Considerações sobre a Teologia da Prosperidade

Por: Vivaldo Antonio Fernandes Russo

 

Considerações iniciais

O Brasil enfrenta muitos desafios para tornar-se um país desenvolvido. Alguns desses desafios são tratados em RUSSO (2023a), RUSSO (2023b) e RUSSO & BRESCIANI (2024). O país passou de uma economia basicamente agrícola para industrializada em meados do século passado. Naquela época, o ideal era implantar o processo produtivo rígido denominado fordismo industrial que exigia acúmulo de capital para aquisição de equipamentos de manufatura de bens materiais padronizados e em grande escala, além da contratação de mão de obra não muito qualificada sob forte estrutura hierárquica. Mas, esse modelo de desenvolvimento em direção a alta renda se esgotou.

De acordo com Rodrik (2024) tanto a automação como a concorrência global fizeram os empregos nas empresas transformadoras desaparecerem e isso exige um modelo de desenvolvimento inteiramente novo. Mas, segundo Prado (2024), no Brasil de hoje não há plano ou projeto e, nem tão pouco, objetivos econômicos a serem perseguidos nesta direção.

O escritor francês Alexis de Tocqueville descreve em sua seminal obra A Democracia na América seu interesse de entender a razão pela qual, no início do século XIX, os Estados Unidos evoluíam para uma democracia pacífica, progressista e competitiva. Lamounier (2024a) comenta que a chave da interpretação de Tocqueville foi denominada por ele arte da associação, isto é, a arte de confiar nos outros e com eles colaborar diante de um objetivo comum como, por exemplo, o desejo das 13 colônias de gerir seus próprios negócios sem a interferência da Inglaterra. O autor chama a atenção que os brasileiros também usam a arte da associação tais como organizar uma caravana para ir ao Rio de Janeiro assistir ao Rock in Rio. Entretando, nossos eventos associativos carecem de referências à vida pública – bem comum, na visão de Aristóteles. E conclui afirmando que, embora a chamada armadilha do baixo crescimento [também conhecida como armadilha da renda média] leve provavelmente o Brasil a uma séria crise dentro de duas ou três décadas, o governo insiste em crescer somente com recursos públicos e com uma economia fechada, abominando o mercado. E em outro artigo Lamounier (2024b) completa que é preciso que nossas elites – camadas médias e altas – pratiquem a arte da associação se agrupando horizontalmente com o objetivo de pressionar de fora para dentro os Poderes exigindo deles as reformas e comportamentos de que o Brasil precisa com urgência.

Entretanto, contrariando Lamounier (2024b), há uma porção significativa dos pobres no Brasil que luta contra um inimigo comum, a pobreza. Trata-se, de acordo com Ming (2024), de um movimento relativamente novo de grande impacto econômico e político no país chamado Teologia da Prosperidade. Sua versão brasileira vem sendo seguida pelas igrejas evangélicas e tem como origem os conceitos do sociólogo alemão Max Weber publicados em seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

O objetivo desse relatório é trazer algumas considerações sobre esse movimento e suas consequências atuais e, provavelmente, futuras para o Brasil. Mas convém inicialmente esclarecer alguns conceitos básicos utilizados.

Movimentos religiosos da teologia da prosperidade no Brasil

Protestantismo no Brasil: De acordo com Spyer (2020) o protestantismo nasce durante o século XVI com a Reforma Protestante segmentada no Luteranismo dando origem a Igreja Luterana, o Calvinismo dando origem a Igreja Presbiteriana e o Anglicanismo dando origem a Igreja Anglicana e, posteriormente, já no século XVII, a Igreja Batista. O protestantismo histórico no Brasil chegou no século XIX por meio de diferentes igrejas. Já no século XX, entre 1910 e 1970 surgem novas igrejas no Brasil da fase conhecida como Pentecostalismo. Segundo o autor a partir de 1970 inicia o surgimento no país das igrejas representativas do Neopentecostalismo.

Neopentecostalismo no Brasil: “O neopentecostalismo aparece nos Estados Unidos em meados do século XX e chega pouco depois ao Brasil. Sua principal organização aqui é a Igreja Universal do Reino de Deus. Tendo se desenvolvido a partir dos caminhos abertos pela referência moral e pelas práticas do pentecostalismo, esse movimento funde a ideia do culto exuberante, emocional e interativo com uma lógica meritocrática mais explícita e de busca do sucesso material. São eles que professam a chamada teologia da prosperidade, que gera desconforto fora e também dentro dos outros círculos evangélicos” (SPYER, 2020, p.65).

Spyer (2020, p.138) cita a seguinte explicação do antropólogo Ronaldo de Almeida: “enquanto o protestantismo histórico [de Lutero e Calvino] defende que o enriquecimento é fruto do trabalho, a teologia da prosperidade enfatiza a ideia de que é preciso empreender, tornar-se patrão”. Ainda conforme Spyer (2020, p.138), a teologia da prosperidade se popularizou por chegar ao Brasil em um momento histórico favorável, isto é, durante a recessão econômica do período entre 1980 e 1990.

É interessante lembrar que Peter Drucker, considerado o pai da administração, fez a seguinte análise da realidade desse período de 1980-1990: “Gorbachev na Rússia e Deng Xiaoping e seus sucessores na China talvez consigam manter o monopólio do poder de seus partidos, e talvez até consigam reativar a economia. Mas não conseguirão restaurar a crença na salvação pela sociedade, seja pelo comunismo ou de qualquer outro ismo. Isso acabou, e para sempre. A crença na salvação pela sociedade também desapareceu dos países não-comunistas. Ninguém – exceto talvez os teólogos da libertação na América do Sul – ainda acredita na eficácia de medidas sociais para a criação de uma sociedade perfeita, ou mesmo para fazê-la se aproximar desse ideal modificando o ser humano em sua essência até obter-se um novo Adão”. … O intenso refortalecimento da religião enquanto elemento da vida política americana, o ressurgimento das igrejas evangélicas e pastorais, é em certa medida uma reação diante do desaparecimento da fé secular na salvação pela sociedade” (DRUCKER, 1989, p.10 e 14).

Atualmente, relata Ming (2024), os evangélicos seguidores da teologia da prosperidade consideram a pobreza um atraso de vida que deve ser erradicado das pessoas e das famílias por meio do enriquecimento pessoal e o empreendedorismo entendidos como dádivas de Deus. A ajuda do Estado não é desprezada, mas eles não contam com isso para alcançar seus objetivos de se tornarem patrão de si mesmo. Como consequência, as pequenas e microempresas, principalmente de prestação de serviço, se multiplicam. O governo de esquerda tem dificuldades de interagir com este ramo da sociedade por insistir no diálogo antigo da luta de classes e da organização do proletariado contra a dominação burguesa com vistas ao socialismo.

O sucesso alcançado pelos novos protestantes é justificado por Spyer (2020) pela disciplina e um alto nível de controle como estratégia para ter acesso a bens sociais o que influencia o desempenho da pessoa no trabalho. Todavia, adverte o autor, é importante examinar com atenção o conceito de prosperidade aqui utilizado.

“Primeiro, a prosperidade é vista dentro de um plano de salvação do espírito que começa a partir da vida na Terra. Ter melhores condições socioeconômicas não é incompatível com a ideia de vida cristã, porque a segurança, a alimentação e o acesso à educação – na lógica do neopentecostalismo – ajudam a pessoa a ter uma vida cristã. A disciplina e o esforço para abraçar valores e ideais cristãos se fortalecem quando a pessoa está menos vulnerável socialmente, tem uma casa, está empregada, pode estudar e tem comida em casa. [Segundo], a teologia da prosperidade não se refere apenas à prosperidade financeira. A meta única não é ganhar dinheiro, mas viver melhor – em termos de saúde, vida familiar, afeto e também dinheiro. … Há o culto do sucesso, o culto da cura, o culto da salvação e o culto do amor” (SPYER, 2020, p.139).

São histórias que seguem mais ou menos este roteiro: “Estava largado da mulher, comecei a beber, não tinha onde cair morto, acabei dormindo debaixo da ponte, mas caí em mim, orei para o Senhor, recomecei e dei a volta por cima. Hoje tenho uma empresa com vários empregados, dois carros, estou ficando rico e vou ficar ainda mais…” (MING, 2024).

Desencontros com os movimentos políticos de esquerda

De acordo com Spyer 2020, o desencontro entre o evangélico neopentecostal e a esquerda inicia com o individualismo, por parte dos evangélicos, da relação direta e individual da pessoa com Deus para chegar à própria salvação que se manifesta no avanço do consumo, do empreendedorismo, da meritocracia, da competitividade e da busca da eficiência. A esquerda, por sua vez, tem entendimento diferente, isto é, a pobreza é uma questão estrutural, não individual e, portanto, propõe um projeto de salvação coletivista. Assim, as ações de combate à pobreza por parte da esquerda tendem a ser vistas como populistas, por distribuírem recursos para quem não quer trabalhar.

Nessa visão protestante, segue o autor, a pobreza é um problema individual assim como o crime. Portanto, é a pessoa que decide levar uma vida honesta ou optar por fazer errado e se deixar atrair pelas tentações da vida fácil do crime.

“A dificuldade na comunicação entre grupo progressistas e grupos evangélicos se aprofunda pelo desinteresse de políticos e partidos progressistas pelo fenômeno do cristianismo evangélico. A percepção que predomina é a do evangélico que vota conforme a determinação de suas igrejas – apesar de o instituto DataFolha ter registrado que apenas [um] em cada quatro fiéis faz isso” (SPYER, 2020, p.175-176).

Os desafios das pequenas e microempresas

Rodrik (2024) considera que a economia global atualmente se encontra num ponto de inflexão e enfrenta quatro grandes desafios: transição climática, bons empregos, desenvolvimento econômico e a necessidade de uma outra forma de globalização mais nova e mais saudável.

A questão climática vive uma falta de consenso entre os países gerando diferentes visões para enfrentá-la. Quanto aos empregos, as transferências sociais e o Estado Previdência ajudam, mas o que é mais necessário mesmo são bons empregos para trabalhadores menos qualificados que perderam acesso a eles. Conforme mencionado anteriormente, as empresas de manufatura aumentaram muito sua produtividade a ponto de afastar o indivíduo do processo produtivo. Assim, como nas economias desenvolvidas, os serviços serão a principal fonte de criação de emprego nos países de baixo e médio rendimento como o Brasil. Mas, a maioria dos serviços nessas economias é dominada por empresas informais muito pequenas e na maioria das vezes unipessoais. Todavia, não existem modelos prontos de desenvolvimento liderado por serviços que possam ser copiados. Por fim, continua Rodrik (2024), o modelo de hiper globalização pós 1990 tornou-se ultrapassado pelo aumento da concorrência entre Estados Unidos e China e pelos fatores acima descritos. Ele conclui que os economistas precisarão estar abertos à experimentação.

Adicionalmente aos pontos acima enfatizados, países de renda baixa e média, trazem outras dificuldades que levam empresas evitar de crescer e se manter informais. Segundo Mendes (2014) elas são: a) burocracia excessiva e alto custo para registrar uma firma; b) baixo nível de renda da população que faz o mercado demandar por produtos de baixa qualidade; c) regulamentação de mercado complexa que, pelo seu alto custo, estimula a informalidade; d) tributação excessiva provoca a sonegação que se torna mais facilitada pelo pequeno porte da organização que a mantem menos visível ao fisco.

Estatística das empresas ativas do Brasil

De acordo com o Mapa de Empresas (2024) ao final do 1º quadrimestre de 2024 o Brasil tem 21 738 420 empresas ativas das quais 93,6% são microempresas ou de pequeno porte. Os principais setores do total de empresas são: serviço (51,5%), comércio (30,3%), indústria de transformação (8,8%), construção civil (8,0%), agropecuária (0,8%) e extrativa mineral (0,1%). Outro dado interessante é que desse total das empresas ativas 14 563 948 são empresas de empresário individual incluindo microempreendedor individual – MEI[1].

O jornal Valor Econômico de 26 de setembro de 2024 revela dados de pesquisa sobre o perfil do empreendedor brasileiro realizada em 2023 pelo Sebrae[2] em parceria com a Associação Nacional de Estudos em Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas (Anegepe) dentro do programa Global Entrepreneurship Monitor (GEM) obtidos por meio de 2 mil entrevistas coletadas entre março a julho. O resultado mostra que há mais homens que mulheres, mais jovens que maduros, mais pretos e pardos do que brancos, vindos da classe média com faixa de renda entre três e seis salários mínimos mensais e com formação educacional até o ensino médio. Outro dado interessante é que hoje as três maiores aspirações do brasileiro são[3] viajar (53,0%), comprar a casa própria (50,0%), ter o próprio negócio (48,2%). Além disso, 62,1 % sentem oportunidades melhores em possuir negócio próprio e 33,7% foram por esse caminho por falta de opção, enquanto 4,2% não souberam ou não responderam.

Da mesma forma, recentemente, o jornal Folha de S. Paulo de 24 de setembro de 2024 traz a informação de que quase metade dos empreendedores brasileiros ainda não tem uma conta de Pessoa Jurídica (PJ). O professor da parceria IBS[4]-Sebrae, Daniel Morelli, destaca que é importante ter uma conta PJ para separar os gastos pessoais dos gastos empresariais. “Há uma mistura do negócio com a vida pessoal. O dono da empresa coloca todo dinheiro [na mesma conta] e depois tem dificuldade para fazer essa separação”. A matéria enfatiza também que diversas instituições e bancos disponibilizam cursos gratuitos que ajudam a estabelecer uma estrutura financeira do negócio.

A arrancada para o novo desenvolvimento

Os Estados Unidos enfrentam desde o final dos anos 1980 importantes desafios. Sua desigualdade de renda é a maior entre os países desenvolvidos. Refletindo a respeito, Stiglitz (2020) lembra que quando a Constituição foi escrita no final do século XVIII o país era uma sociedade agrária, na década de 1950 uma sociedade industrial / manufatura e hoje uma sociedade pós-industrial, com manufatura englobando menos de 10% da força de trabalho.

Então ele continua: “Nenhum de nossos sucessos em gerenciar essas questões surgiu de cada indivíduo agir sozinho. Tudo envolveu cooperação e, com o tempo, essa cooperação se expandiu da folclórica imagem americana da comunidade se reunindo para construir um celeiro para maneiras mais sistêmicas de trabalharmos juntos, incluindo concordar com certas regras, regulamentações e compromissos com a liberdade pessoal. Mesmo assim, os tipos e a extensão da cooperação que a economia do século XXI requer são novos e sem precedentes. Não há comparação entre o nível de ação coletiva requerida agora e o que era necessário no fim do século XVIII, a época na qual a constituição foi escrita e para a qual alguns olham com tanta afeição … Uma agenda focada em promover o progresso tem de ser baseada na profunda compreensão das fontes da riqueza da nação e deve estar disposta a garantir que os avanços tecnológicos e a globalização sejam modelados e gerenciados de maneira que beneficie a todos. … Assim, um princípio central da agenda do século XXI é a criação de um equilíbrio melhor em nossa sociedade e economia, entre as várias partes da sociedade: governo, setor privado e sociedade civil. [Esse equilíbrio deve] exortar os indivíduos e a sociedade em geral a se comportarem de maneiras que reflitam nossos valores e aspirações mais elevados. Entre esses valores estão o respeito pelo conhecimento, pela verdade, pela democracia e pelas instituições da democracia liberal e do conhecimento; é somente através deles que o progresso que conhecemos nos últimos 250 anos pode continuar” (STIGLITZ, 2020, p.293-294, 312 e 314-315).

Há um ano, em entrevista para o jornalista Reinaldo Azevedo e o jurista Walfrido Warde pelo videocast Reconversa[5], o filósofo e jurista Roberto Mangabeira Unger comenta sobre uma alternativa para o desenvolvimento do Brasil. Seguem alguns pontos da entrevista sobre o tema.

Nos Estados Unidos há uma teologia dos evangélicos que repercutiu no Brasil e hoje envolve cerca de 40 milhões de brasileiros. Evangélicos influenciados não pelo protestantismo amplo de Lutero e Calvino, mas um protestantismo mais restrito do período médio da sua história que foi a fonte do pensamento constitucional americano. Ele traz a ideia de que as instituições americanas são sacramentais pois, lá se criou a concepção de que o indivíduo não apenas participa da vida com Deus, mas que num sentido muito real o indivíduo é Deus. Isso se confronta com o cristianismo da maioria dos brasileiros que acredita serem o indivíduo e as instituições humanas pó diante de Deus.  

Unger considera que no Brasil, embora a maioria de sua população seja pobre, ela almeja uma vida burguesa modesta por falta de outras opções. Aspira ser um dia dona de um pequeno pedaço de terra, de um pequeno comércio, uma loja etc. Então o Brasil somente subiria ao primeiro plano na humanidade se for encontrada uma maneira de envolver essa maioria pobre numa dinâmica de crescimento da produtividade o que passa pelo oferecimento de alternativas a forma convencional de seu anseio. Para que isso ocorra é preciso que haja dentro das elites nacionais uma cisão, isto é, cisão entre a parte rentista e a parte produtiva da economia. Esse produtivismo tem que estar associado a um ímpeto nacional, de construção nacional, de rebeldia nacional. Uma forma socialmente includente da nova vanguarda que é a economia do conhecimento.

A evolução dessa economia do conhecimento includente passa por inovações institucionais e educacionais. Além disso é preciso ampliar os acessos e passar para as pequenas e microempresas atrasadas e aos indivíduos, que não tem contato com as organizações empresariais, os recursos e oportunidades de produção da economia do conhecimento. No futuro, imagina Unger, se espera que os meios de produção sejam financiados por fundos que realizam uma espécie de leilão para oferecer tais recursos àqueles – membros da sociedade – que ofereçam os maiores retornos temporários aos próprios fundos. Seria uma espécie de capitalismo sem capitalista[6].  

Em resumo, o que se propõe é empoderar a sociedade brasileira de condições que a permitam construir um novo processo de desenvolvimento que lhe traga maior riqueza e bem-estar. Para tanto é necessário incentivar os programas experimentais. É preciso até mesmo alterar a legislação para que certos experimentos possam ser realizados somente em alguns estados da Federação, isto é, aumentar a independência dos estados.

Unger termina dizendo que para convencer a sociedade em tentar essa direção é importante que haja dentro de uma nova democracia a difusão de poderes proféticos em toda população. E o método do profeta religioso ou do profeta político é oferecer uma visão do futuro, que ele exemplifica na sua ação e, ao mesmo tempo, mostrar os primeiros passos.

Considerações finais

Uma dificuldade que existe para se ter um debate construtivo entre evangélicos e não evangélicos é expressa por Spyer (2020) pela incompatibilidade entre a visão do mundo científica, racionalista, de origem iluminista e uma perspectiva, que pode contrapor com esta visão, relacionada com a existência de um ser supremo que criou o Universo e que, portanto, o controla. “Esse confronto de perspectivas talvez não existisse se o projeto iluminista tivesse tido sucesso em solucionar os problemas do mundo. Ideias como república, razão e ciência não corresponderam às suas promessas. … O desafio, portanto, é múltiplo, se manifesta e é percebido de maneiras diferentes por pessoas de origens socioeconômicas e culturais diferentes” (SPYER, 2020, p.214-215)

A arte da associação é uma alternativa para solucionar esse impasse. “Ora, se a arte da associação foi um fator tão importante, vem-me à mente uma ideia que o leitor talvez considere estapafúrdia: a importância da neve. Numa região ou país cujo inverno se caracteriza por nevascas terríveis, vizinhos que ontem se detestavam, na manhã de manhã, estarão se ajudando mutuamente na remoção daquele enorme entulho que logo se transformará em gelo” (LAMOUNIER, 2024a).

Agradecimento

Sou muito grato a meu professor Dr. Ettore Bresciani Filho, membro do CLE-UNICAMP e meu colega da ABQ pelas importantes sugestões na composição desse relatório.

Anexo: Capitalismo sem capitalista

Russo & Bresciani (2022) buscam em Peter Drucker as ideias contidas naquilo que o autor chamou de capitalismo sem capitalista.

“Um dos livros americanos mais influentes [do século XX], The Modern Corporation and Private Property, de Adolph A. Berle e Gardner Means, foi publicado em 1933. Ele salientava que em uma grande corporação os proprietários legais, os acionistas, não estavam mais aptos ou dispostos a controlar. Gerências profissionais exerciam o controle sem serem proprietárias. Berle e Means demonstraram que não havia outra maneira para financiar uma grande corporação. Ela havia ficado grande demais para ser financiada por um só proprietário ou por um grupo de proprietários. Em vez disso ela exigia o financiamento através dos investimentos de grande número de pessoas, nenhuma das quais podia ter o suficiente para controlar a empresa, ou mesmo para se preocupar a respeito do seu gerenciamento. A propriedade, afirmaram Berle e Means, havia se transformado em investimento.

Nunca houve antes importâncias tão grandes como aquelas atualmente nas mãos de investidores institucionais, principalmente fundos de pensão, em países desenvolvidos. … Esses fundos fazem o maior capitalista do passado parecer anão.

A integração dos verdadeiros proprietários dos fundos de pensão, os atuais empregados e futuros pensionistas, na gerência [deles] é um desafio ainda não enfrentado em nenhum país. Atualmente, a única relação desses proprietários com seus fundos é a expectativa de um cheque no futuro. Contudo, para a maioria das pessoas acima de quarenta e cinco anos nos países desenvolvidos, a participação no fundo de pensão é seu maior ativo isolado. No século dezenove, a maior necessidade financeira das pessoas comuns era de um seguro de vida para a proteção de suas famílias em caso de sua morte prematura. Com as atuais expectativas de vida – quase duas vezes maiores que aquelas do século passado -, a maior necessidade das pessoas de hoje é a proteção a ameaça de viver demais. O seguro de vida do século dezenove era realmente um seguro de morte. Já o fundo de pensão é o seguro da velhice. Trata-se de uma instituição essencial numa sociedade na qual a maioria das pessoas pode esperar sobreviver por muitos anos às suas vidas profissionais.

A gerência adequada dos fundos de pensão e sua integridade também irão constituir, merecidamente, uma importante questão pública.

O capitalismo dos fundos de pensão é, em seus fundamentos, tão diferente de qualquer forma anterior de capitalismo como de qualquer economia socialista já imaginada.

Os fundos de pensão são um fenômeno curioso e sem dúvida paradoxal. São investidores que controlam enormes capitais e seu investimento. Mas nem os gerentes que os administram, nem seus proprietários, são capitalistas. O capitalismo dos fundos de pensão é capitalismo sem capitalistas.

Os fundos de pensão são proprietários, mas apenas legalmente. Em primeiro lugar eles são curadores. Os proprietários, os futuros pensionistas, são os beneficiários finais. E os fundos são gerenciados por empregados como analistas financeiros, gerente de carteiras e estatísticos. São profissionais bem remunerados, mas é pouco provável que eles sejam ricos. Na verdade, os maiores fundos de pensão americanos, aqueles dos funcionários do governo federal e dos governos estaduais e municipais, são gerenciados por servidores civis que recebem seus salários normais.

O capitalismo dos fundos de pensão também não tem capital. O dinheiro dos fundos de pensão – e de seus irmãos, os fundos mútuos – não se encaixa em nenhuma definição conhecida de capital; e não se trata de uma simples questão de semântica. Na verdade, os fundos de pensão são salários suspensos, que estão sendo acumulados para prover o equivalente da renda salarial a pessoas que não mais trabalham” (DRUCKER, 1993, p.48-52).  

Referências 

  • DRUCKER, P.R., As Novas Realidades. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989.
  • DRUCKER, P.R., Sociedade Pós-Capitalista. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1993.
  • JORNAL FOLHA DE S.PAULO, Cresce número de contas PJ, mas quase metade dos empreendedores brasileiros não tem uma. São Paulo: 24 de setembro de 2024.
  • JORNAL VALOR ECONÔMICO, O empreendedorismo que pegou a classe política de surpresa. São Paulo: 26 de setembro de 2024.
  • LAMOUNIER, B., Anatomia da vertigem política. São Paulo: Jornal O Estado de S.Paulo, 27 de julho, 2024a.
  • LAMOUNIER, B., Mais uma luzinha no fim do túnel? São Paulo: Jornal O Estado de S.Paulo, 24 de agosto, 2024b.
  • MAPA DE EMPRESAS, Boletim do 1º quadrimestre/ 2024. Brasília: Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, 2024
  • MENDES, M., Por que o Brasil cresce pouco? Desigualdade, democracia e baixo crescimento no país do futuro. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 2014.  
  • MING, C., Os impactos da Teologia da Prosperidade. São Paulo: O Estado de S.Paulo, 12 de setembro de 2024.
  • PRADO, M.C.R.M., Uma armadilha conveniente. São Paulo: Jornal Valor Econômico, 8 de agosto de 2024
  • RODRIK, D., Os quatro desafios da economia global. São Paulo: Jornal Valor Econômico, 12 de janeiro de 2024.
  • RUSSO, V.A.F., Alguns aspectos do potencial de melhorias para o bem-estar do Brasil, Parte I: A realidade socioeconômica atual do Brasil. São Paulo: Estudos e Relatórios Técnicos, Academia Brasileira da Qualidade, 2023a.
  • RUSSO, V.A.F., Alguns aspectos do potencial de melhorias para o bem-estar do Brasil, Parte II: Políticas públicas para o desenvolvimento. São Paulo: Estudos e Relatórios Técnicos, Academia Brasileira da Qualidade, 2023b.
  • RUSSO, V.A.F; BRESCIANI F., E., O papel social das grandes corporações. Campinas: Palestra não publicada apresentada nos Seminários Interdisciplinares de Desigualdade Social e Econômica, CLE-UNICAMP, 02 de setembro de 2022.
  • RUSSO, V.A.F; BRESCIANI F., E., A importância do PIB e do PIB per capita para interpretar o desenvolvimento econômico.  São Paulo: Academia Brasileira da Qualidade – Estudos e Relatório Técnicos, 16 de janeiro de 2024, 6p. [www.abqualidade.org.br]
  • SPYER, J., Povo de Deus. São Paulo: Loope Editora, 2020
  • STIGLITZ, J. E., Povo, Poder e Lucro: capitalismo progressista para uma era de descontentamento. Rio de Janeiro: Editora Record, 2020.

[1] MEI é uma modalidade de empresário individual com processo simplificado para abertura de empresas e regime especial de tributação. Além das facilidades para formalizar o negócio e enquadramento tributário simplificado, o MEI dispõe de medidas simplificadas de acesso ao crédito

[2] O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) é uma entidade privada.

[3] Múltipla escolha não exclusiva.

[4] IBS – International Business School.

[5] Link da entrevista: https://www.youtube.com/watch?v=05ONZEwafcU (20.09.2024)

[6] Unger não entrou em maiores detalhes sobre esse regime econômico. Todavia, o termo capitalismo sem capitalista foi cunhado por Peter Drucker e pode trazer algum eventual alinhamento com essa concepção de Unger conforme exposto no anexo final.

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

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