Recuperação do Brasil Pós COVID-19
Acadêmico Bernardo Felipe Estellita Lins. Carioca, morando em Brasília desde 1976. Trabalha há 25 anos como consultor legislativo, atuando em regulação de telecomunicações, setor mineral, energia e comunicação social. É graduado em engenharia civil, mestre e doutor em economia pela Universidade de Brasília.
Acompanhe a entrevista realizada, à distância, no inicio de julho e o compartilhamento de momentos importantes à sua formação em qualidade.
Como você percebe os impactos e consequências da COVID-19?
A COVID-19 é uma pandemia com características muito particulares. Sua letalidade é importante e o número de portadores assintomáticos é elevado, o que facilita a transmissão. É muito agressiva para certos grupos de pacientes, dependendo nesses casos de um acompanhamento oneroso para recuperação do enfermo. Não há, atualmente, número suficiente de leitos para receber essas pessoas se a epidemia se alastrar livremente. Pessoas que seriam salvas se tivessem acesso a um hospital equipado, morreriam por falta de recursos do sistema de saúde. Haveria um dilema ético de escolher os enfermos que seriam admitidos nos hospitais e nas unidades de terapia intensiva, deixando outros abandonados à sua sorte.
Por ser uma doença nova, ainda há poucas informações sobre seu desenvolvimento no organismo infectado. As pesquisas parecem indicar que uma vacina eficaz ou um protocolo de tratamento definitivo levarão ainda um ano para serem oferecidos, o que nos deixa por um tempo relativamente longo dependentes de medidas sanitárias que reduzam a contaminação da população, com o objetivo de permitir que os casos graves ocorram em um número que seja tratável no sistema de saúde. Essa tem sido a base das políticas de distanciamento social praticadas nos países que tiveram sucesso na contenção da epidemia.
O problema dessas políticas é de que estas precisam manter-se em vigor por um período muito prolongado, alcançando um platô na taxa de crescimento de infectados que seja compatível com a capacidade do sistema de saúde. Se a eficácia das medidas for de tal ordem que se logre eliminar a ocorrência de novos casos, haveria uma situação sob controle. Nos demais casos, a flexibilização das medidas acaba por elevar novamente disseminação da epidemia, gerando novas ondas de infecção e forçando ulterior retomada do isolamento social. Essa dinâmica vem sendo observada em vários Estados aqui no Brasil.
Enquanto perdurar esse ciclo de contenção, o custo social e econômico será devastador, o que vem sendo corroborado pelos números. É uma experiência dolorosa para a maior parte das pessoas.
O que fazer no curto prazo, afora as medidas já tomadas, para atenuar o impacto econômico, empresarial e social?
As medidas sanitárias e de auxílio pecuniário, embora de elevado custo para o Tesouro, vêm-se mostrando insuficientes no Brasil. Não foram capazes de promover uma contenção sustentada para a epidemia e não estão garantindo a sobrevivência de pessoas e empresas nesse longo caminho a ser enfrentado, até que se ofereçam condições de retorno a uma atividade social sem restrições.
A situação de crise irá se prolongar, em minha avaliação, por mais um ano. Até o momento, apesar das notícias dolorosas de mortes e de sofrimento angustiante de dezenas de milhares de brasileiros, a doença infectou, provavelmente, entre 2% e 5% da população do país. Desse modo, há condições para que a velocidade de propagação ainda se mantenha até que a produção ou aquisição de uma vacina em escala apropriada a uma campanha nacional de imunização possa ser empreendida. As medidas terão que ser mantidas ao longo desse período.
Os desembolsos, em especial a ajuda individual de R$ 600,00 terão de ser estendidos, nesses ou em outros valores, a um custo que poderá chegar aos R$ 300 bilhões em um ano. É um número impressionante. Representa um ânimo para as pessoas beneficiadas, mas é insuficiente para repor uma queda que pode ultrapassar os 10% do PIB nos próximos doze meses. As iniciativas de oferecer financiamento às empresas vêm-se frustrando porque os agentes financeiros têm de conviver com o risco de inadimplência e as garantias públicas são insuficientes. As contrapartidas exigidas ao empresário também são incompatíveis com o momento.
Em vista do ônus para o erário, haverá dificuldades crescentes para manter os auxílios. É preciso conceber outras medidas que possam perdurar por um ano ou mais, dentro de um ambiente de distanciamento social.
As medidas tomadas até o momento (inclusive outras, como restrições a cobrança de débitos, limitação a ações de despejo, distribuição de alimentos ou revisão de normas de funcionamento de serviços públicos; o Centro de Coordenação de Operações em Combate ao Coronavírus – COOP, da Casa Civil, mantém uma relação das principais iniciativas) respondem a uma pergunta: como dar condições mínimas para que pessoas e empresas permaneçam inoperantes, mas possam sobreviver, evitando-se uma convulsão social. São decisões indispensáveis, mas foram escolhidas sem que haja um planejamento estruturado para uma longa transição até a normalidade ou para a recuperação da economia. A alternativa adotada pelas autoridades locais a partir de maio de 2020 tem sido o afrouxamento das medidas de contenção, ao preço de novos avanços da epidemia.
É difícil dar sugestões nesse ambiente. Trata-se de uma situação inédita para a nossa geração e para os mais jovens, em especial pelo prolongado período de contenção que estamos enfrentando. Há equipes estudando abordagens possíveis, mas, até agora, não se logrou chegar a um plano organizado a ser oferecido à sociedade. Alguns elementos vêm surgindo aos poucos. Um destes é viabilizar o trabalho e o estudo remoto em suas várias modalidades, apesar das dificuldades que a população vem passando, de modo a preservar o capital humano. Outro elemento é elevar o grau de automação de atividades que continuam a operar. Um terceiro é simplificar a burocracia e os controles praticados. Também se busca um ganho de produtividade nos serviços de infraestrutura. O governo federal tem apostado arriscadamente na rápida retomada das atividades após o fim da contenção e na eficácia das reformas administrativa e tributária para apoiar essa retomada. No entanto, um redesenho dessas reformas não foi, até agora, oferecido.
Há perguntas centrais a responder. A primeira é: como preservar (e quem sabe melhorar) o capital físico e o capital humano para estarem prontos para a retomada. A segunda: como dar liberdade decisória e reduzir os custos administrativos das empresas, para ajudá-las na retomada. Uma terceira: como dar eficiência ao setor público, para a proteção patrimonial e os suportes regulatórios indispensáveis a um ambiente empresarial saudável na retomada.
É um erro pensar que as iniciativas do governo devam ser apenas de mudanças na legislação vigente. Está sendo promovida uma orgia legislativa, com a edição de dezenas de medidas provisórias a cada mês, muitas delas sobre temas sem importância para o enfrentamento da crise. Esse ativismo disfarça a incapacidade na coordenação de um esforço nacional para levar adiante a transição e preparar a retomada. Os ministérios voltados ao setor produtivo têm conduzido iniciativas setoriais em apoio ao mercado. A gestão política, porém, é desorganizada e está contaminada por uma agenda eleitoral encarada como permanente.
Como a qualidade e a gestão podem ajudar para saída da crise?
As empresas estão enfrentando um desafio inédito. O quadro varia muito de um setor para outro (há desde setores bem preservados, como o agronegócio e a mineração, até outros completamente inoperantes, como turismo e hospitalidade) mas a questão central é: como sobreviver na transição até a plena retomada das atividades.
Sobrevivência e retomada são duas realidades inteiramente distintas. Para os setores mais afetados, o capital e a expertise acumulados para a operação normal são, em muitos casos, um peso a carregar no período de contenção. Sua preservação impõe custos elevados e o descarte é inviável ou é conseguido a preços aviltados. Não é fácil identificar algum uso alternativo para obter uma receita de subsistência ou, pelo menos, um ganho de imagem para a marca durante o período de contenção. Isso vale tanto para o navio de uma operadora de cruzeiros de grande porte quanto para o ponto de venda de um pequeno restaurante de bairro.
O governo federal vem oferecendo mecanismos pouco eficazes de apoio (com algumas exceções para setores cujo lobby é bem alinhavado), de modo que o empresário tem, em grande medida, que contar apenas com o ambiente privado para dotar-se de condições de sobrevivência. No financiamento dos seus custos, por exemplo, operações de microcrédito, de fintechs e de fundos privados de auxílio, ainda que de alcance limitado, têm sido mais eficazes do que as linhas de crédito promovidas pelo governo.
Uma abordagem estruturada para estudar sua situação ajudará o tomador de decisões a escolher um caminho apropriado baseado em dados objetivos. Mesmo um instrumental simples para a análise dessa situação, se bem aplicado, permite identificar alternativas de mercado, ajustar os custos da operação e definir os objetivos do negócio no curto prazo (contenção) e no médio prazo (retomada).
Várias entidades, a exemplo do Sebrae, dispõem de consultores para apoiar as pequenas empresas nessa análise estratégica do negócio de modo eficaz e enxuto. Estudos desse tipo apontam as alternativas disponíveis ao empreendedor: mudanças no processo produtivo, busca de novos nichos de mercado, adoção de trabalho remoto, comércio eletrônico, desenvolvimento de novas parcerias, realinhamento de ações de marketing ou até, infelizmente, a suspensão de atividades. As escolhas dependem do setor em que a empresa atua, tanto pela existência, ou não, de demanda a ser atendida quanto pela estrutura de custos da empresa.
Mesmo para quem se mantiver na mesma atividade, a COVID-19 impõe mudanças no processo produtivo e este terá que ser redesenhado em parte. O acesso a locais, máquinas e instrumentos é fator de contaminação e medidas preventivas devem ser adotadas. O design de EPI deve ser estudado para garantir proteção, a par de evitar interferência ou falha na execução de procedimentos. A entrada de pessoas contaminadas no ambiente da empresa é uma possibilidade real, em vista da precariedade de transporte público e moradia da maior parte da população e do número de portadores assintomáticos. Pode ser importante que orientações e apoio se estendam à família e à comunidade dos profissionais da empresa.
Estamos desenvolvendo, entre os acadêmicos residentes em Brasília, um exame das características do período de transição e das perspectivas de um “novo normal”, para compreender quais as perguntas certas a serem respondidas por iniciativas de governo e quais os indicadores a escolher para se ter um painel de controle da ação pública. A iniciativa não é inédita, mas acreditamos que uma avaliação independente deva ser elaborada.
Sempre dizemos que o Brasil é o país do futuro: Isso pode acontecer algum dia? Quando? Como será possível?
Responder se o Brasil é o país do futuro ou se já alcançou seu limite seria um exercício de retórica. O que pode ser dito é que, em termos agregados, já estamos enfrentando, nos últimos anos, problemas de produtividade e de uso inadequado de bens públicos que tendem a se agravar cada vez mais. Esses problemas irão corroer, no longo prazo, as possibilidades de uma inserção competitiva do Brasil no comércio internacional e de atendimento às necessidades da população e aos interesses de empreendedores.
As perguntas certas devem ser direcionadas à identificação das causas desses problemas e de procedimentos para superá-las a um custo político tolerável. Políticas públicas, de fato, devem balancear objetivos de longo prazo com o respeito a interesses estabelecidos. Aqueles que investem no pais precisam ter garantias de estabilidade regulatória e de taxa de retorno compatíveis com o risco assumido. Por outro lado, as perspectivas das gerações futuras precisam ser construídas. Temas hoje execrados, como acesso a educação pública de qualidade, proteção ao meio ambiente, accountability das decisões econômicas e garantia da igualdade de oportunidades terão que ser, inevitavelmente, retomados com vigor nessa perspectiva.
O atual exercício de desconstrução do papel do Estado irá se revelar desastroso. O empreendedor gosta, evidentemente, de não ter amarras para suas escolhas de curto prazo. No entanto, essas amarras são indispensáveis para induzir decisões que alinhem os ganhos do empreendimento com as regras do jogo das boas práticas de mercado e com valores sociais a serem respeitados. Há um espaço importante para a desburocratização e, no longo prazo, para a redução de tributos no Brasil, mesmo no contexto de combate à COVID-19. No entanto, é preciso resistir a ações de governo que conduzam à anarquia regulatória ou à crueldade social. Seu custo é enorme. Os formadores de opinião e os tomadores de decisões, infelizmente, estão virando o rosto e fechando os olhos diante desses erros.
Que conselhos você daria a um jovem que está trabalhando e passa a viver esta situação de crise?
Para a maior parte dos profissionais, inclusive os jovens, trata-se de um momento doloroso. O posto de trabalho está em risco ou foi fechado. As expectativas e os sonhos foram, na melhor das hipóteses, adiados por um ou dois anos. Em alguns casos, foram inteiramente destruídos.
Em geral, conselhos dados nesses momentos costumam ser fúteis. O que se pode fazer é compartilhar perspectivas. Aos dezenove anos de idade eu vivia em um clima de recessão econômica, ainda que muito mais amena. Duas decisões pessoais funcionaram naquele momento. A primeira foi a de não me prender à formação que havia escolhido. Cursando engenharia civil, minhas perspectivas eram ruins, pois o setor da construção estava entrando em crise. Fui me dedicar à computação, um mercado já então em crescimento e uma atividade prazerosa, para a qual tinha um pendor natural. A segunda decisão foi a de refletir acerca de quais eram meus talentos e de construir um caminho de longo prazo. Ano a ano, desde então, mantive um planejamento estratégico pessoal sistemático. Esse caminho me levou à teoria econômica e à organização industrial.
Às vezes o destino nos coloca oportunidades e precisamos vê-las. Meu primeiro contato com a qualidade teve esse sabor. Trabalhava, à época, em uma indústria fabricante de computadores e um amigo meu, engenheiro de software, foi deslocado para a gerência da linha de montagem dos equipamentos. Conversando com ele, perguntei como estava enfrentando os desafios da nova função. Ele sorriu e me disse que tinha um segredo, um livro de cabeceira. Abriu uma gaveta e puxou um tijolão de papel. Era a terceira edição do Juran’s Quality Control Handbook, a bíblia da gestão da qualidade daquela época. Folheando distraidamente o livro tive meu primeiro contato com a disciplina que conduziria minha vida pelos quinze anos seguintes. Foi meu instante de iluminação e meu mérito foi compreender isso.
Não são conselhos, são narrativas. Posso afirmar, apenas, que essas atitudes funcionaram para mim.
Muito obrigado pela entrevista e compartilhar suas experiências de caráter pessoal.