“O Brasil tem fome de ética e passa fome em consequência da falta de ética na política.”
Herbert de Souza (1935 – 1997)
INTRODUÇÃO
A falta de ética, não só na política como também no mundo dos negócios é um problema global, traduzido pelos inúmeros casos de corrupção envolvendo a iniciativa privada e os órgãos públicos.
Infelizmente estamos na desonrosa 105ª posição na classificação do Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional (dados de 2018).
Os avanços da biotecnologia, associados à evolução auto catalisadora da Inteligência Artificial, já sinalizavam para um futuro de grandes incertezas. Na área industrial, com o grande aumento da substituição do trabalho humano pelas máquinas, e na prestação de serviços cada vez mais dependente de decisões tomadas por algoritmos. A pandemia da COVID-19, além de acelerar essas evoluções, introduziu mais um elemento nessa incerteza: as mudanças nas nossas formas de relacionamento, tanto no trabalho como socialmente.
A única certeza que temos é que o futuro será muito diferente.
Anos atrás, discutindo os desafios de tomar decisões durante a guerra do Oriente Médio, Donald Rumsfeld, Secretário de Defesa dos EUA, nomeado pelo presidente George Bush, descreveu os fatores variáveis envolvidos da seguinte forma: “Há coisas que sabemos que sabemos, coisas que sabemos que não sabemos e coisas que nem sabemos que não sabemos.”
Ao final de 2019 e início de 2020, uma das coisas que “sabíamos que sabíamos” era que, apesar da crise política, a economia no Brasil estava se recuperando, com previsões de crescimento de 2,5 a 3% do PIB.
Entre as “coisas que não sabíamos” existia a possibilidade de um evento global e grave que poderia mudar repentinamente nossa forma de viver e derrubaria a economia em escala global. Tínhamos consciência dessa possibilidade, mas ninguém sabia ou imaginava o que poderia ser. Ao iniciar-se 2020 a maior de todas as coisas que “nem sabíamos que não sabíamos” foi a pandemia da COVID-19, um vírus incrivelmente agressivo que se espalhou a partir da China. Atualmente, após quase um semestre da pandemia, as previsões do FMI para a economia são de grandes quedas do PIB (EUA cerca de 8% e Brasil cerca de 9%).
Nos tempos turbulentos que viveremos a partir do controle da pandemia, esperado para ocorrer no Brasil antes do final de 2020, deveremos concentrar o nosso foco sobre as coisas que “sabemos”, aquelas em que podemos confiar e das quais podemos depender.
Estamos entrando numa “era da incerteza”, mas dentre as poucas coisas nas quais podemos nos apoiar confiantemente, qualquer que seja o cenário, estão a Qualidade, a Ética e a Responsabilidade Social Empresarial.
PÓS COVID-19
Os termos ética e responsabilidade social nunca estiveram tão atuais como agora nesta época de questionamentos à globalização, com mudanças culturais e na forma de trabalhar que afetarão profundamente a vida no pós COVID-19.
Como lidaremos com o desaparecimento de postos de trabalho e grande aumento do relacionamento virtual nas nossas vidas e no trabalho? Como isto afetará as nossas ações pela Qualidade?
No seu sentido geral mais profundo ética e termos religiosos são abundantes na linguagem da qualidade (Valores, Missão, Visão, Razão de Ser, Credo, Autocontrole, Envolvimento, Balanceamento de necessidades e interesses de todas as Partes Interessadas, etc.).
Vale ressaltar que ética e qualidade podem ser consideradas sobre o mesmo enfoque: “fazer certo as coisas certas”.
A automação/robotização de grande parte das atividades humanas já era uma tendência e, no pós COVID-19, será fortemente impulsionada. A maioria das decisões sobre Qualidade e Ética, no entanto, serão tomadas na definição dos algoritmos que comandarão as atividades. Por exemplo, qual a decisão ética de um veículo autônomo na situação de um potencial atropelamento: desviar de maneira brusca, independentemente de onde se encontra, para não atropelar o pedestre distraído, podendo causar ferimentos ou, até a morte ao proprietário, ou agir de forma a sempre preservar a vida do usuário, podendo até causar a morte do pedestre distraído?
A boa gestão sinaliza de longa data a necessidade de tratar-se os temas relativos a qualidade, a ética e a interação com a sociedade de forma integrada com as demais áreas da Organização.
Esta integração deverá ser fortemente influenciada pelas mudanças culturais que estão ocorrendo a partir das ações tomadas durante a pandemia, principalmente o isolamento e o distanciamento social.
O enfoque do passado – necessidade do atendimento a dispositivos legais e regulamentares, para evitar punições – deverá ser substituído pelo comprometimento, procurando motivar toda a força de trabalho, principalmente pelo exemplo da Alta Direção. Os mecanismos de controle, representados pela presença física do Líder, deverão cada vez mais ser substituídos pelo autocontrole. Isto, no entanto, requer maturidade, tanto do líder gestor como de sua equipe ou força de trabalho. O enfoque deverá ser evolutivo na direção do autocontrole para atingir a maturidade.
Não haverá mais espaço para a cultura do “jeitinho”, que felizmente está sendo combatida pela Sociedade cada vez com mais força.
Com o comprometimento da Alta Direção e da força de trabalho da Organização, baseado num sábio conhecimento de crenças, valores e objetivos de médio e longo prazo, será possível conquistar a confiança, a lealdade e a fidelidade da força de trabalho e do mercado.
A grande dúvida neste novo cenário é se o modelo de negócio com a aceitação consciente da qualidade, da ética e da responsabilidade social empresarial como pilares fundamentais é economicamente viável.
No pós COVID-19 com um grande incremento das novas formas de trabalho e relacionamento (home office / videoconferência, lives, webinars etc.) a lealdade da força de trabalho e a fidelidade dos clientes passam a ter muito mais importância como fatores fundamentais para o sucesso.
Voltando ao cenário do século XX tínhamos como uma das formas mais eficazes e práticas para demonstrar a necessidade e vantagens da qualidade as técnicas relativas à apuração dos custos da qualidade e da não-qualidade. Foram desenvolvidas por um Comitê específico da ASQ – American Society for Quality – e diversos autores, com destaque para Phillip Crosby.
Analogamente se pensarmos nos custos associados à falta de lealdade e fidelidade, podemos concluir que a aceitação consciente da qualidade, ética e responsabilidade social empresarial como pilares fundamentais de qualquer organização será um bom negócio também do ponto de vista econômico.
CONCLUSÃO
Seria temerário ou muito pretensioso indicar uma conclusão para os pensamentos apresentados. No entanto, reiterando o mencionado na Introdução de que existem coisas que “nem sabemos que não sabemos”, podemos alinhavar alguns pontos a título de estabelecer um raciocínio decorrente do que foi exposto:
• Mudanças comportamentais na estrutura social das nossas vidas, que ocorrem agora em função de confinamentos e lockdown, deverão ter continuidade com as atenuações e ajustes que necessariamente irão ocorrer.
• Novas formas de trabalho e investimentos em automação, que já vinham ocorrendo, deverão ter a sua velocidade de implementações sensivelmente aumentadas.
• O setor de serviços terá um forte incremento, principalmente na área do comércio não presencial e logística.
• O agronegócio será impulsionado, devendo ser um dos setores que menos impacto terão devido ao COVID-19. Segundo cálculos do CEPEA – Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da ESALQ/USP – o PIB do agronegócio de janeiro a março de 2020 cresceu 3,29%. As mudanças sociais nas zonas rurais deverão ser bem menores que nas áreas urbanas.
• O modelo de negócio com a aceitação consciente da Qualidade, da Ética e da Responsabilidade Social Empresarial como pilares fundamentais poderá se tornar, de fato, o balizador para um mundo melhor. Iniciativas neste sentido já existem no universo empresarial desde o final do século passado, apresentando, no entanto, muita boa intenção retórica e resultados práticos inferiores ao desejado. A iniciativa mais recente, a “Business Roundtable” – BRT – exprime o compromisso de CEOs de 181 das maiores empresas americanas, que declararam que o objetivo de uma corporação não serve apenas para atender os acionistas (posição oficial desde 1997), mas “para criar valor para todas as partes interessadas”. Substitui-se desta forma o modelo econômico global dominante há cerca de 50 anos – primazia dos acionistas – que tinha como guru o economista Milton Friedman (“a responsabilidade social dos negócios é aumentar seus lucros”). Da mesma forma o Fórum Econômico Mundial – WEF – vem enfatizando que a competitividade de um país passa por políticas sociais inclusivas e ambientais responsáveis como legados a próximas gerações.
Aos grandes desafios das próximas décadas – mudança climática, crescente desigualdade de renda, escassez de água e recursos, degradação e perda de solo, biodiversidade, etc. – deve-se acrescentar agora o enorme desafio da economia global em decorrência da pandemia da COVID-19.
Mais do nunca é preciso ter esperança de que neste novo cenário todos realmente adotem o agir no presente com o pensamento nas consequências e resultados de longo prazo e lutem por políticas que permitam um mundo próspero mais justo. Caso contrário, o BRT e o WEF serão apenas mais uma retórica vazia e a crise econômica pós pandemia só contribuirá para agravar as desigualdades.
Francisco Paulo Uras é acadêmico da Academia Brasileira da Qualidade – ABQ.