Qualidade 4.0 – Por Vivaldo Antonio Fernandes Russo [1]

Gerd Altmann / Pixabay

Esse relatório técnico escrito por Vivaldo Russo explora uma das linhas de pesquisa do grupo de trabalho Nova Qualidade da ABQ coordenado por Ettore Bresciani.

 

  1. Considerações iniciais

Esse relatório técnico explora uma das linhas de pesquisa do grupo de trabalho Nova Qualidade da ABQ coordenado por Bresciani[2] cuja missão é investigar as novas tendências da Qualidade e sua gestão.

A denominação Qualidade 4.0 vem sendo geralmente aplicada com o significado de previsão do que será o futuro não somente da qualidade em si como de sua própria gestão. O termo deriva da chamada 4ª Revolução Industrial também conhecida como Era 4.0 ou Indústria 4.0, que ora se inicia. “Ela sincroniza tecnologias modernas como inteligência artificial (IA), impressora 3D, robôs, internet das coisas, computação em nuvem etc. no processo de produção de bens e serviços.” (RUSSO & BRESCIANI, 2018)

O objetivo desse relatório é entrar em mais detalhes sobre o tema no sentido de realizar uma prospecção de curto e médio prazos sobre as consequências relacionadas.

Todavia, o conceito da qualidade não é universal. Portanto, vamos, incialmente, estabelecer qual o conceito que seguiremos aqui. Nesse trabalho a qualidade e sua gestão acontecem no relacionamento da empresa com seus clientes. Então começamos pelo conceito de empresa:

“Drucker (1991) [afirma que] “para saber o que é a empresa, precisamos partir de sua finalidade. Essa finalidade precisa ser externa à própria empresa. Na verdade, ela deve encontrar-se na sociedade, já que a empresa é órgão da sociedade. Só uma finalidade será válida para a empresa: criar seu cliente.” (p. 57). Para o autor o lucro é apenas uma das métricas importantes para avaliar o desempenho da empresa. … “É aquilo que o cliente acha que está comprando, aquilo que ele considera de valor, que é decisivo – e determina o que é a empresa, o que produz, e se prosperará. E o que o cliente compra e considera de valor nunca é um produto. É sempre utilidade – isto é, o que o produto ou o serviço faz por ele. … O cliente é o alicerce da empresa, que a mantém viva. Só ele cria empregos. Para atender aos desejos e necessidades do cliente, a sociedade confia à empresa recursos capazes de gerar riqueza. (p. 57 – 58)”” (RUSSO & BRESCIANI, 2022).

É nessa obrigatoriedade de atender aos desejos e necessidades do cliente que repousa o conceito da qualidade e sua gestão.

Vamos a seguir visitar vários princípios considerados pelos especialistas como oriundos das novas tecnologias da Era 4.0 e que podem influenciar o mercado e a gestão do negócio das empresas. Todavia, estamos interessados somente naqueles princípios que afetam diretamente o cliente e, por consequência, a gestão da qualidade das empresas. Um princípio voltado a outras partes interessadas na empresa somente será considerado se tiver também atuação direta na relação da empresa com seus clientes.


  1. Visão do CQI–IRCA[3]

A organização CQI-IRCA (2021) define oito princípios que suportam o conceito de Qualidade 4.0:

  1. Criação conjunta de valor: Clientes e sociedade estão constantemente redefinindo o valor que eles exigem, e como e onde eles querem consumi-lo. A criação conjunta de valor do cliente está crescendo por meio do serviço digital.
  2. Cibernética: Dados são obtidos de múltiplas fontes verticalmente, horizontalmente e entre os extremos das cadeias de suprimentos. Redes inteligentes e interconectadas em ecossistemas estão cada vez mais sendo usadas para melhorar e regular dinamicamente o desempenho do sistema total, incluindo comportamentos, entradas e saídas
  3. Confiança mútua: Confiança mútua é vital para evitar a preocupação de espionagem e fraude, e ferramentas digitais que tornam possível transparência em alianças e execuções de contratos. A integridade entre sistemas[4] é certificada e indispensável para assegurar confiança levando ao aumento da resiliência.
  4. Aprendizagem de adaptação rápida: Aprendizagem de adaptação rápida e contínua a partir de dados caracterizam inovação e melhorias na criação de valor. Mudanças nas expectativas dos clientes são obtidas baseadas em novas capacidades de previsão ao invés de manter uma postura reativa. Qualidade do projeto, conformidade e desempenho são cada vez mais administrados e comunicados virtualmente, juntamente com desenvolvimento ágil e integração de sistemas resultando em aumento da conectividade.
  5. Transparência e colaboração: A cadeia de valor é cada vez mais uma rede “inteligente” integrada de sistemas físico cibernéticos interrelacionados e interconectados. Os ecossistemas transcendem os limites tradicionais e cada vez mais criam economias circulares para a vida toda. O cliente, uma parte ativa dessa rede, exige ambos, gestão de risco efetiva e maior transparência e colaboração por meio de múltiplas disciplinas conforme as redes de tecnologia expandem.
  6. Sistemas físico cibernéticos: O equilíbrio e integração entre o esforço humano e o esforço da máquina, em sentido amplo, continuamente mudam, automatizando algumas funções humanas anteriores e criando novas funções em torno de projetos conjuntos de sistemas da qualidade físico cibernético.
  7. Valor dos dados: Dados cada vez mais são contextualmente ativos estratégicos dependentes, requerendo profissionais da qualidade para ser especialistas em gerenciamento de dados, arquitetura de dados, engenharia de dados e análise de dados.
  8. Tecnologia e inteligência combinadas: O vasto arranjo conveniente de tecnologia, aprendizado de máquina e inteligência artificial amplia a inteligência humana. A relação simbiótica entre o humano e a máquina, na qual coexistem os mundos virtual e real, permite-os reagir, aprender tomar decisões e otimizar processos da qualidade.

Ainda de acordo com CQI (2021), esses princípios nos levam a uma definição prática de Qualidade 4.0 como sendo a alavancagem da tecnologia com pessoas para melhorar a qualidade de uma organização, seus produtos, seus serviços e resultados que eles criam.

  1. Visão do Juran (antigo Juran Institute)[5]

Conforme Juran (2019), o conceito central de Qualidade 4.0 diz respeito ao alinhamento da gestão da qualidade com as capacidades que estão emergindo da Indústria 4.0 para dar suporte ao caminhamento das organizações na direção da excelência operacional[6]

Esse trabalho se baseia em onze eixos identificados por LNS Research[7] na análise de negócio. Os eixos incluem ambas, considerações familiares da qualidade e outras menos familiares, que ajudarão as organizações a se moverem na direção de adotar a Qualidade 4.0 como o alicerce dos sistemas de gestão da qualidade.

a) Dados: As tecnologias da Indústria 4.0 permitem às organizações obterem em tempo real as métricas vitais para a qualidade que possibilitam uma rápida tomada de decisão.

b) Análise: Aprendizado de máquina e inteligência artificial permitem antecipação de falhas e cria informação para tomada de ações, evitando que elas aconteçam.

c) Conectividade: Sensores relativamente baratos podem conectar pessoas (via dispositivos inteligentes), produtos (por exemplo, disponibilizando feedback durante sua operação), dispositivos auxiliares (que realizam análises locais sem sobrecarregar a central do sistema), e processos. A alavancagem da conectividade permite a obtenção de feedback em tempo real ou quase real.

d) Colaboração: A Qualidade 4.0 pode alavancar novas ferramentas e práticas – tais como análise pela mídia social e blockchain – para obter percepções de fatores como satisfação do cliente, e maior visibilidade de movimento de componentes e produtos através da cadeia de suprimentos.

e) Desenvolvimento de aplicativos: Aplicativos são cada vez mais importantes ferramentas para conectar marcas com clientes – assim como empregados e outras partes interessadas – e obter dados vitais e feedback.

f) Amplitude de escala: Muitas empresas reclamam que suas fontes de dados e sistemas são fragmentados e tornam-se principais desafios para alcançarem seus objetivos da qualidade. Uma das principais ferramentas da Indústria 4.0 que pode resolver esse problema de escala é a computação em nuvem – seja ela software-como-serviço, infraestrutura-como-serviço ou plataforma-como-serviço.

g) Sistemas de gestão: Para colher o máximo de benefícios da Qualidade 4.0, organizações deveriam olhar para processos automatizados com software, e sincronizar e conectar esses processos automatizados com outros sistemas e operações. Melhorando a autonomia de sistema haverá redução do tempo gasto pelos gestores e staff do alto escalão na execução de suas tarefas o que permite a voltar seu foco na direção de melhorias e inovação.

h) Compliance: Qualidade 4.0 oferece uma variedade de ferramentas e técnicas que podem ser implantadas para automatizar atividades de Compliance. Análises de informações valiosas podem alertar as organizações sobre potenciais violações de Compliance; permitindo que ações preventivas sejam tomadas. Qualidade 4.0 possibilita que organizações acesse estratégias correntes de Compliance e identifiquem oportunidades de melhorias.

i) Cultura: Muitas organizações pensam que promovem e geram uma cultura da qualidade. Todavia, de acordo com LNS Research, apenas 13% de toda pirâmide hierárquica realmente entende como a qualidade contribui para o sucesso estratégico da organização. Conectando dados, análises e processos e, desse modo, aumentando a visibilidade, conectividade, colaboração e percepção, a Qualidade 4.0 faz uma verdadeira cultura da qualidade em toda a organização ser mais viável.

j) Liderança: Aqueles que exercem funções da qualidade acreditam na sua importância para o sucesso da organização, mas esse sentimento nem sempre permeia por toda a liderança do alto escalão. De acordo com LNS Research, apenas 37% da organização acredita que qualidade é crítica para a satisfação do cliente, 26% acreditam que a função qualidade tem um papel claro e atrativo em realizar a estratégia corporativa, enquanto apenas 13% dizem que é uma prioridade para a alta gerência. Qualidade 4.0 representa uma oportunidade para os grupos da qualidade alinharem claramente seus objetivos e práticas com os objetivos estratégicos.

k) Competência: Qualidade 4.0 compreende uma variedade de tecnologias que podem ser utilizadas para aumentar competência. Ferramentas de mídia social podem ser aproveitadas para compartilhar experiências e lições dentro das organizações, e mesmo entre organizações. Resultados de sistemas de aprendizado de máquinas e inteligência artificial podem ser usados para desenvolver novas expertises, enquanto sistemas de realidade artificial (RA) e realidade virtual (RV) podem ser usados para melhorar expertise de funcionários.

Seria um engano achar que as tecnologias que contribuem juntas para a Indústria 4.0 são qualquer coisa, menos transformadora em essência. Qualidade 4.0 representa uma oportunidade de utilizar as tecnologias da Indústria 4.0 para realinhar funções da qualidade com estratégia organizacional mais ampla.

 

  1. Visão da ASQ[8]

Para a ASQ (2022), Qualidade 4.0 é mais do que tecnologia. Ela é um novo caminho para profissionais gerenciar qualidade com ferramentas digitais disponíveis hoje e entender como aplicá-las e alcançar excelência por meio da qualidade. Essas ferramentas são:

 

a) Inteligência artificial: visão computacional, processamento de linguagem, chatbots, assistência pessoal, navegação, robótica, tomada de decisões complexas.

b) Big data: infraestrutura, fácil acesso a fontes de dados, ferramentas de gerenciamento e análise de grande volume de dados sem necessidade do uso de supercomputadores.

c) Blockchain: aumento de transparência e auditagem de transações (para ativos e informações), monitoramento de condições para que transações não ocorra a menos que objetivos da qualidade sejam cumpridos.

d) Deep learning: classificação de imagem, reconhecimento de padrões complexos, previsões de séries temporais, geração de texto, criação de som e arte, criação de vídeos fictícios a partir de vídeos reais, ajuste de imagem baseado na heurística (fazer uma pessoa carrancuda numa foto aparecer a sorrir, por exemplo)

e) Habilitação de tecnologias: sensores e atuadores acessíveis, computação em nuvem, software de código aberto, realidade ampliada (AR), realidade misturada, realidade virtual (VR), fluxo de dados.

f) Aprendizagem de máquina: análise de texto, sistemas de recomendação, filtros de spam de e-mail, detecção de fraudes, classificação de objetos em grupos, previsões.

g) Ciência de dados: a prática de reunir juntos volume de dados heterogêneos para realizar previsões, montar classificações, procura de padrões em grandes volumes de dados, redução de grandes volumes de observações para preditores mais significantes, aplicação de técnicas que soam tradicionais (tais como visualização, inferência e simulação) para gerar modelos e soluções viáveis.

 

  1. Considerações finais

Kimberlin (2019) realizando prospecção da Qualidade para o futuro afirma: quando qualidade é fundamental ela é integrada como uma filosofia organizacional que suporta e viabiliza inovação, crescimento, experiência positiva do cliente e o desenvolvimento de talento.

A Qualidade 4.0 permite suplantar desafios na relação empresa e cliente que até então eram impossíveis de vencê-los pela inexistência de técnicas (ferramentas) disponíveis para tal. A disponibilidade dessas técnicas leva a mudanças no comportamento e necessidades dos clientes bem como nos modelos e estratégias de negócio das empresas.

Nesse ponto é interessante destacar um rápido diálogo por e-mail entre Guaragna (EG), Diretor Presidente da ABQ, e o autor (VR), em 26 de outubro de 2022:

Referências

ASQ, Learn about quality, Quality 4.0 Tools, Milwaukee, WI, USA, 2022

[ https://asq.org/quality-resources/quality-4-0 ] (consulta em 28 de setembro de 2022)

CQI- IRCA, Quality 4.0 a working definition, London, UK, 2021

DRUCKER, P.F., Introdução à Administração, São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1991.

JURAN, Quality 4.0: The Future of Qualilty?, United States, 15 de junho de 2019.

KIMBERLIN, C., Quality for the Future in: Two Decades of Studying the Future, American Society for Quality, United States, 2019

RUSSO, V.A.F – BRESCIANI F., E., Desigualdade de renda e pobreza (Relatório de Pesquisa), Academia Brasileira da Qualidade – Estudos e Relatório Técnicos, São Paulo, 04 de dezembro de 2018, 31p.

RUSSO, V.A.F. – BRESCIANI F., E., O papel social das grandes corporações, Relatório não publicado apresentado no Seminários sobre Desigualdade Econômica e Social, do CLE – Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, da UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, setembro de 2022.

[1] Graduado em Engenharia Mecânica (FEM-UNICAMP); Diretor Presidente Aposentado da EATON – Hydraulics da América do Sul; Pós-Graduado em Engenharia Mecânica (FEM-UNICAMP); Professor de Curso de Extensão (FEM-UNICAMP); Membro do grupo CLE-DES do CLE-UNICAMP; Membro da ABQ.

[2] BRESCIANI F.,E.; Engenheiro Aeronáutico (ITA); Doutor em Engenharia e Professor Livre-Docente (EPUSP); Professor Titular Aposentado (FEM-UNICAMP); Membro do CLE-UNICAMP; Membro da ABQ.

[3] CQI é abreviatura de Chartered Quality Institute. IRCA é abreviatura de International Register of Certificated Auditors

[4] Compliance

[5] Mundialmente conhecido pelo seu trabalho no campo da qualidade e sua gestão, Joseph Juran fundou em 1979 o Juran Institute, hoje conhecido simplesmente por Juran.

[6] Para Juran (2019) excelência operacional significa que todos os funcionários podem ver, entregar e melhorar o fluxo de valor para o cliente.

[7] LNS Research: Industrial Transformation Leaders é uma organização de pesquisa e consultoria cuja Visão é um mundo onde a quarta revolução industrial está completamente realizada.

[8] A ASQ, abreviatura de American Society for Quality, é uma organização global cuja Missão é “ASQ capacita indivíduos e comunidades do mundo para alcançar excelência por meio da qualidade”

 

Vivaldo Antonio Fernandes Russo e Ettore Bresciani são membros da Academia Brasileira da Qualidade.

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

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