As provas de mar do S Humaitá e o acidente com o San Juan

S Humaitá chega ao Brasil após atravessar o Atlântico em profundidade periscópica, como primeiro navio da MB a utilizar navegação por satélite

B. V. Dagnino*

 

Acima, foto do S Humaitá chega ao Brasil após atravessar o Atlântico em profundidade periscópica, como primeiro navio da MB a utilizar navegação por satélite

 

1972: o S Humaitá é tomado repentinamente por densa fumaça que reduz a visibilidade a bordo e provoca ânsias de sufocamento. O navio está em provas de mar ainda sob a responsabilidade do estaleiro Vickers, navegando em cota periscópica em loch na Escócia, onde o navio frequentemente fazia provas e exercícios (ou seria no denominado Mar da Irlanda, entre a Isle of Man e Barrow-in-Furness? o tempo permite a dúvida). O Autor dessas linhas, como único não submarinista a bordo se assusta, mas constata que “os que são marinheiros até debaixo d’água” (usque subacqua nauta sum é o lema da Força de Submarinos) também ficam preocupados. Os motores são parados, e o submarino vem à superfície.

Passados alguns longos minutos o chefe da prova de mar do estaleiro decide: como o ar aspirado pelos motores provém do interior do navio (aprendi mais uma), a única forma de aspirar o ar contaminado é dar partida aos motores, o que é feito e funciona. Depois vem a provável explicação do incidente: a admissão e descarga de ar é feita por tubos concêntricos do snorkel;  o que aconteceu provavelmente foi mau funcionamento de válvula de retenção, o que fez com que a descarga dos motores fosse aspirada pelo tubo de admissão.  O acidente não teve maiores consequências, mas poderia ter tido.

Denise e Danilo Dagnino levam coleguinhas da escola primária em Barrow-in-Furness para visitarem o Submarino Humaitá (classe Oberon) atracado no cais do estaleiro Vickers

 

Fiz essa introdução antes de passar a pesquisar, com o uso de ferramentas elementares de gestão, apenas com base em notícias de jornais como El Clarín, La Prensa e La Nación, e da Gaceta Marinera da Armada Republica Argentina – ARA, os acontecimentos relacionados ao acidente com o San Juan. É um exercício de analista de informações que vou cometer sem estar para tal qualificado, pois são tantos desmentidos e notícias incompletas publicadas pela Imprensa que se trata de tarefa de extrema complexidade, e sujeita a erros crassos.Eis algumas das informações tornadas públicas:

– o San Juan passou por recente overhaul para prolongar sua vida útil; as últimas notícias põem em dúvida a competência do estaleiro Tandanor para executar tarefa tão complexa e de tal envergadura; familiar de tripulante reportou problema após sua execução sobre a dificuldade de o navio vir à superfície (comentou até que na ocasião os tripulantes chegaram a se despedir, mas essa assertiva se me afigura mais emocional do que factual);

– o comandante informou problema ligado a baterias durante a viagem, por embarque de água, mas depois comunicou que estava tudo sobre controle e prosseguiu viagem;

– pairam críticas à reação da ARA, lenta para acionar esquema de busca e salvamento, aceitar auxílio de outros países, comunicar o fato ao Ministério da Defesa – MD e logo ao Presidente Macri, além de diferenças internas; além disso, a decisão de concentrar as buscas na superfície, ao invés de considerar a hipótese de afundamento foi posta em dúvida;

– antes do recebimento de informação formal da Organização do Tratado de Proibição Completa dos Ensaios Nucleares (CTBTO), circulou notícia de que a Marinha dos EUA já havia detectado a explosão (inferência do Autor: o de longa data conhecido sistema de americano de vigilância submarina, o Sound Surveillance System (SOSUS), inicialmente concebido em 1950 e já à época cobrindo o Atlântico e o Pacífico com hidrofones no fundo dos oceanos para acompanhar as rotas de submarinos russo, foi progressivamente ampliado, constituindo-se atualmente do Integrated Undersea Surveillance System (IUSS), abrangendo os Fixed Surveillance System (FSS), Fixed Distributed System (FDS) e Advanced Deployable System (ADS) – v.  fas.org/irp/program/collect/iuss.htm. Com o desenvolvimento tecnológico, foi possível substituir as instalações subaquáticas por terrestres, evitando-se dessa forma perigos de ataque, ação dos elementos e interferência de ruídos oceânicos. Pode-se supor, pois, que a informação sobre a explosão de origem americana tenha partido do IUSS, que por razões de segurança não teve detalhes divulgados, especialmente a localização das instalações em terra.

Um tema puxa outro. Sobre testes e avaliações após grandes reparos, recordo-me do que soube a respeito do grande número de acidentes depois de manutenção de helicópteros operando na Bacia de Campos, no início de sua operação; o embarque dos responsáveis pela verificação dos sistemas de aviônica, mecânicos e hidráulicos no voo de teste após grandes revisões resolveu ou ao menos mitigou o problema.

A escala ou amplitude de serviços de grande vulto requer uma acurada verificação da sua perfeita execução, especialmente quando, como é o caso de aeronaves e submarinos, os aspectos de segurança são primordiais. Uma extensa bateria de testes e provas foi realizada depois desse PGR – Período de Grandes Reparos do San Juan? Observa-se na figura que houve corte do casco resistente para troca dos motores principais, o que significa que posteriormente foi realizada complexa soldagem de chapa grossa (a soldagem é classificada como processo especial, isto é, de difícil avaliação da área soldada após sua execução, o que obriga à utilização de soldadores, materiais aditivos e processos certificados; a NUCLEP teve o primoroso trabalho de soldagem executado no vaso de pressão da Usina Nuclear argentina de Atucha divulgado em revista especializada de circulação internacional). Notar que anteriormente um submarino argentino sofreu grandes reparos no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ), que possui larga experiência no reparo de submarinos.

Extensão dos reparos executados pelo estaleiro Tandanor no S ARA San Juan

 

Sobre o prosseguimento da viagem, teria sido uma decisão temerária do comandante prosseguir como planejado após o incidente reportado sobre as baterias? Não teria sido mais prudente executar um 9 Guina – será que esse sinal ainda existe? (passar do rumo Norte para Oeste aproximadamente) e rumar para o litoral? Será que a gestão de risco foi aplicada adequadamente? Por muito menos, vi que quando a Corveta Ipiranga passou a roçar o fundo na costa do Ceará, o comandante determinou imediatamente afastamento com rumo perpendicular à costa.

Teria sido mais sensato para a ARA e o MD considerar imediatamente após a informação de origem americana a hipótese mais desfavorável e partir para a busca na superfície e no fundo do mar, aceitando de pronto o oferecimento de outros países, notadamente dos EUA com sua sofisticada estrutura para salvamento, secundada pela chegada posterior de sofisticado equipamento russo? Não teria sido essa uma decisão mais acertada, considerando especialmente o limite de sete dias da disponibilidade de oxigênio? O fato de a explosão ter sido detectada na franja da plataforma continental argentina, onde a profundidade varia entre 150 e 1.500 metros, aumentava a complexidade da operação de salvamento, tornando-a até impossível.

Mais relevante, notícia recentíssima, do dia 23/11, se soube que o fator tempo, sendo crucialíssimo, não seguiu positivamente o princípio do senso de urgência de que nos fala Deming. A demora do uso da informação sobre a explosão que, antes da rede da CTBTO, já havia sido ventilada por fonte americana, é indesculpável, pois propiciaria (lamentavelmente, porém infelizmente necessário) uma resposta mais rápida e informar aos familiares dos 44 tripulantes da situação extremamente crítica do San Juan. Isso evitaria os justificados protestos de parte deles sobre as informações divulgadas pela ARA, consideradas protelatórias.

Sinais de explosão submarina captados e cruzamento de marcações das estações da rede da CTBTO

 

Quanto às buscas, a concentração de meios navais e aéreos de diversos países, mesmo que a profundidade onde se encontra o submarino seja elevada, da sofisticação dos meios sendo empregados resulta uma alta probabilidade de sucesso. Cumpre relembrar que tanto no caso do Titanic (decorreram 73 anos, entre 1912 e 1985) como no do voo AF447 (passaram-se dois anos, de 2009 a 2011) os destroços foram encontrados a quase 4.000 metros de profundidade.   Mesmo que o San Juan esteja pousado no fundo a 1.500 metros, fora da plataforma continental argentina, veículos autônomos equipados com sonares, detectores magnéticos etc. teriam condições de localizá-lo.

Lista incompleta dos meios usados na busca do Submarno ARA San Juan, inclusive do Brasil

 

Conclusão: sob o ponto de vista da gestão, poder-se-ia considerar os seguintes aspectos, ressaltando-se as questões mais criticas:

– Governança e planejamento: foram reportadas diferenças pessoais no seio da ARA e do MD argentino, gerando incompreensões e consequente falta de entrosamento que garantisse um perfeito fluxo de informações e dessa forma propiciasse um planejamento com base em estratégias claras para fazer face à emergência;

– Informação e análise: tanto de parte do comandante do submarino como das autoridades navais a gravidade do problema não foi percebia com a devida rapidez, sendo o risco subestimado; tanto os princípios da gestão de risco com a temerária continuação da derrota nos limites ou fora da plataforma continental, como os da gestão do conhecimento, notadamente de possíveis problemas com o navio após o PGR (a serem verdadeiros) e durante a longa viagem não foram considerados;

– extremo cuidado na qualificação de fornecedores com tal responsabilidade, no caso o estaleiro contratado para executar o PGR, e requisitos contratuais sobre os testes e inspeções em terra e no mar para aprovação do navio para passar da Fase 1 para a Fase 2 do ciclo de adestramento (ainda existem?)

– gestão financeira: as restrições orçamentárias teriam chegado a tal ponto de prejudicar a segurança? Elas justificariam um plano de operações mais conservador? Até que ponto o default  da dívida argentina, que impediu a execução do serviço na Alemanha, logo se reconhecia sua complexidade, influenciou o desastre?;

– nível de capacitação e adestramento da tripulação, em particular para responder a situações de emergência, do comandante, dos demais oficiais e das praças (interessante notar a presença de uma mulher na tripulação, o que já ocorre em outras Marinhas: no I Congresso Internacional de Contramedidas de Minagem promovido pela Marinha do Brasil um dos palestrantes foi uma mulher, capitão-de-fragata, comandante de esquadrão de caça-minas da Marinha Sueca.

Teniente Eliana Krawczyk, unica tripulante mulher do S ARA San Juan, e única submarinista das Marinhas sulamericanas

 

Por outro lado, os jornais argentinos publicam continuamente matérias relacionadas aos antecedentes da tragédia, além da  entrada de processo na Justiça contra a Marinha Argentina:

– Una auditoría detectó irregularidades en la compra de las baterías del submarino (La Nación, 26/11);

–  La Justicia archivó una denuncia por irregularidades en la reparación – Un suboficial había denunciado manejos espurios en el astillero Domecq García de la Marina (idem);

– Sospecha en la Armada – Un informe de Defensa habla de irregularidades en la reparación de media vida (Clarín, 26/11);

Haveria muitos outros pontos a levantar, mas lamentando a perda do San Juan e especialmente das 44 vidas humanas, resta tirar lições para o futuro. Para evitar que fato de tal gravidade se repita, é necessária a adoção do que se chamava ações preventivas, e hoje em dia se considera, num enfoque muito mais abrangente, gestão de risco.

 

 

*Capitão-de-Fragata (Ref.) e Diretor Presidente da Academia Brasileira da Qualidade – ABQ

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

Siga-nos nas Redes Sociais

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados