[16] FRANCO, M.S.C.F. Homens livres na ordem escravocrata, São Paulo: IEB-USP, 1969, (NA)

[17] Nada obstante o simbolismo trazido pela vigente Lei Republicana, é inconteste a presença de lobbies políticos e ideológicos em sua gênese. A intenção de alguns parlamentares, narra a história, era cravar suas ideias para conquistar o prestígio de seu grupo de eleitores”. (BARONOVSKY, 2015). O nível de detalhamento da Constituição brasileira é de tal ordem que, independente da discussão jurídica, surpreende seu art. 242. ⸹ 2º onde se lê: “O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”. (NA)

[18] Até junho de 2016 (NA)

[19] Em abril de 2017 (NA)

[20] Em 2018, de acordo com o Banco Mundial (NA)

[21] “Há dois desafios a serem vencidos para se obter mais benefícios da pesquisa no Brasil: além de aumentar o número de pesquisadores, é essencial aumentar mais ainda o número destes trabalhando em empresas, criando tecnologias avançadas ligadas a aplicações de impacto econômico e social” (CRUZ, 2020).

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

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