Por Mauriti Maranhão
Este documento é uma tentativa de evidenciar a analogia entre a luta da natureza para manter a vida a os esforços humanos para criar e manter um mundo melhor.
Tento estabelecer, tanto em bases intuitivas quanto epistemológica, a relação entre ordem e qualidade. Após fazer uma breve introdução ao tema qualidade, apresento as razões da relação intuitiva e normativa entre ordem e qualidade. Após tecer considerações técnicas sobre informação, procuro incluir este tema na relação, assim formando a tríade relacional qualidade, ordem e informação.
Faço uma breve argumentação sobre a natureza do conhecimento, passo por notícia sobre entropia e resumo o improvável milagre da vida no Planeta Terra. Finalizo o conteúdo com considerações sobre redes de informação, apresentando alguns exemplos de boa e de má convivência de algumas dessas redes com ordem e qualidade.
1.Uma introdução à Qualidade
Minha inspiração para escrever este artigo nasceu quando cheguei a uma grande rotatória[1] em Dublin, àquela hora com intenso trânsito. O tráfego fluía natural e velozmente, causando-me uma indagação natural: o que estava por trás dessa harmonia, que soava como uma sinfonia, sem buzinas, freadas bruscas, sem altercações, sem interrupções?
Bingo: intuitivamente, a ordem. Ordem na engenharia de tráfego, ordem na urbanização da rotatória, nas regras estabelecidas e estritamente cumpridas. Imediatamente associei essa harmonia ao tema “qualidade”. Incontestavelmente, o funcionamento da rotatória em tela é um bom exemplo do elevado grau de ordem deste ambiente, o mesmo que dizer elevado grau de ordem deste sistema.
Dessa experiência, me veio à mente uma outra indagação: como tudo isso foi criado, é mantido e continuamente aperfeiçoado?
Vamos começar do início, com o fim de não assustar leitores não iniciados no assunto qualidade.
Qualidade, o que é isso? De acordo com a Norma Técnica NBR ISO 9000:2015, a compreensão do termo “qualidade” pode ser simplificada (sempre há risco em simplificar) como conformidade a determinados requisitos estabelecidos a priori entre fornecedor e cliente.
Requisitos são padrões ou características que firmam o entendimento comum entre fornecedor e cliente sobre o que vai ser transacionado. A NBR ISO 9001:2015 inclui como requisitos tanto aqueles que são próprios desta norma quanto outros mais específicos sobre a organização, tudo em prol de bem satisfazer as necessidades do cliente. Em outras palavras, a qualidade é o nível de “perfeição” de um contrato pertinente a processo, serviço ou produto, entregues por um fornecedor aos seus clientes, de modo a obter a satisfação destes.
Resta claro que a NBR ISO 9001:2015 tem por objetivo estabelecer determinada ordem na gestão de uma organização, necessário a tornar os seus processos mais robustos e mais previsíveis, assim evitando o cometimento de falhas evitáveis.
Há o pressuposto de que esta organização, antes da intervenção para mudanças na gestão, não tivesse o necessário grau de ordem requerido.
De onde vem essa natural necessidade por qualidade, por desenvolvimento e progresso na economia?
A essência da virtude[2] “qualidade” é orgânica da evolução do homem. A história dessa evolução sugere que o homem, desde suas origens como Homo sapiens, tem sido condicionado primeiro a fazer, a construir, mediante comparação das propriedades não fundamentais das coisas com que se depara (textura, cor, brilho, sabor, odor etc.) às percepções dos seus sentidos. O impulso de construir se dá em razão de busca incessante para melhorar funcionalidade dos utensílios que tinha em mãos[3].
Isto acontece porque o homem necessita compreender a realidade com que se defronta, de modo a assegurar a sua sobrevivência. A necessidade de compreender a sua realidade condiciona o homem a pensar e a fazer análises da sua situação.
Como resultado das análises (que são inconscientes), a cada evento o homem gera juízos (pensamentos) que podem ser afirmativos, negativos ou indefinidos. Tais juízos provocam, respectivamente, reações de aceitar e aprimorar a sua compreensão do evento ou de rejeitá-lo, neste caso lutando ou fugindo, caso perceba riscos à sua sobrevivência.
A singularidade está na essência dos sapiens, o DNA, que é sempre único, tal como o são as suas digitais. Daí decorrer que os homens nutrem diferentes forças internas motivadoras (anima mundi) para sair de sua zona de conforto, indo além do simples fazer, mas agora na busca da perfeição, da sofisticação.
O notável cientista Joseph Juran identificou que a busca espontânea para agir e aperfeiçoar está presente não na cúpula das organizações, mas em algumas pessoas[4] do nível médio das organizações, que são intrinsecamente motivadas ou idealistas.
São essas pessoas que espontaneamente assumem a espinhosa tarefa de promover, de difundir e de implementar a qualidade nas organizações. São pessoas que se empenham diuturnamente na busca incessante da melhoria contínua, em fazer melhor, em alinhar produtos e serviços às necessidades e expectativas dos clientes. Em outras palavras, essas pessoas tem o olho preparado para aprimorar a ordem em todos os processos da organização.
2.Considerações iniciais sobre as relações entre qualidade e ordem
Tentemos confirmar a relação entre qualidade e ordem, estabelecida intuitivamente ao início deste conteúdo. Para tanto torna-se oportuno relembrar dois conceitos estabelecidos pela Academia Brasileira da Qualidade (ABQ), diante da necessidade de melhor caracterizar os limites de abrangência de aplicação da qualidade para fins do Prêmio Mario Csilag.
O primeiro deles, qualidade stricto sensu, restringe a extensão da qualidade aos aspectos formais, às relações normativas entre cliente e fornecedor, estabelecidas pela NBR ISO 9001:2015.
O segundo conceito, qualidade lato sensu alarga a sua compreensão, estendendo-a às ações para promover um ambiente de bem-estar geral[5], em busca de relações econômicas sustentáveis, no afã de alcançar ordem superior, harmonia, justiça, equidade, motivados por anseios mais nobres, mais sofisticados.
Neste ponto chegamos a uma primeira e fundamental conclusão empírica: tanto para a qualidade stricto sensu, quanto para a qualidade lato sensu, é imperioso haver e manter ordem. Neste contexto, a palavra “ordem” é utilizada de acordo com um dos seus sentidos vernáculos: “sistema de regras e princípios jurídicos aplicados, em caráter comum, às atividades privadas dos cidadãos e que estabelecem as normas que se avocam para a defesa de seus interesses”.
Ordem implica estabelecer regras comuns a todos e respeitá-las, de modo a manter a harmonia no ambiente considerado[6], objeto da nossa atenção.
Tentemos encaixar a essência de ordem à natureza que nos cerca.
Esbarramos numa séria dificuldade: a ciência demonstra que a existência de ordem contraria a natureza. Como assim?
A Terceira Lei da Termodinâmica[7] mostra que o mundo caminha velozmente para destruir toda a ordem vigente. Em outras palavras, a existência de ordem e, portanto, de qualidade, é antinatural. Criar ordem (ou qualidade) implica consumir uma quantidade e um tipo específico de energia. Daí dizer-se, com propriedade, que a gestão, a governança, a manutenção da ordem vigente sempre desgastam. O gestor tem prazo de validade, já que a sua energia útil vai sendo consumida e desgastada como o tempo (perda da sua utilidade marginal).
Por decorrência, a execução de toda e qualquer atividade da economia, pequena, grande, simples ou complexa, implica alguma perda de energia útil do repositório existente, com maior ou menor impacto ao meio ambiente. Por decorrência, manter qualidade requer a aplicação contínua de energia coerente, capaz de gerar mudanças construtivas no ambiente considerado, seja ele um objeto, um indivíduo ou uma organização de qualquer tamanho.
Suponhamos que queiramos avaliar o grau de qualidade, informação ou ordem física existente em um automóvel. Imaginemos duas condições: o grau de ordem física existente em um Corolla novo, comparando-o com a ordem física de um Corolla que sofreu um acidente e teve perda total.
O Corola novo custa R$150.000,00 e pesa cerca de 1.400 Kg. Fazendo as contas, concluímos que o valor específico de mercado do Corolla novo é R$150.000/1400Kg, o que dá aproximadamente R$107/Kg. Já o Corolla sinistrado será vendido pelo valor de sucata, terá valor de mercado aproximado de R$5/Kg (cerca de vinte vezes menos).
O que explica tanta diferença de valor? Simples: o Corolla novo possui grande ordem física (informação) de todos os seus elementos construtivos. Dispensado afirmar que isso consumiu grande quantidade de energia útil dos seus fabricantes. Já o Corolla sinistrado apresenta enorme desarranjo físico, uma vez que toda ou quase toda a ordem física original foi destruída.
Notável é que a quantidade de matéria de um e outro são praticamente iguais. A única diferenciação se dá no arranjo físico dos átomos, ou seja, na ordem física dos seus elementos.
O mercado[8], soluciona essa questão, ao atribuir valor de acordo com o grau da qualidade, informação e ordem física existentes em ambas as situações, do que decorre a enorme diferença de valor entre um Corolla original e um Corolla sinistrado.
É fácil perceber que no Corolla novo foram necessários incorporar grandes quantidades de conhecimento, know-how e capital, o que consumiu energia útil. Sua configuração[9] é plenamente específica e ordenada, sem grandes variedades, tudo dentro de uma especificação conhecida (todos os Corolla novos de determinado modelo são “iguais”).
A relação entre ordem e qualidade pode ser vista também na economia. Friedrich Hayek percebeu que em um sistema no qual a informação é bem difundida entre muitas pessoas (sociedade ordenada), os preços podem atuar para coordenar as ações separadas de muitas pessoas, por vezes milhões ou mesmo bilhões. Observar que a informação atua como fator organizador da sociedade, imprimindo-lhe algum grau de ordem.
Essa coordenação é denominada como a “mão invisível do mercado”. Importante ressaltar que a “mão invisível do mercado” somente atua quando as informações são simétricas, isto é, são ordenadas, bem distribuídas e relativamente uniformes no seio das sociedades. Em outras palavras, a classe média de uma sociedade é construída com base em simetria das informações, cuja resultante é a ordem vigente, a qualidade das relações econômicas.
É o que acontece em sociedades mais igualitárias (Europa Ocidental, Países Nórdicos, Japão, Austrália, Nova Zelândia etc. É a ordem (e qualidade) em benefício da sociedade. Dispensado dizer que a construção da ordem vigente consumiu muita energia útil e sofrimento.
Também é fato que, como determinado pela propriedade entropia, manter a ordem em qualquer ambiente requer o dispêndio constante de energia. Toda ordem estabelecida é instável, permanentemente ameaçada de ser destruída. Toda ordem estabelecida carece de reconstrução permanente. Essa instabilidade[10] da ordem está presente em todas as democracias conhecidas.
Do mesmo modo que a existência de ordem (informações simétricas) explica o poder regulador do mercado (condições para transações justas), a carência de simetria de informações explica a sua deterioração. É o baixo grau de ordem da maioria das sociedades, incluindo países da América Latina e África, o que aumenta a desigualdade social. Mais uma vez, é a desordem causando danos e sofrimento à sociedade.
3.Informação e conhecimento
A informação nada mais é que ordem física dos seus elementos constituintes (bits). A informação não é tangível, não é um sólido nem um líquido. A informação não tem corpo, mas é fisicamente incorporada em objetos. A informação não é uma coisa em si, mas o arranjo físico de todas as coisas construídas pelo homem ou pela própria natureza. Informação, neste caso, significa ordem física das coisas, causando amortecimento dos conflitos humanos.
A Informação é composta de conhecimento e de know how. Conhecimento é o resultado de relacionamentos ou ligações entre entidades. Já know-how é a capacidade de realizar ações a partir do conhecimento existente.
O know how é um tipo de conhecimento tácito e, portanto, não documentável. O know how pode ser individual ou coletivo. Ambos são fundamentais para o acúmulo e a incorporação de informações na economia e na sociedade.
A revolucionária digitalização da informação surgiu em 1948, concebida pelo gênio de Claude Sannon, matemático e engenheiro americano. Shannon conseguiu quantificar a informação, reduzindo-a a uma sequência de bits 0 (desligado) ou 1 (ligado). A digitalização da informação constituiu a base para o desenvolvimento dos computadores digitais[11]. A particular ordem da sequência 0 ou 1, portanto, define um conteúdo que, gerado em lugar, pode ser fielmente reproduzido em outro lugar.
A partir daí, tornou-se possível transmitir, processar e armazenar informação em bases digitais, assim formando, quantitativamente, o arcabouço estrutural do desenvolvimento moderno.
Antes de Shannon, a informação era regulada apenas por regras empíricas. A célebre máquina alemã de codificação de mensagens Enigma foi retratada no famoso filme ”O jogo da imitação”, sobre a vida de Alan Turing, que desvendou as regras empíricas da Enigma.
O incremento da informação requer a circulação de novos conteúdos (conhecimento e know how) para todos os envolvidos no sistema considerado. Relembra-se que o incremento de informação somente se concretiza após incorporação do seu conteúdo no cérebro, o que requer consistência, perseverança, talento e arte.
Por conta da insuficiência na comunicação decorre a perda de recursos das organizações quando falham em transmitir a informação para os seus colaboradores. O recurso é consumido, mas a informação não circula, por não ter sido adequadamente incorporada ao cérebro das pessoas. A informação é ouvida mas não é escutada.
Desse modo, o desenvolvimento humano acontece pelo acúmulo sucessivo de conhecimento e de know how. O desenvolvimento também implica no aumento contínuo do grau de qualidade (ou ordem) na economia. Sendo a informação (conhecimento e know how) o conteúdo intelectual da qualidade, fica confirmada a estreita relação orgânica entre ordem, informação e qualidade. Implementar qualidade, portanto, é o mesmo que promover o incremento da informação, de modo a aprimorar a ordem no ambiente considerado.
Por outro lado, o inexorável aumento da entropia implica que a informação existente tende a ser destruída. Para assegurar a sobrevivência, a natureza criou engenhosos mecanismos para esconder a informação em sólidos; caso contrário, ela teria vida curta, não cresceria e se deterioraria, desaparecendo e não haveria vida na Terra, como ocorre em outros planetas.
A compreensão mais completa do tema “informação” requer pensarmos em dois conjuntos distintos: a informação que permite todas as formas de vida criadas pela natureza, contraposto àquilo que é fruto do trabalho inteligente do homem. Ambas as abordagens têm como ponto comum a possibilidade de “esconder” a informação em sólidos, uma vez que, como já vimos, se não estiver escondida em algum sólido, a informação será destruída.
No que tange à vida orgânica, a informação é incorporada aos respectivos DNA, específicos de cada espécie viva. Os DNA são replicados a cada nova geração do ser considerado, na forma de sementes, vírus, bactérias ou células.
No caso da vida inteligente, toda informação é “escondida”, armazenada pelo homem nos objetos que ele cria ou produz. Essas informações são armazenadas em chips, sistemas, bases de dados, normas, leis, automóveis, aviões, navios etc.
Sempre que alguém compra um produto recebe junto boa parte das informações que foram utilizadas para construí-lo, sendo esta uma das formas importantes de transferência de tecnologia entre mercados. Por exemplo, ao comprar os jatos Gripen, o Brasil recebeu da Suécia enorme quantidade de informações tecnológicas incorporadas aos aviões durante a sua produção, bem como todo o acervo da documentação orgânica dessas aeronaves.
O extraordinário gênio inventivo do homem é concretizado e multiplicado pela a sucessiva incorporação de ordem física aos objetos durante os processos da economia, que transformam insumos em produtos, sejam eles bens ou serviços.
Qualquer descuido com a ordem existente provoca retorno ao estado de desordem anterior, ou pior. Assim é a nossa saúde física e mental: não havendo esforço físico e mental, ela se deteriora. Tudo explicado pela força da entropia.
Importante também lembrar que tudo que não se transforma, não cria, não inova tende a perder a ordem, ficando mais exposto à ação da entropia, o que abre caminho à sua destruição. Em outras palavras, tudo o que não melhora, piora.
Doenças podem ser vistas como uma perda da ordem incorporada na sequência do DNA, dado que cada dos genes é um corpo físico que acumula informações. Vida saudável implica ordem; vida não saudável implica alguma desordem. Vista de outro modo, doenças são provocadas por perda da ordem que deveria existir.
4.O milagre do crescimento da ordem
Para trazer alguma luz sobre as raízes do improvável aparecimento de ordem em um ambiente caótico, que marcha para a sua própria destruição, utilizei informações do trabalho de César Hidalgo[12].
Surge uma intrigante questão: se tudo, desde o Big Bang, tende à desordem, à destruição, como nasceram alguns estados de ordem na Terra, ou seja, a vida que emerge na flora, na fauna, na família, nas empresas, nas sociedades, no mundo?
A aparente contradição da vida é explicada pela ciência, que revelou a existência de três extraordinários mecanismos naturais capazes criar ordem[13], assim “contrariando” a natureza: fluxo de energia em sistemas fora de equilíbrio, acumulação de energia em sólidos e a habilidade da matéria computar ou processar informações.
É fato que qualquer sistema pode estar em um estado de equilíbrio ou fora de equilíbrio. Sistemas fora de equilíbrio implicam instabilidades energéticas, que geram fluxos de energia. São os fluxos de energia que provocam mudanças, isto é, a alteração do estado de ordem anterior. A vida é, por excelência, um sistema fora de equilíbrio, com sucessivos fluxos de energia. Enquanto há vida haverá mudanças. A ausência de mudanças implica a morte dos seres vivos.
Além dos três mecanismos naturais citados, para que haja vida é necessário mais uma condição: adição de energia[14], na forma de luz, calor, centelha etc. É a energia que provoca os fluxos e o desequilíbrio nos sistemas. Felizmente temos o Sol como uma maravilhosa fonte de energia. Mas o Sol é também submetido aos efeitos da entropia e em algum dia se resfriará, provocando a extinção da vida na Terra (se os homens não o fizerem antes).
Como os sólidos permitem que a informação neles incorporada perdure, ela se recombina e cresce. A recombinação é essencial para o contínuo crescimento da informação. O produto do processamento de informações é a criação de ordem física, que implica existência de rearranjos físicos dos seus elementos constituintes do objeto considerado, pertença ele a qualquer sistema, simples ou complexos, orgânicos ou inorgânicos. Essa é a dinâmica da economia e da vida.
A vida em resumo, é consequência da habilidade de a matéria computar, como faz nosso cérebro, um órgão interno do nosso corpo, uma semente ou um programa de computador.
A informação não pode florescer em ambientes hostis. A vida na Terra somente é possível porque ainda vivemos em uma estreita faixa de condições climáticas capazes de permitir que informação apareça e seja armazenada em sólidos complexos, como o DNA.
Tanto ambientes gelados como ambientes muito quentes (o Sol, por exemplo) são estéreis à vida. Daí porque é baixa a probabilidade de encontrar vida como a conhecemos em outros mundos: este necessitaria ter essa ocorrência simultânea e específica de fatores que tornam a vida possível entre nós. Lamentavelmente, o homem está transformando as condições climáticas da Terra, a ponto de colocar a vida em risco.
Por vezes esquecemos de tecer analogias entre a natureza e a vida das organizações sociais (que envolvem pessoas). Ora, uma organização é um sistema, razão pela qual tudo o que foi explanado se aplica integralmente a qualquer organização, a quaisquer sistemas vivos, que processam e armazenam informações. Relembra-se que a informação está incorporada em sólidos, na flora, na fauna, desde uma célula até seres humanos, organizações empresariais, cidades países etc.
Organizações que mantêm ambientes hostis a mudanças poderão dificultar ou até impedir a geração de ordem, de qualidade, de criação de inovação, de criação de valor. São organizações com prazo de validade. As tentativas de transformar o ambiente terão vida breve, provocando desgaste e desânimo naqueles que tentaram aprimorar o sistema. Dificilmente farão outra tentativa de criação de ordem e, por consequência, de melhoria.
5.Redes de informação
Incorporar mais conhecimento e know how a apenas alguns indivíduos ou objetos é de pouco valor, em face da sua pequena abrangência social. Para ser sustentável, a economia tem que crescer e o crescimento implica aumentar o conhecimento e o know how, de modo que ela se torne cada vez mais eficaz e mais eficiente. A economia tem o poder de amplificar o conhecimento e a imaginação, produzindo a vida que temos hoje.
A história revela que desde os primeiros registros do Homo sapiens tudo que mudou na face da Terra decorreu da reorganização da informação em vetores, volumes, quantidades e complexidade cada vez maiores. Novas informações trazem sempre novas mudanças na vida das pessoas.
A cada nova invenção são criados inúmeros objetos (alimentos, roupas, máquinas, edifícios, aviões, relógios, telefones, computadores, estradas etc.) que são verdadeiros depósitos de informação. Hoje vivemos imersos em um emaranhado de incríveis objetos, com quantidade e complexidade de informações que escapam à capacidade mesmo de um super-humano de tudo compreender.
Como solução natural às suas limitações individuais, o homem criou redes de informação[15] cada vez maiores, de modo a amplificar a utilidade e o processamento das informações. Hoje essas redes de informação são gigantescas e continuam a processar, a computar. Por decorrência, essas redes aumentam em quantidade e em complexidade de processamento. São essas redes que permitem operar e controlar toda a economia ou atividade humana na Terra.
As sociedades são compostas por grupos afins de pessoas, que recebem a denominação genérica de “organizações”. Essas organizações são compostas por dois conjuntos principais de elementos: um arsenal de ferramentas (equipamentos, resumidos a hardwares e softwares) e pessoas, que operam essas ferramentas.
Convencionou-se chamar de sistema de gestão da qualidade ao conjunto de elementos humanos e materiais capazes de organizar e operar as organizações, de modo a transformar entradas (matérias primas, serviços e informações) em produtos e serviços. Em outras palavras, o sistema de gestão da qualidade conecta de forma inteligente as ferramentas e as pessoas das organizações.
Quando restringimos o nosso pensamento a um sistema de gestão da qualidade[16], não podemos ignorar que ele é constituído de sólidos, ferramentas e seres humanos, que armazenam e processam informações pertinentes ao conhecimento e ao know how que nos foi legado por outras gerações.
Ressalta-se que, conhecimento e know how somente podem ser úteis e utilizáveis quando os destinatários dessas informações os incorporarem (internalizem) na medida adequada. Sem isso (informação não incorporada ao cérebro), conhecimento e know how não terão utilidade prática; a informação será destruída.
Ora, se conhecimento e know how não estiverem incorporados ao cérebro (que é físico) do indivíduo, ele não conseguirá processar essas informações. Neste ponto, o sistema sofreu descontinuidade, o que significa perda de informação, aumento de entropia e perda de eficácia e eficiência[17] do sistema de gestão.
O fato surpreendente é que isso ocorre com inacreditável frequência, tanto na área empresarial quanto, especialmente, na gestão de governos. É a certeza de desperdícios e de fracassos.
Todos concordamos que seria extremamente perigoso entregar um avião comercial a um piloto com carência de conhecimento e know how para pilotá-lo.
6. Conclusão
Um sistema de gestão da qualidade eficiente e eficaz funciona como um grande computador conectado a cada um dos seus elementos constituintes (ferramentas e pessoas), por meio de uma rede de informações capaz de crescer continuamente, com ordem (e qualidade).
O vigor dessa rede de informações nos dará uma medida do conhecimento e do know how que ela conseguiu amealhar e dará uma medida da força desse sistema. Por decorrência, esse vigor espelha a sua capacidade de produzir novas conexões, de gerar produtos e serviços, que aumentam a riqueza, o progresso e a prosperidade, enfim a capacidade de criar e de inovar.
Parece-me que, definitivamente, a expressão do grau da qualidade de um sistema de gestão da qualidade é retratado pela quantidade e qualidade da ordem ou informações incorporadas a esse sistema, que determina a “melodia que ele toca”, vigorosa e harmônica, ou barulhenta e desconfortável.
Falar de ordem, de informação e de qualidade é falar sobre coisas afins[18]. É a ordem que promove o estabelecimento de regras, bem como o respeito consentâneo ou compulsório a elas. É esse exercício contínuo que desenvolvem os hábitos, que gera a cultura do sistema observado.
A observação mais atenta de tais sistemas ao fim e ao cabo revelam em que medida operam as redes de conexões, quanto elas mostram consistência das informações disponíveis, bem como se há eficácia e eficiência no processamento dessas informações. Sintetizam o esforço coerente de todos e de cada uma das pessoas deste sistema a operarem o papel que lhes cabem, utilizando o conhecimento e o know how disponíveis.
E, para que a operação seja eficaz e eficiente, cada um dos elementos do sistema considerado necessita estar plenamente integrado, síncrono, conectado, de modo a utilizar todo o conhecimento e o know how nele existente e ainda com a possibilidade inesgotável de aumentar e aprimorar as informações, isto é, o conhecimento e o know how.
Seguem-se alguns singelos exemplos e comparações de bons e não tão bons sistemas de gestão da qualidade vivenciados pelo autor:
- Pelo menos limitado à Europa Ocidental e aos EUA, os cruzamentos de vias em nível em vias rodoviárias possuem tantos sinais de trânsito quanto a segurança do tráfego assim o requerer. Nunca vi um único farol queimado nem mal posicionado nesses lugares. É um bom exemplo de ordem e qualidade no trânsito, que implica em maior segurança e escoamento da logística na economia;
- Como contraexemplo, na cidade do Rio de Janeiro, a segunda maior do Brasil, é raro encontrar um conjunto de sinais de trânsito corretamente posicionado e com todos os seus faróis operando. É o retrato da má gestão, da falta de ordem, das quais decorrem insegurança, desnecessárias perdas de vida, notável perda de tempo e de recursos e, portanto, exemplo de desordem;
- Em termos mais gerais, quando há ordem no planejamento urbano, tudo se torna mais fácil, os serviços essenciais têm maior probabilidade de bem funcionar, gerando bem-estar, segurança e menor custo de logística e de manutenção. Quando a desordem urbana impera, tudo fica mais difícil e mais custoso. Não se percebe ambiente de bem-estar, há aumento da violência e maiores custos de manutenção.
- Na física, o fluxo laminar tem ordem, enquanto nos fluxos turbulentos impera o cáos, a desordem. Daí a limitação de melhoria da eficiência no atual transporte aéreo comercial. Explica-se: em razão de o fluxo de ar, após percorrer parte da fuselagem do avião, tornar-se turbulento, aparece arraste (resistência ou drag ) e, por consequência, perda de eficiência energética, aumento do consumo de combustível, com maiores danos ao meio ambiente. Ainda não há uma solução satisfatória para esta limitação;
- Não há país rico e desenvolvido cuja sociedade despreze a ordem, que é a base para estabelecimento e cumprimento das regras estabelecidas, previsibilidade e ambiente favorável a negócios.
- Observe-se que em quase todas as culturas latinas é sempre mais difícil o estabelecimento da ordem. Daí se compreender uma das razões básicas para a precariedade de economias da América Latina. O mesmo se dá na África e parte da Ásia. Mais uma vez: enquanto a ordem é irmã siamesa do elevado grau da qualidade resultante, a desordem o é espelho do baixo grau de qualidade, da entropia, de perdas desnecessárias de recursos;
- Um outro exemplo de ordem é a coleta de lixo reciclável em Dublin. São vários centros de coleta de lixo descartável (papel, papelão, vidros coloridos, vidros brancos, madeira, metal, tecidos etc.), todos operados pelos Governos locais. São espaços grandes, limpos, organizados e urbanizados, contando com variados tipos de coletores. A frequência de usuários é grande, especialmente em fins de semana. Tudo se passa com notável civilidade e usabilidade, o que estimula a sociedade a fazer a coleta seletiva. Mais uma vez, a ordem trabalhando em prol da sustentabilidade;
- Em uma visão micro, quando há ordem (informação) nas áreas departamentais de uma organização, há tendência de que que as relações internas e externas sejam mais harmoniosas. Como resultado, as ações gerenciais tendem a ser mais virtuosas, do que decorre a satisfação no trabalho nesta organização, menos pressão, maiores resultados e melhor qualidade de vida dos colaboradores.
- Em uma visão macro, quando há ordem em uma país, há tendência de que que as suas instituições sejam harmoniosas. Como resultado, as ações do governo tendem a ser mais virtuosas, do que decorre segurança jurídica, menores custos de contratos, bem-estar social, condições que culminam na qualidade de vida neste país.
- Especificamente no atual momento, o Brasil vive inacreditável desordem nas suas instituições. O desastroso resultado para a sociedade é a desorganização da economia, com aumento da desigualdade, desemprego, assistencialismo, privilégios escandalosos, culminando pela incerteza jurídica (nem o passado é certo), o que inibe o investimento interno e externo, essenciais ao desenvolvimento da sociedade.
Resta a pergunta final: por que tantos insistem em manter a desordem nos seus sistemas, sejam eles pessoais, familiares profissionais ou institucionais? A conta a pagar é certa!
[1] Roundabout em inglês, ferramenta de trânsito sem sinais, cuja finalidade é aumentar a segurança e reduzir perda de tempo no tráfego.
[2] Impulsos de agir, de sair da zona de conforto e de aperfeiçoar, conhecido como anima mundi.
[3] Este impulso revelaria a essência do Ciclo PDCA de Deming? PDCA enfeixaria as iniciais das ações Planejar-Desenvolver-Checar (Verificar)-Agir (aprender e atuar corretivamente). Busca criar funcionalidade das coisas que o cercam.
[4] Na virada do Século XIX para o Século XX, o psicanalista Carl Gustav Jung defendeu a existência de oito padrões de comportamentos humanos. Um desses tipos, a que ele denominou “Pensamento”, que podem ser introvertidos ou extrovertidos, nutre o impulso de criar funcionalidade em todas as coisas presentes em sua realidade (PDCA?). Um outro tipo, denominado “Sentimento” (também introvertidos ou extrovertidos), nutre apelo para criar ou manter situações das quais emanam ordem, harmonia, beleza, estética etc. São atributos que nutrem mais o espírito do que o corpo, presentes em artistas, estetas, inventores, cientistas, músicos, arquitetos, construtores, urbanistas etc. São pessoas mais sensíveis à contemplação do que à produção. A ironia é que a mesma história a evidenciar inacreditáveis avanços tecnológicos, também aponta o dedo para o risco de destruição da raça humana.
[5] A qualidade lato sensu tem a sua confirmação filosófica em Immanuel Kant (Crítica da razão Pura), que estabeleceu um imperativo categórico: “Age sempre de tal modo que o teu comportamento possa vir a ser princípio de uma lei universal.”
[6] O ambiente considerado é definido pela NBR ISO 9000:2015 como “conjunto de elementos inter-relacionados ou interativos de uma organização para estabelecer políticas, objetivos e processos para alcançar esses objetivos”. Por simplicidade, é adequado aceitar os termos “sistema de gestão” como equivalente a “sistema de gestão da qualidade”, bem como a “sistema de gestão integrado”.
[7] A ciência comprova que, desde o Big Bang, existe uma marcha inexorável de perda de energia útil em todas as coisas. Energia útil é aquela capaz de produzir trabalho. A inexorável tendência à desordem, é associada a aumento da entropia, propriedade da natureza descrita pela Terceira Lei da Termodinâmica. Em resumo isto indica que tudo que teve um começo terá um fim.
[8] Mercado: “lugar teórico onde se processam a oferta e a procura de determinado produto ou serviço”.
[9] Arranjo dos seus elementos constituintes.
[10] Fato descrito no livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.
[11] A lógica dos computadores é fundamentada pela Álgebra Booleana, utilizada por Shannon nos seus estudos de circuitos elétricos. Shannon também estabeleceu as bases da criptografia. É considerado “pai” da Teoria da Informação.
[12] César Hidalgo: Why the information grows – Basic Groups – New York. Hidalgo é líder do Macro Connections, do MIT.
[13] São esses mecanismos: 1) Fluxo de energia em sistemas fora de equilíbrio, 2) Acumulação de energia em sólidos e 3) Habilidade da matéria computar.
[14] Supõe-se que a vida na Terra tenha sido gerada após resfriamento da crosta terrestre. No seio de um “caldo” de matérias orgânicas, com energia provinda do Sol ou diretamente de um raio, formaram-se moléculas cada vez mais complexas, até serem capazes de se replicarem. Assim, a informação (ou ordem) existentes nas moléculas poderiam ser preservadas, recombinadas e multiplicadas.
[15] As primeira redes de informação criadas pelo homem constitui-se na disseminação de fofocas.
[16] Sistema de gestão da qualidade, sistema de gestão ou sistema integrado de gestão são expressões de mesmo conteúdo semântico.
[17] Eficácia significa alcançar resultados planejados, impactos percebidos. Eficiência diz respeito aos recursos consumidos em determinada ação ou processo. Um bom sistema de gestão deve ter eficácia e eficiência, na extensão adequada.
[18] A informação é o conteúdo da mensagem, cujos elementos necessitam ter determinada ordem física que, por sua vez, determina o grau da qualidade no sistema considerado.
*Mauriti Maranhão é Acadêmico da Academia Brasileira da Qualidade