Mauriti Maranhão*
Já há algum tempo, muito se falava que vivíamos em um mundo VUCA, isto é com características Voláteis, Incertas, Complexas e Ambíguas. Por óbvio, esse novo ambiente passou a exigir novas competências cognitivas e profissionais, quando ainda estamos patinando em inexplicável despreparo para um mundo cada vez mais agressivo e mais competitivo.
Diante do extraordinário avanço da tecnologia, hoje a palavra de ordem da economia mundial é inovação, frequentemente qualificada como “disruptiva”. No ambiente da economia disruptiva, tecnologia, produtos ou serviços são rapidamente substituídos por soluções superiores tanto em eficácia (resultados) quanto em eficiência (mais baratos).
Também em décadas ainda recentes, a qualidade de produtos ou serviços era algo desejado e necessário, embora nem sempre existente em graus aceitáveis. Isso mudou profundamente: qualidade em tudo é hoje uma necessidade imperiosa. De outra forma, produtos ou serviços tornam-se obsoletos ou não escolhidos pelos clientes.
A tendência atual, que veio para ficar, é ainda mais diferenciadora. Exige a integração entre inovação e qualidade, uma vez que uma tecnologia não provida organicamente de grau de qualidade compatível com a aceitação dos usuários finais de produtos ou serviços torna-se inócua: o cliente simplesmente não aceita e não compra produtos ou serviços inferiores ou precários.
Em outras palavras, desenvolvimento, em termos gerais, implica, necessariamente no esforço integrado de continuamente gerar produtos que sejam inovadores e organicamente providos com grau de qualidade capaz de convencer os seus usuários finais quanto à justeza entre o valor que pagam pelo que adquirem, em troca do dinheiro que empenham na transação considerada. Em resumo, o entendimento mais completo da competitividade implicaria na consideração conjunta de tecnologia, inovação e qualidade.
A proposta deste artigo é evidenciar a necessidade imperiosa de integrar as dimensões ordem, qualidade e inovação na economia, como pilares da sustentabilidade, âncora para assegurar sociedades justas e prósperas. Adicionalmente, a proposta apresenta, com um fim pedagógico, pelo menos um exemplo de evolução VUCA, o mesmo que dizer, mais ambiente mais competitivo.
[1]Mauriti Maranhão: Engenheiro, Estatístico e Mestre em Ciências. É membro da Academia Brasileira da Qualidade. Autor de oito livros pertinentes à gestão empresarial.
Referências Bibliográficas
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de janeiro: Editora Objetiva, 2011.
GEROMEL, Ricardo. O poder da China. São Paulo Editora Gente, 2019.
Jornal O Globo. Edição de 04/03/2023. Rio de Janeiro.
[2]VUCA – acrônimo criado no final dos anos 1980 pelo Army War College, órgão do Departamento de Defesa dos EUA, com o fim de caracterizar o mundo após o arrefecimento da Guerra Fria. O US Army War College destina-se a formar líderes de nível estratégico de exercício do poder dos EUA.
[3] Atualmente, a sustentabilidade é associada à gestão ESG, isto é, tal que assegure uma economia na qual os parâmetros Ecológicos (Enviromental), Sociais (Social) e Governança (Governance) constituem os pilares da estratégia e dos processos produtivos.
É fato reconhecido que a China, embora uma ditadura ferrenha, talvez seja a economia que melhor conduza dentre todos os países do mundo a sua estratégia. Veremos neste artigo que a China incorporou a mentalidade de ser uma potência inovadora e, perigosamente, uma potência militar. Alguns autores relatam que a China, diferentemente de todos os demais países, implementa, disciplinadamente, planos quinquenais com horizonte de cinquenta anos de consecução. Essa lógica milenar, fundamentada na deterrência e na preempção, está admiravelmente historiada no livro “Sobre a China”, de Henry Kissinger.
Essa mesma lógica parece regular o comportamento chinês no atual conflito com os EUA, cujos principais objetos são a independência de Taiwan e a competição internacional, com raízes econômica, militar e social (soft power).
Como marco de posição estratégica, a China mostrou as suas intenções. Durante a realização do 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCC), em outubro de 2022, foram divulgados planos e ambições de dimensões chinesas, incomparáveis com padrões ocidentais. Nesses planos e ambições se constata que, junto a rápido crescimento econômico, há exigência de qualidade de produtos e serviços compatíveis às exigências atuais, buscando-se uma economia mais verde e mais eficiente (mais barata e, portanto, mais competitiva com produtos e serviços congêneres).
Em resumo, o país que mais cresce no mundo enxerga, com clareza, que a prioridade nacional é continuar crescimento em ritmo alucinante (ordem de 6% ao ano), mas com base em inovação e qualidade.
A título de ilustração, penso que, até para fins de comparação com a realidade brasileira, vale a pena visitar, ainda que resumidamente, a extraordinária evolução chinesa, a partir de 1976.
Como suma histórica, é fato que a China, durante milênios, se alternou sucessivamente entre períodos de esplendor de uma dinastia e outro de sua decadência, em seguidos ciclos resumidos como “O império, há muito dividido, deve ser unir; há muito unido, deve se dividir”. Esses ciclos correspondiam à sucessão de uma dinastia em queda, substituída por uma nova dinastia, que assumia o governo chinês ao derrotar a dinastia anterior.
Para se ter uma ideia da dimensão dessas guerras entre dinastias, certa vez Mao Zedong (ou Mao Tse Tung) afirmou que durante o período dos Três Reinos (220-280 d.C.) a população da China declinou de 50 para 10 milhões de habitantes. Por trágico que pareça, números dramáticos como esses sempre foram comuns na história da China.
[4] Observar que esta é a lógica descrita no livro “A arte da guerra”, de Sun Tzu (2.500 a.C.), algo alinhada com o Confucionismo (551 a.C.).
[5] Significa “poder de convencimento suave”. Esclarece o poder transformador que uma sociedade exerce sobre as demais, a exemplo do soft power dos EUA, concretizados na forma da aquisição espontânea de hábitos de uso de calças jeans, shopping centers, McDonnald’s etc.
[6] O Brasil, há quatro décadas, está preso à armadilha da renda média, jocosamente referida como “voos de galinhas” da economia. Atualmente a sociedade sofre pagando impostos nórdicos e recebendo, em contrapartida, serviços medíocres,
[7] Segundo Kisisinger, Mao Zedong foi um líder frio, impiedoso, assertivo, implacável em sua influência, poeta e guerreiro, profeta e opressor.
No Século XX, a China viveu, entre 1927 e 1949, uma longa guerra civil, tendo como oponentes Mao Zedong, líder dos comunistas, e Chiang Kai-shek, líder dos nacionalistas. A guerra civil foi decidida em 1949, quando Mao derrotou Chiang Kai-shek, obrigando-o a se exilar em Taiwan, sob a proteção dos EUA. Desde esse fato, a China faz movimentos para integrar Taiwan à China continental. Essa reivindicação, cada vez mais ameaçadora, continua a ser implementada por Xi Jinping, compondo um dos focos do conflito entre China e EUA.
Como uma terrível sombra no horizonte, é fato que esse conflito é agravado pela disputa da hegemonia econômica e militar no mundo, evidenciando-se uma predição de Armadilha de Tucídides: quando um poder emergente ameaça destronar uma superpotência, o resultado mais provável é a guerra. Nos últimos 500 anos, terminaram em guerra doze dos dezesseis casos em que um grande poder ameaçou deslocar a respectiva potência dominante. Esperemos que os políticos dessas duas potências tenham juízo, uma vez que paira a ameaça atômica de destruição total do mundo (MAD – destruição mútua assegurada).
Mao Zedong, à frente do PCC, governou a China de 1949 até 1972, promovendo um sem número de sangrentas e contraditórias reformas, na qual pereceram dezenas de milhões de chineses. Com a morte de Mao, o poder, sempre eivado de grandes turbulências, ficou nas mãos de Hua Guofeng até 1979. Desde a Grande Marcha (1934-1935), Deng Xiaoping se insinuava no poder, mas sofreu dois expurgos (“limpeza”) que quase o liquidaram e atingiram severamente a sua família. Finalmente, em 1979, após a morte de Hua Guofeng, Deng Xiaoping assumiu o poder.
Corajosamente, Deng Xiaoping iniciou uma grande reforma, resumida nos seguintes termos: “os bens de consumo tinham de ter prioridade sobre a indústria pesada, a engenhosidade dos agricultores chineses precisava ser liberada, o PCC devia se mostrar menos intrusivo e o governo tinha de ser descentralizado”. Como nunca antes acontecera antes, Deng Xiaoping assumiu publicamente que a China era um país pobre, condição historicamente renegada por Mao Zedong, e que necessitava obter tecnologia, especialização e capital estrangeiros para remediar suas deficiências. Em 1976, ano da morte de Mao Zedong, a China detinha não mais que 1,6% do comércio dos EUA com Taiwan, que já se colocava como uma potência industrializada e, juntamente com Singapura, Coreia do Sul e Hong Kong, constituíam os “Quatro tigres asiáticos“.
[8] Alguns analistas defendem que o atual apoio de Xi Jinping à Rússia (historicamente inimigos viscerais) nada mais é que a abertura de um precedente de legitimação da invasão de um país soberano (Ucrânia) por outro, para “justiticar” a invasão militar de Taiwan pela China.
[9] Episódio da Revolução Comunista da China, iniciada em 1934, na qual 100.000 combatentes do Exército Vermelho, liderados por Mao Zedong e Zhou Enlai, se insurgiram contra o então governante, Chiang Kai-shek, empreendendo uma marcha de 10.000 Km em condições extremamente difíceis. Fadiga, doenças e combates ceifaram 80% dos combatentes que iniciaram a caminhada.
[10] De acordo com o confuso, incerto e volátil ambiente político, Deng Xiaoping tinha de manter todos os créditos a pensamento de Mao Zedong, sempre ecoando as “Quatro Modernizações” de Mao Zedong, na realidade de Zhou Enlai (Chanceler de Mao): agricultura; indústria; defesa nacional; e ciência e tecnologia. O ambiente político era sempre tenso e ambíguo. A China vivia uma década de furiosas milícias de jovens ainda herdeiros da terrível Revolução Cultural levada a cabo por Mao Zedong, que causou vários milhões de mortos. A família de Deng chegou a ser seriamente ameaçada.
“O desafio de Deng era como transformar uma população sem ensino, isolada e ainda grandemente empobrecida em uma força de trabalho capaz de assumir um papel produtivo na economia mundial e de suportar as ocasionais tensões”.
Deng Xiaoping tinha visão que equilibrava os seus princípios revolucionários com ordem e busca pela prosperidade, mas desprezando os valores ocidentais, embora reconhecendo o valor da tecnologia e inovações econômicas do ocidente. Em 1978, Deng trombeteou duas frases ousadas para o contexto chinês, que marcavam o seu pensamento reformador: “como emancipar nossas mentes, usar nossas cabeças, buscar a verdade dos fatos e nos unir na procura do futuro” e “O mérito deveria substituir a correção ideológica”.
A reforma iniciada por Deng Xiaoping foi continuada, e por vezes revigorada, mas sempre alinhadamente à estratégia chinesa de longo prazo. Destaca-se que o poder sempre se mantinha algo obscuro, característico das autocracias e, em especial da ditadura chinesa. Entre 1993 e 2002 tudo indicava que o poder estivesse sob Jiang Zemin, que em 2002 foi substituído por Ju Jintao, que permaneceu até 2013. Desde então, Xi Jinping, apoiado por Ju Jintao, assumiu o poder, que tem sido mais e mais autocrático.
Aos olhos de muitos especialistas do Vale do Silício (fortemente fundamentada em meritocracia), hoje a China (fundamentada na hierarquia) é uma superpotência inovadora, mas sempre mantendo resistência em abrir-se ao mundo. É uma economia gerida pelo governo que, além de investir diretamente, provê benefícios tendentes a direcionar os caminhos da nova economia.
“O empresariado chinês olha com afinco as diretrizes do governo e as segue, sempre baseados nos planos quinquenais, mais gerais, e planos do governo específicos para os diferentes setores da economia.” (Ricardo Geromel – O poder da China).
Em 2008 o governo chinês lançou o ambicioso e bem-sucedido “Plano Mil Talentos”. Este plano conseguiu recrutar mais de sete mil pesquisadores e cientistas estrangeiros e chineses residentes no exterior, incentivando-os a viver na China. Os assinantes deste programa recebem inúmeros benefícios: salários acima da média; bônus de cerca de 500 mil reais; oportunidade para se candidatar a receber fundos milionários destinados a financiar suas pesquisas; e ainda distinção de ser reconhecido como “Especialistas Nacional Distinto”. No livro “O poder da China, Ricardo Geromel relata:
O espírito empreendedor vai além do mundo dos negócios. O empreendedorismo mudou o partido e o país. Esse espírito não se manifesta apenas no governo. Está também nos desejos e nas decisões de pessoas comuns.
Enquanto no ocidente as pessoas ficam com receio de que as máquinas e inovações possam ameaçar seus estabelecidos empregos, a norma na China é tentar usar inovações para ganhar renda extra. Várias pessoas que conheço fazem bicos e/ou tem mais de um emprego, muitos deles relacionados com inovação.
[11]Os bens necessários que eram necessários não eram produzidos, e os bens que eram produzidos não eram necessários.
[12] Historicamente a China mantinha relações tensas e conflituosas com Rússia, Japão, Coréia do Norte, Vietnam e Índia, além das tensões com as potências ocidentais, especialmente os EUA que dominaram a China no Século XIX. Durante esse domínio, lamentavelmente, a Guerra do Ópio, fomentada particularmente pela política inglesa, tem histórico vergonhoso.
[13] Nessa época, o ambiente político vigente era extremamente incerto, ambíguo e fluido, ainda impregnado pelo pensamento retrógrado da ideologia de Mao Zedong.
O premier Li Keqiang, um dos políticos mais poderosos do país, destacou o poder do “empreendedorismo em massa e inovação” e deixou claro que esses dois itens são as peças fundamentais da atual estratégia nacional da China.
Em seu discurso no Congresso Nacional Popular, o premier Li mencionou a palavra “inovação” 59 vezes e “empreendedorismo” 22 vezes. Outras frases populares como “internet plus”, “economia de compartilhamento”, “big data” e “internet of things” também apareceram diversas vezes. O 13º e mais recente Plano Quinquenal destaca inovação e produtividade como os principais motores do crescimento da nação. O governo decidiu que a China deve ser uma potência inovadora. (Ricardo Geromel – O poder da China).
A China era um país essencialmente agrário; em 1976, 80% da população vivia no campo. Atualmente a China tem cerca de 1,4 bilhão de pessoas, 20% da população mundial, com cerca de 80% (cerca de 1,1 bilhão de pessoas) vivendo nas grandes regiões costeiras. É um canteiro de obras, muitas delas simplesmente extraordinárias, incluindo pesados investimentos para levar o desenvolvimento para o interior.
Cresce em torno de 6% ao ano, explicado em três dimensões: escala (números chineses, isto é, monumentais), velocidade (transformações vertiginosas) e governo. Este é onipresente, atuando como a “mão invisível do mercado”, é o centro de todas as grandes decisões, e conduz uma estratégia férrea e longeva.
É notável constatar que em 1980, mais de 88% da população da China vivia abaixo da linha de extrema pobreza. Em apenas 20 anos, 800 milhões de chineses evoluíram para outro patamar, adquirindo condições típicas de classe média, a exemplo de ter acesso a Internet e bens de consumo, poder viajar etc. E continuam progredindo a velocidades surpreendentes.
Por exemplo, a infraestrutura da China já instalada ou em acelerada construção nas regiões mais populosas, especialmente na costa do Pacífico, é surpreendente, contando com notáveis obras de engenharia. A China hoje tem a segunda malha ferroviária do mundo e possui cerca de 40.000 Km de trens de alta velocidade, podendo alcançar 350Km/h. Tudo facilitado por leis e poder autoritário (com o poder de deslocar arbitrariamente milhares de pessoas de um lugar para outro) e mão de obra ainda barata.
Todavia, enquanto a costa da China é rica (vocacionada para a exportação), o interior é agrário e pobre, o que limita a ascensão da China à condição de país rico. Atualmente o PIB da China é de US$ 17 trilhões (o PIB dos EUA é de US$ 23 trilhões), resultando em PIB per capita US$ 12.556. Por consequência, a China se enquadra na categoria de “renda média”, à semelhança do Brasil, que tem PIB de US$ 9,9 trilhões, com PIB per capita de US$ 11.875, ligeiramente inferior ao da China.
[14] Além da necessidade de buscar evoluir da renda média, o investimento em obras de infraestrutura no interior se explica pelos interesses geopolíticos para assegurar o poder em regiões de etnias que almejam autonomia (p.ex.: Tibete, os uirgures de Xinjiang etc.) ou são países fronteiriços (p.ex.: Quirguistão).
[15]Expressão cunhada por Adam Smith, que pode ser explicada pela expressão “egoísmo de uns para benefícios de muitos” ou “vícios privados, benefícios públicos”.
[16]Destaca-se que, comparativamente, a Europa tem apenas 11.000 Km com trens de alta velocidade que trafegam a pouco mais de 200Km/h. E, mais surpreendente, os EUA têm apenas uma linha de trem de alta velocidade, que conecta Washington, D.C. e Boston com velocidade máxima de 240 Km/h e média de 110 Km/h.
Em face de ser uma ditadura implacável, a China enfrentará muita dificuldade para solucionar a pobreza do interior do país, que aflige algo em torno de 600 milhões de pessoas. Enquanto o desenvolvimento da costa (sede dos portos marítimos) foi facilitado pela estratégia de país exportador, as dificuldades para desenvolver o interior do país serão muito maiores, uma vez que exigirá aumento do consumo interno, o que requer aumento do poder aquisitivo do povo do interior, muito inferior ao correspondente poder aquisitivo dos habitantes da costa.
Antes de encerrar esse resumo sobre a evolução chinesa, vale a pena ressaltar que, de acordo com Ricardo Geromel, na China “ideias não são importantes; a execução é”, o que retrata o espírito essencialmente pragmático do atual pensamento vigente na gestão dos negócios. Adicionalmente, ainda segundo Geromel, “diferentemente do Vale do Silício, de Israel e de outros polos de inovação pelo mundo, a maioria dos chineses quer fazer negócios e não apenas trocar conhecimento “, mais uma vez consolidando a “pressa” chinesa.
Após esse notável exemplo de transformação, retornemos ao Brasil. As imensas dificuldades que assolam a realidade brasileira, especialmente a desigualdade, que provoca baixo padrão de renda, trazem imenso sofrimento à imensa maioria mais pobre da população e desesperança para todos. Diante do que a China fez e faz, certamente estamos atrasadíssimos e, ainda, correndo o sério risco de nos atrasarmos mais e mais, a cada oportunidade perdida (e somos doutores em perder oportunidades). Urge sairmos dessa armadilha.
Anteriormente, escrevi sobre a relação entre qualidade e ordem. Por óbvio, o grau de ordem vigente na China, uma ditadura, é muito grande, impondo, em tese, qualidade de produtos e serviços. Em contrapartida, no Brasil, a situação de desordem é patente, a começar pela desordem institucional o que, também em tese, dificulta tanto na obtenção espontânea de qualidade em produtos e serviços quanto no ordenamento urbano, na segurança e em todas as demais áreas da economia brasileira. A desordem vigente é um câncer que corrói a nação.
Assim é que, recentemente, o jornal O Globo, na edição de 04/03/2023, publicou matéria, assinada por José Luiz Alquéres, intitulada “A morte e a vida das grandes cidades brasileiras”, na qual afirma:
Em sua concessão, o índice de perdas e furtos (da Light no Rio de Janeiro) atinge 60%. Índices absurdos também existem na evasão de IPTU, na ocupação de áreas ilegais, em edifícios irregulares, na proliferação de áreas ilegais, na proliferação de camelôs e no comércio ilegal e em muitas manifestações da informalidade, que desmoralizam o Estado e as instituições da sociedade civil …
[17]A doença da desordem também está presente em cidades de países desenvolvidos, como vimos na invasão do Capitólio (EUA) e em Paris, por conta de protestos contra a Reforma da Previdência.
[18]Concessionária de energia do Rio de Janeiro desde 1905.
[19] Alquéres entende que a raiz da desordem vigente é a informalidade, estabelecendo como suas causas: a) a rigidez das leis trabalhistas; b) a burocracia; c) a corrupção. José Luiz Alquéres é conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais.
A classe política tem demonstrado sua incapacidade de reverter a situação, concentrada na defesa de seus interesses próprios e paroquiais, quando não representante direta desses grupos criminosos.”.
Ora, que empresa conseguiria sobreviver com índices de perdas dessa ordem, quando margens de rentabilidade de 10% são raras? Especificamente, condições lamentáveis como essas explicam o esvaziamento do Rio de Janeiro. A consequência visível da desordem vigente é a degradação em todos os aspectos da vida da cidade do Rio de Janeiro. Embora de extraordinária beleza, a desordem provoca vários efeitos danosos, especialmente a falta de segurança. Esse quadro desestimula o turismo, uma excelente fonte de recursos, criando um círculo vicioso de desordem e pobreza.
Mas é fato, que não é somente no Rio de Janeiro que a desordem provoca graves danos à sociedade. Como já afirmado anteriormente, lamentavelmente a desordem parece ser nacional e institucional. De norte a sul, de leste a oeste, presenciamos desordem em todos os aspectos das vida nação, estigmatizada pelo “jeitinho”, que concretiza a absoluta incapacidade da sociedade seguir regras, de respeitar as Leis estabelecidas, muitas delas já eivadas de terríveis vícios que “legitimam” privilégios e patrimonialismo.
Do que foi exposto, conclui-se que temos uma árdua tríade de dimensões a endereçar: qualidade, ordem e inovação. Essas dimensões são, ou deveriam ser, orgânicas, isto é, partes harmônicas e interconexas do mesmo conjunto de esforços.
Por onde começar?
O fato é que, sem um grau mínimo de ordem continuaremos sendo incapazes de desenvolvimento na velocidade requerida no contexto mundial. Pelo contrário, corremos o risco de regredir.
Como disse Alquéres, a causa maior das nossas dificuldades reside na incapacidade da classe política, incrustada como craca no poder. Ora, pelo menos os cargos eletivos são escolhidos pelo povo em eleições livres. Por que o povo escolhe tão precariamente? Uma provável resposta é por estarmos presos a sistemas eleitoral e partidários viciados, que somente podem ser melhorados pelos políticos.
Aí reside o nó: a maioria dominante de nossos políticos são incompetentes para iniciar a transformação, coniventes com o status quo ou ainda corruptos para não transformar, tudo contribuindo para perpetuar a situação atual de desordem.
Nós, cidadãos que tivemos oportunidade de instrução, somos uma pequena parte da sociedade com capacidade intelectual de compreender a situação e capazes de organização social. De acordo com a sua Missão, cumpre à ABQ focalizar a disseminação da qualidade, da produtividade e da inovação, parâmetros que compõem os pilares da sustentabilidade. Todavia, de pouco adiantarão tais esforços se o país permanecer mergulhado na desordem vigente, em última análise fomentada pela nossa deplorável classe política.
Tradicionalmente, a ABQ tem se mantido distante da política, atendo-se exclusivamente às questões eminentemente técnicas pertinentes à qualidade. Todavia, é fato que a política é o mais poderoso e essencial instrumento concreto para transformar as sociedades. Desse modo, a proposta do autor é propor à ABQ, paralelamente aos muitos esforços que já empreende, iniciar atuação na seara política. Dispensado afirmar que esta atuação deve ser essencialmente apartidária, até pela fluidez programática dos partidos legalmente estabelecidos.
Este tipo de atuação tornar-se-ía, por consequência, estrutural, em busca da promoção de melhorias institucionais na qualidade, na produtividade e na inovação, sempre em prol de uma sociedade melhor e mais justa.
Tudo considerado, penso que a ABQ poderia endereçar esforços para pressionar continuamente a classe política, de modo a aprimorar os nossos sistemas eleitoral (considerado a mãe de todos as reformas) e partidário. E todos sabemos, os políticos somente enxergam com clareza um limite: o risco de não se eleger/reeleger.
Penso que vale a pena lembrar a pressão popular que existia sobre os políticos enquanto o Rio de Janeiro foi a Capital Federal. No Rio, até 1962, os políticos ficavam diretamente expostos aos humores da população, embora tivéssemos uma democracia com severas limitações sociais. Mas, pelo menos no Rio de Janeiro de que lembro como criança, existia mais ordem urbana. Com a transferência da Capital para Brasília, perdemos a capacidade de fazer pressão sobre os políticos. É inquestionável que, desde então, houve notável e progressiva piora da qualidade dos políticos, ficando visível que “cada Congresso é pior que o anterior”. As lideranças se evaporaram. Hoje é difícil apontar candidatos a estadistas em nosso establishment.
Como conclusão, penso que é mais atual do que nunca lembrar Benjamin Disraeli: “O momento exige que os homens de bem tenham a audácia dos canalhas.”
Finalmente, tendo em vista o potencial da ABQ, como parte da sociedade organizada, minha sugestão é no sentido de encontrar caminhos e implementar ações para iniciar e manter pressão sobre a classe política. Não podemos nos omitir; é hora de começar.