Prezados acadêmicos, reproduzimos aqui o artigo que foi publicado recentemente no informativo da embaixada brasileira em Londres sobre as potencialidades do agronegócio do Brasil de autoria do nosso colega Roberto Rodrigues.
Por Roberto Rodrigues
Esta gigantesca e inesperada tragédia do Covid-19 que se abateu sobre todo o planeta, ceifando vidas sem escolher, mergulhando a humanidade inteira em um caos social sem precedentes e ao mesmo tempo destruindo a economia nos mais diferentes quadrantes, também ratificou uma informação que já estava evidente desde o começo deste século: o grande desafio dos novos tempos será compatibilizar a oferta de alimentos de qualidade e produzidos sustentavelmente a uma população crescente, com a preservação dos recursos naturais. Em outras palavras, segurança alimentar.
Aliás, há pouco menos de 20 anos, a própria ONU já se debruçara sobre este tema, ao especular que no ano 2050 seremos mais de 9,6 bilhões de terráqueos e, para alimentá-los seria necessário aumentar a produção global de alimentos em cerca de 60%. Essa previsão da ONU está ligada ao seu papel precípuo, que é garantir a paz universal, compreendendo que não haverá paz enquanto houver fome. Portanto, segurança alimentar seria condição basilar para acabar com a beligerância de toda gente.
Por outro lado, uma previsão como essa, olhando 50 anos à frente, não deixa de ser um risco. Com a quantidade de inovações tecnológicas profundas e abrangentes que a ciência vem trazendo o tempo todo, e muito rapidamente, fica difícil confiar em estimativas para mais de 10 anos no futuro: as mudanças podem ser tão radicais que os números devem também ser muito alterados.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), respeitável think tank multilateral, passou a se preocupar com o mesmo tema, e há mais ou menos uma década lançou um estudo que vem sendo atualizado sistematicamente, e que aponta para o seguinte: em 10 anos, a oferta mundial de alimentos precisa subir 20% para ninguém passar fome. Mas, para isso acontecer, a produção brasileira terá que crescer o dobro no período, isto é, deve aumentar 40%. Mais recentemente, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos – United States Department of Agriculture (USDA) realizou trabalho que chegou a números similares aos da OCDE, reconhecendo que nenhuma outra região do globo tem as condições para contribuir, como o Brasil, com a erradicação da fome. As razões para essa expectativa são muitas, mas há três principais: nossa tecnologia tropical sustentável, a disponibilidade de terras, e a qualidade dos recursos humanos que temos em todos os elos das cadeias produtivas do agro.
De fato, os números comprovam essas informações. Do Plano Collor (15 de março de 1990) até hoje, a área plantada com grãos no Brasil cresceu 72%, enquanto a produção cresceu quase cinco vezes mais, 335%, resultado da tecnologia gerada em nossos órgãos de pesquisa e incorporados pelos produtores rurais. Se estes números já são extraordinários, por trás deles há outro ainda mais espetacular: se tivéssemos hoje a mesma produtividade por hectare de 1990, para colher a safra de grãos de 2020 (que diga-se de passagem, é recorde) seria necessário cultivar, além dos 65 milhões de hectares hoje utilizados, mais 100 milhões. Em outras palavras, essa área gigantesca foi poupada de desmatamento. Tais cifras mostram a sustentabilidade de nossa produção rural, que não é nem uma promessa e nem um sonho: já foi feita e está consagrada. E não é exclusividade dos grãos. No mesmo período, a produção de suínos aumentou 296% e a de frangos outros 491%. Mesmo a produção de carne bovina, cujo ciclo é bem mais longo, também, cresceu 111%.
E foi assim com as demais culturas importantes, como a cana de açúcar, o café, a laranja e demais frutíferas, o leite, as hortifrutigranjeiras, as castanhas, etc. E a produção sustentável continua com novas técnicas que vão surgindo o tempo todo. O Plano ABC, de agricultura de baixo carbono, é um exemplo disso. Constituído de 6 diferentes programas, como Recuperação de Pastagens Degradadas, Fixação Biológica do Nitrogênio ao Solo, Florestamento, Utilização de Resíduos para Produção de Eletricidade, Agroenergia, o Plano tem na Integração Lavoura/Pecuária/Floresta seu carro chefe. Um verdadeiro ovo de Colombo, esse programa permite que nas áreas agrícolas, em que não chove no inverno, seja feita uma cultura de verão de grãos (soja, milho, algodão, amendoim, sorgo ou qualquer outra) e, quando ela estiver terminando o seu ciclo, sejam semeadas pastagens, de modo que, após a colheita, a mesma área possa receber grande volume de gado bovino para engorda. Com isso, os produtores dessas regiões mais secas se equiparam aos de áreas chuvosas que fazem duas ou mais culturas anuais.
Também a agroenergia, nascida com o Proálcool nos anos 70 como resposta aos saltos nos preços do petróleo, é um modelo de sustentabilidade: as emissões de CO2 do etanol de cana representam apenas 11% das emissões da gasolina. Como toda gasolina aqui consumida tem 27% de mistura de etanol, e como temos os carros híbridos movidos a etanol puro, tem sido reduzida a poluição nas grandes cidades e as consequentes doenças respiratórias. O biodiesel vai na mesma direção. E a eletricidade gerada pela queima em caldeiras do bagaço da cana para acionar as usinas de açúcar e álcool também entra na rede de distribuição a custo muito baixo. Estamos plantando florestas artificiais para produção de celulose, papel, indústria moveleira e carvão: já são mais de 7,5 milhões de hectares com eucaliptos e pinus. E permanentemente a pesquisa vai gerando inovações que fazem nosso campo produzir de forma sustentável.
Outra questão levantada pela OCDE e pelo USDA para justificar o potencial que o Brasil tem de aumentar sua produção de alimentos em 40% em 10 anos é a disponibilidade de terras. Dos 850 milhões de hectares do País, somente 9% são utilizados com todas as plantações agrícolas, desde a alface até o eucalipto, passando por grãos, frutas, café, cana, algodão etc. E mais 21% do território estão com pastagens. Assim, todas as fazendas brasileiras ocupam menos de um terço do território, o que abre uma possibilidade muito grande de ampliação da área agricultada. Embora tenhamos uma enorme área destinada a índios (11% do território), existam reservas florestais gigantescas, parques nacionais, áreas para quilombolas e tenhamos a legislação florestal mais rigorosa do mundo, inibindo o desmatamento, será possível acrescentar à área atual mais 15 milhões de hectares nos próximos 10 anos, dos quais dois terços virão da conversão de pastos em agricultura, e um terço de desmatamento legal nos cerrados. Somando essa área nova ao aumento de produtividade das atuais, sem dúvida o Brasil poderá de fato aumentar sua oferta de alimentos em 40% em dez anos, contribuindo de forma positiva para reduzir a fome no mundo.
E o que já vem fazendo mostra que isso é possível. No ano 2000, o agronegócio brasileiro exportou 20,6 bilhões de dólares. No ano passado, este valor foi de 96,8 bilhões. Este avanço faz do setor o grande responsável pelo saldo comercial na balança comercial, de maneira sistemática, crescendo ano após ano. Em 2019, o saldo comercial brasileiro foi de 46,7 bilhões de dólares, mas o do agronegócio foi bem maior, de 83 bilhões. Há nesses números uma interessante revelação: em 2000, 18,3% das exportações foram para Estados Unidos e União Europeia, mas no ano passado isso caiu para 7,4%. Claro que essa queda foi apenas relativa, uma vez que as exportações para aqueles países também cresceram em número absoluto. Mas cresceram muito mais para os países emergentes, notadamente os asiáticos. A China, por exemplo, que em 2000 havia comprado 2,7% de tudo o que o agro exportou, em 2019 aumentou sua participação para 32%.
Com esses resultados, o Brasil está em primeiro lugar no comércio mundial de soja, de carne de aves e bovina, de café em grão, de açúcar, suco de laranja. Segundo em milho e crescendo em carne suína, algodão, flores e orgânicos. Mas pode crescer muito mais em pescados, lácteos e frutas, entre outros produtos, inclusive porque novos hábitos alimentares que já vinham ganhado dimensão importante nos últimos tempos, poderão crescer muito mais rapidamente quando a epidemia do Covid-19 tiver passado.
Mas terá que resolver alguns problemas recorrentes para atingir seu objetivo de aumentar em 40% as exportações de alimentos em 10 anos. Entre os principais estão:
• Investir em logística e infraestrutura: a partir dos anos 70 do século passado, a agricultura deixou de ser costeira e caminhou para a grande fronteira do centro-oeste, mas as ferrovias, rodovias, armazéns e portos não acompanharam esse projeto. Agora é necessário fazer grandes investimentos nesse segmento, o que deverá ocorrer com parcerias público-privadas, inclusive com recursos externos.
• Política comercial: o acordo bilateral entre União Europeia e Mercosul é o grande objetivo para ampliar as exportações do agro brasileiro. Mas a China hoje é o nosso maior importador, e deve ser muito bem considerado pelo mercado consumidor potencial que representa, assim como outros países asiáticos, do Oriente Médio, da América do Norte e a Latina. Acordos devem ser estimulados com o mundo todo porque o Brasil é um grande produtor rural e não pode privilegiar nenhuma região.
• Política de renda: deve ser ampliada a área de ação do seguro agrícola, acoplado a um moderno sistema de crédito rural e garantia de preços mínimos, em um conjunto de políticas públicas que garanta a estabilidade da atividade no campo, única forma de sustentar a segurança alimentar das populações urbanas.
• Inovação tecnológica: embora já tenhamos uma tecnologia tropical com resultados muito positivos, esse é um processo dinâmico que carece de uma estratégia de longo prazo e recursos financeiros suficientes.
• Defesa sanitária: o coronavírus é a prova mais recente de que a régua da preocupação com a sanidade humana, animal e vegetal deve subir, e não apenas no nível nacional, mas também mundial.
• Modernização legislativa: são necessárias reformas profundas em legislações obsoletas, o que já vem ocorrendo lentamente, tendo em vista a desburocratização e agilização da máquina pública. E mais do que modernizar as leis, é fundamental que o Estado esteja equipado para que tenha capacidade de fazê-las cumprir, de modo a eliminar, por exemplo, o desmatamento ilegal na Amazônia e em outros biomas nacionais, a coibir queimadas criminosas, a punir exemplarmente invasões de terras, seja por garimpeiros, seja por madeireiros, seja por qualquer agente que opere às margens da lei. São problemas que existem e precisam ser resolvidos.
Com uma estratégia calcada nesses pontos e elaborada em conjunto com o setor privado, com apoio ao cooperativismo e ao associativismo, o Brasil terá amplas condições de ser o grande campeão mundial da segurança alimentar. E, por conseguinte, o grande campeão mundial da paz, pois não haverá paz enquanto houver fome.
Roberto Rodrigues é acadêmico da Academia Brasileira da Qualidade – ABQ. Foi Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no período 2003 a 2006.