terça-feira, abril 16, 2024

A Produtividade no Brasil

Relatório do Grupo de Estudo Produtividade: Caio Márcio Becker Soares (Coordenador), Cláudio de Moura Castro, Claudius D’Artagnan Cunha de Barros, Eduardo Vieira da Costa Guaragna e Maurício Roscoe

Academia Brasileira da Qualidade, São Paulo, Agosto de 2020

PARTE I – PRÓLOGO, CONCLUSÃO E ATUAÇÃO DA ABQ

PRÓLOGO

A Academia Brasileira da Qualidade coloca sua atenção em atividades relacionadas à engenharia da qualidade, à gestão da qualidade e a excelência na gestão.

A produtividade no Brasil está relacionada diretamente com os temas com os quais a ABQ dedica sua atenção. Como a produtividade mostra resultados inadequados, constituiu-se um Grupo de Estudo com a participação de acadêmicos. Os acadêmicos participantes têm experiência e conhecimento na gestão pública e nas empresas privadas, o que contribuiu de forma relevante para os resultados obtidos com o trabalho.

Solicitou-se a cada participante a elaboração de um texto referente à questão da produtividade no Brasil. A análise dos textos levou às conclusões do grupo de estudo bem como às propostas de ações para a solução do problema da produtividade e atuação da Academia Brasileira da Qualidade nessa questão.

A conclusão do estudo e a atuação da ABQ são apresentados nesta Parte I do relatório. Os textos que embasaram o trabalho são apresentados na Parte II.

Inicialmente são apresentados de forma concisa e objetiva o conceito da produtividade e os fatores que a afetam. Esse texto foi elaborado pelos acadêmicos Eduardo Vieira da Costa Guaragna, Claudius D’Artagnan Cunha de Barros e Caio Márcio Becker Soares.

O acadêmico Maurício Roscoe trata da necessidade de haver uma visão sistêmica, dos recursos reais, das pessoas e outros recursos disponíveis os quais, se não aproveitados ou mal aproveitados, contribuem para a falta da produtividade.

O acadêmico Cláudio de Moura Castro mostra a produtividade na visão do economista, sua participação no PIB, o conhecido Custo Brasil e o envolvimento das pessoas nesta questão. Claudio examina também a produtividade no extremo inferior da força de trabalho. Para isso, usa a pequena construção civil, cuja força de trabalho tem um grande contingente de operários muito toscos na sua preparação e oriundos de um meio muito pobre. Para dar mais realismo à sua argumentação, refere-se à sua experiência pessoal na construção de sua casa em um condomínio próximo a Belo Horizonte. Esse texto, “A construção civil e o atraso”, não é uma crítica e não é um espelho da construção civil no Brasil, como um todo. Ainda assim, mostra a falta de preparo, de interesse e de motivação de um considerável segmento dos nossos trabalhadores. Falta-lhes empenho e motivação para um trabalho bem feito, profissional e com ganhos de produtividade. Infelizmente, isso não se aplica somente ao pessoal da construção civil, mas ao contingente inferior de outros segmentos como a indústria, o comércio, a prestação de serviço, a saúde, a educação.

Convidamos a todos a ler e analisar com atenção os textos na Parte II do relatório. É preciso resolver essa questão da produtividade no Brasil, o que não será feito apenas com solução de problemas, simplificação de processos e outras ações que temos adotado ao longo dos anos e que não têm contribuído para a melhoria da nossa produtividade. Precisamos colocar nossa atenção nas pessoas, principalmente nas nossas crianças, para mudar essa cultura de falta de conhecimento, de falta de interesse e de motivação para um trabalho bem feito.

CONCLUSÃO

A análise dos textos elaborados pelos acadêmicos, apresentados na Parte II desse relatório, mostra que a produtividade deve ser estudada numa visão sistêmica, onde os elementos que a constroem sejam identificados, assim como as suas inter-relações. Não se trata de uma bala de prata. A produtividade vem sendo tratada como um problema pontual e para o qual não existem ferramentas ou metodologias específicas para sua solução.

Os textos mostram que a produtividade apresenta elementos externos às organizações, mas fundamentalmente está diretamente correlacionada com as pessoas. Isso fica claro no texto de Maurício Roscoe – A otimização dos recursos reais. As pessoas são um valioso recurso real. Cláudio de Moura Castro demonstra no seu depoimento pessoal – A construção civil e o atraso – a importância das pessoas e do seu conhecimento, comprometimento e entusiasmo para um trabalho bem feito.

Observa-se, também, que numa visão sistêmica, a questão da produtividade, ou da baixa produtividade no Brasil, é uma consequência de um problema bem maior e que tem como uma das principais causas a falta de conhecimento, de comprometimento e de entusiasmo das pessoas, agravado pelo fato da ausência de valores que estimulem o fazer bem feito e o desejo de ser um bom profissional e subir na sua profissão. A questão tem que ser tratada dentro dessa visão sistêmica. Ferramentas e metodologias que vem sendo utilizadas ao longo de anos, como a solução de problemas, a simplificação dos processos e a adoção de modelos de gestão, entre outras, apenas melhoram ou resolvem pontualmente a questão da produtividade. Mas é preciso tocar nas pessoas, na sua dignidade de desempenhar sempre melhor. Precisamos de algo mais robusto.

Como ficou demonstrado que existe uma correlação direta entre a produtividade e as pessoas, é natural que se trabalhe com as pessoas para buscar ganhos de produtividade. Mas, o que fazer para desenvolver as pessoas? Ao longo de anos temos ministrado treinamentos para as pessoas e o problema persiste.

Novamente, numa visão sistêmica, a educação das pessoas é fator primordial para ensinar a pensar, desenvolver discernimento, dar o conhecimento e criar um ambiente de comprometimento e entusiasmo para um trabalho bem feito. A educação é a chave que abre a porta da dignidade que impulsiona o indivíduo a ser alguém, com desejo próprio e se transforma num valor que impulsiona a sua progressão profissional. Não vamos conseguir isso somente com treinamentos e cursos, principalmente de natureza técnica.

Outro fator que contribui para a improdutividade do Brasil é a desigualdade, a exclusão e a inclusão social, a pobreza, a qualidade de vida e a felicidade. Aqui mais uma vez a educação é instrumento de mudança em prover oportunidades iguais e inclusão social. Essas questões vêm sendo estudadas na ABQ pelos acadêmicos Vivaldo Antonio Fernandes Russo e Ettore Bresciani Filho.

Na verdade, é preciso mudar a cultura do nosso povo. A cultura trata do jeito como as coisas são feitas ou o jeito brasileiro. É possível mudar uma cultura? Sim, mas demanda tempo. Requer práticas novas, mas que sejam adotadas pelas pessoas, com consciência de seus benefícios e clareza do que é esperado. Quem não se lembra dos cintos de segurança? Impostos via legislação e punição no início, foi se tornando hábito pelo nível de consciência e práticas que demonstravam a sua utilidade.  Podemos conseguir essa mudança de cultura com uma grade curricular adequada desde a educação infantil até às universidades. Por grade curricular adequada entenda-se, a gradativa infusão do conhecimento, do saber, da ciência, sem esquecer a fundamental necessidade de uma alfabetização correta e do letramento, que é a completa utilização dos conceitos da alfabetização. Mais, essa grade curricular precisa contemplar temas que promovam os valores de amor à pátria, o respeito às leis, a honestidade e o total repúdio à corrupção, o respeito à família, às autoridades e aos procedimentos estabelecidos. Ou seja, precisamos formar cidadãos sérios, que tenham orgulho do que fazem e trabalhem para o seu país e para a comunidade onde estão inseridos.

O jornal O Estado de São Paulo apresenta na sua coluna de Notas & Informações de 10 de agosto de 2020 o seguinte texto: “Há no país uma enorme carência de educação cívica, que prepare os cidadãos não apenas para entender os limites do poder, o funcionamento das instituições e o espírito da Constituição, mas também para participar do debate político em busca de compatibilidades e de consensos – enfim, do interesse comum”.

Essa mudança de cultura não será obtida em curto espaço de tempo. Serão necessários muitos anos para que se consiga um estágio adequado. Com determinação e perseverança a mudança poderá ser feita, mas é fundamental que queiramos fazê-la.

Essa nova cultura vai contribuir para um Brasil melhor, mais sério, mais honesto, mais produtivo. Ela vai afetar não só os trabalhadores, mas os nossos novos políticos, empresários, e toda a população.

Por fim, não podemos esquecer que a produtividade está diretamente correlacionada com a eficiência e a eficácia. Produtividade significa fazer a coisa certa (eficácia) com o melhor uso dos recursos (eficiência). Segundo o Presidente da ABQ, acadêmico Eduardo Guaragna, uma gestão competente está em “Fazer certo de forma eficiente a coisa certa”. Isso envolve processos, pessoas, recursos, o cliente e demais partes interessadas.

ATUAÇÃO DA ABQ

Com relação à mudança de cultura apresentada na conclusão deste trabalho, a ABQ pode contribuir no que se refere a desenvolver a cultura da qualidade no país. A qualidade como valor de uma sociedade só será adotada se houver nível de educação que permita a sua compreensão. Da mesma forma a produtividade.

Considerando o Capital Humano e Social da ABQ pelas suas relações e nível de conhecimento dos acadêmicos, podemos atuar nas seguintes frentes:

Nos seminários, lives, artigos e trabalhos desenvolvidos pela ABQ contemplar temas que conscientizem o Governo e a sociedade para essa mudança de cultura sugerida, onde a educação é a chave da mudança:

  1. Elaborar um Manifesto para o Ministério da Educação no sentido de mostrar a importância da educação para o desenvolvimento econômico e social, pela sua atuação na formação de lideranças, desenvolvimento da tecnologia e inovações, na produtividade e ser uma preciosa porta de inclusão social e dignificação do ser humano.
  2. Construir relações de parceria com outras instituições voltadas à qualidade e gestão no sentido de reforçar a ressonância das ações de mudança em prol da melhoria da educação, da qualidade, produtividade e competitividade.
  3. Criar um think tank para aprofundar o conhecimento do tema produtividade no Brasil e sua evolução, podendo orientar tomadores de decisão a respeito.

PARTE II – TEXTOS ELABORADOS

Conceituação de Produtividade

Caio Márcio Becker Soares, Claudius D’Artagnan Cunha de Barros, Eduardo Vieira da Costa Guaragna

  1. Introdução

Hoje se fala muito em desenvolvimento econômico, mas somente a partir da segunda metade do sec. XVIII que a humanidade passou a experimentar o que é hoje denominado de crescimento econômico. Isso foi decorrente do fator transformador que foi o início das inovações que mudaria a vida das pessoas. E somente na segunda metade do sec. XX o crescimento econômico tornou-se objeto de estudo sistemático, onde foi identificado que a palavra-chave por trás do crescimento econômico era a produtividade. No longo prazo, ganhos de produtividade constituem a principal variável explicativa do ritmo de crescimento de determinada economia ou região.

O crescimento econômico do Brasil – e de outros países – depende muito da produtividade, ou seja, de quanto nosso país consegue produzir utilizando seus recursos (máquinas, trabalhadores, recursos de capital …). Nos últimos 30 anos a produtividade cresceu muito pouco, levando a baixo crescimento econômico e a menor crescimento da renda do trabalhador.

No período de 1950-1980 a média de crescimento da produtividade foi de 4,2% ao ano contra 0,6% ao ano no período 1980-2016 (medido PIB/hora trabalhada).

Por sua vez o entendimento dos fatores que impactam a produtividade não é algo simples, pela sua característica sistêmica, requerendo diversas óticas e recortes que permitam melhor entender os processos envolvidos.

O objetivo deste trabalho é entender os fatores que compõem a produtividade, seus desdobramentos nas organizações e fornecer orientações que sejam uteis às organizações e a formação de políticas facilitadoras ao desenvolvimento da produtividade no país.

  1. O que é produtividade.

A Comunidade Econômica Europeia definiu formalmente a produtividade como sendo “o quociente obtido pela divisão do produzido por um dos fatores de produção”.

O produzido são os bens, produtos ou serviços realizados. Os fatores de produção são as pessoas, as máquinas, os materiais e outros elementos que participam na produção.

Assim, dividindo a quantidade produzida pelo número de pessoas utilizadas nesta produção temos a produtividade das pessoas. Podemos assim calcular o número de peças produzidas por cada pessoa, uma indicação da produtividade dos nossos empregados. De forma similar, dividindo a produção pela quantidade de matéria prima utilizada temos a produtividade do material, e assim por diante.

Para uma visão prática e objetiva da produtividade ver o vídeo:  https://youtu.be/RBf1qL0gku8

Em seguida, trechos de um artigo assinado pelos empresários Dan Iochpe, Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski. Esse artigo foi publicado no Jornal “O Estado de S. Paulo” no dia 24 de julho de 2020 com o sugestivo e oportuno título “É tempo de decisão”. “Não há mágica sobre o que é necessário fazer. Desde 1988, quando foi promulgada a Constituição, ou 1994, ano da reforma monetária que criou o real, sabe-se que o crescimento econômico depende do aumento da produtividade, que tem sido baixíssima no Brasil. Ela decorre de educação de qualidade, da existência de um sistema robusto de ciência, tecnologia e inovação, da sofisticação do processo produtivo e, sobretudo, da forma como as empresas investem.” “O modo como as empresas organizam o seu processo produtivo, qualquer que seja sua atividade – industrial, agrícola, serviços -, faz com que a riqueza de um país cresça com maior ou menor intensidade e com benefícios mais ou menos distribuídos socialmente. Quanto mais eficiente for a alocação do que os economistas chamam de fatores de produção, maior será a quantidade produzida por unidade de capital e por trabalhador. É isso que determina o ritmo do crescimento econômico e do emprego.”

De forma geral, a produtividade é uma relação entre uma entrada e uma saída. Quanto maior a saída e menor a entrada, maior a produtividade. O tempo também é um fator fundamental na produtividade. Quanto menor o tempo para a geração de um produto ou para a realização de um serviço, maior a produtividade.

Ou seja, a produtividade está diretamente correlacionada com a eficiência e a eficácia. Produtividade significa fazer a coisa certa (eficácia) com o melhor uso dos recursos (eficiência).

Como estamos falando de quantidades produzidas e de fatores de produção, os processos da empresa ficam em evidência. O processo é aquele conjunto de atividades pré-estabelecidas e que executadas numa determinada sequencia vão nos dar um resultado esperado, necessário ou desejado. Para que se consiga produtividade no processo é muito importante que se conheça com profundidade o processo e que se estabeleça a maneira mais adequada de executá-lo. Dessa forma conseguimos a produtividade nos nossos processos. É uma questão de fazer bem feito, com capricho, na primeira vez.

Outro cuidado: na ânsia de elevar a produtividade, a qualidade do produto ou do serviço pode ficar comprometida. Não podemos fazer rápido e mal feito, como diz o ditado.

A qualidade e a produtividade andam juntas e devem ser pontos de atenção nos processos, sempre.

Por fim, produtividade é fazer as coisas certas. Isso tem a ver em fazer as coisas que agregam valor para a sociedade e a uma ou mais parte interessada.

“Não há nada tão inútil quanto fazer com grande eficiência algo que não deveria ser feito”, já dizia Peter Drucker.

Para isso precisamos de seriedade, disciplina, comprometimento e competência. Quando aceitamos e trabalhamos esses fatores nós seremos produtivos, nossas empresas serão produtivas e o Brasil será um país produtivo. Na verdade, é isso que precisamos neste momento.

  1. Elementos que compõem a produtividade

No âmbito da economia a produtividade de um país pode ser avaliada segundo duas métricas: a Produtividade do Trabalho e a Produtividade Total dos Fatores – PTF.

A Produtividade do Trabalho normalmente é medida pelo PIB/hora trabalhada ou por trabalhador e se compõe por 3 fatores: Educação (estoque de capital humano), Aprofundamento do Capital (razão capital/trabalhador) e Produtividade Total dos Fatores. O estoque de capital humano refere-se à educação, incluindo o treinamento on the job, ou seja, a prontidão para atuar nos processos e desenvolver inovações. O capital por trabalhador refere-se a máquinas, estruturas etc. que são disponibilizadas para execução das atividades, processos, incluindo inovações. O crescimento econômico induzido pela inovação nos últimos 100-150 anos levou as pessoas buscarem qualificação (educação) nos maiores centros e as empresas elevarem o capital investido (capital/trabalhador).

A PTF é a parcela de crescimento da economia não explicada pela contribuição do trabalho (capital humano) e do capital (capital/trabalhador) e pode ser entendida pelo seu desdobramento em dois grupos:

1- Determinantes intranegócios/firmas

2- Determinantes ambientais (macroeconômicos)

No que se refere ao grupo 1, as pesquisas identificaram os seguintes drivers:

  1. a) prática/talento gerencial/administrativo;
  2. b) qualidade da mão de obra e insumos;
  3. c) uso de tecnologias de informação e intensidade das atividades de pesquisa e desenvolvimento;
  4. d)learning-by-doing, ou seja, aprendizado na prática;
  5. e) inovação de produtos;
  6. f) decisões relacionadas a organização produtiva das firmas (mais ou menos verticais etc.).

São notadamente fatores internos às organizações e que têm relação com a forma de a organização conduzir seu negócio e sua gestão.

Quanto aos determinantes do grupo 2, destacam-se:

  1. a) externalidades (infraestrutura, por exemplo);
  2. b) competição;
  3. c) desregulamentação ou regulação apropriada ao mercado em questão;
  4. d) flexibilidade do mercado de insumos, incluindo o mercado de trabalho.

São notadamente aspectos relacionados ao ambiente externo às organizações, muitas das vezes influenciado por políticas de governo.

Existem vários indicadores que podem mostrar a evolução da produtividade, tanto do trabalho como a PTF e que fazem parte do WEF, (World Economic Forum), no GCR – Global Competitiveness Report,

1) Índice de Qualidade da Infraestrutura Geral

2) Índice de Qualidade do Sistema Educacional

3) Peso da regulamentação governamental

4) Número de dias para iniciar um novo negócio

5) Garantida no cumprimento das leis (rule-of-law)

6) Índice de flexibilidade na determinação dos salários

7) Tarifa mediana de importação de bens

8) Índice de PMR (Product Marketing Regulation) da OCDE

9) Taxa de poupança doméstica em % do PIB

10) Gastos com P&D das empresas

A saga da nossa improdutividade

Claudio de Moura Castro

Esse ensaio examina as raízes da improdutividade na economia brasileira, justificando também porque devemos nos preocupar com isso.

Não temos uma economia globalmente improdutiva. Há zonas de modernidade, bastante competitivas, diante de qualquer concorrente. E há os clássicos impedimentos, batizados com a expressão “Custo Brasil”. Por fim, sobrevive um ‘Brasil Velho’, enredado com os valores herdados de sociedades muito primitivas, para quem a própria palavra produtividade não diz nada.

 

De que depende a qualidade de vida de uma sociedade?

Como pano de fundo de tais discussões está a mais do que justificada preocupação com a qualidade de vida da nossa sociedade. Que outro problema econômico pode se sobrepor a este? De fato, inflação, déficits ou crises são problemas críticos, justamente, porque afetam a qualidade de vida da população.

Comecemos com ideias simples, mas que se mostram relevantes para entender a questão.

PIB, PIB per capita e Investimento

O PIB é a soma de tudo que os habitantes do país ganham (ou produzem, o que dá na mesma). Para alguns fins, este é um conceito importante. E com o nono PIB do mundo, o Brasil não faz feio.

Mas para se ter uma ideia da qualidade de vida da sociedade, necessitamos fazer uma conta de divisão. É preciso dividir o PIB pelo número de pessoas que vão consumir o que foi produzido. Como se sabe, trata-se do PIB per capita. Em última análise, é ele que mede a qualidade de vida de um povo. É o que cabe a cada um (é mais complicado do que isso, pois como se distribui essa renda faz muita diferença, mas para a presente discussão, podemos simplificar).

A Índia tem o quinto maior PIB do mundo, mas o nível de conforto do povo é melhor capturado pelo PIB per capita que está em 144º lugar. Já Cingapura, modestamente em 34º lugar em PIB, tem o segundo maior PIB per capita. É claro, a diferença em qualidade de vida e em padrões de consumo entre esses dois países é captado pelo que cabe a cada cidadão, o per capita.

Entendidos esses conceitos, passamos a perguntar de que depende a magnitude do PIB per capita.

Não se trata aqui de mergulhar nos meandros da teoria econômica. Sendo assim, fiquemos com uma explicação bem tosca. No fundo, é uma grande simplificação, mas que cumpre o seu papel no presente ensaio.

Podemos dizer que avança o PIB (i) quando se investe e (ii) quando a força de trabalho se torna mais produtiva.

A ideia de investimento e poupança vem dos primórdios da Teoria Econômica, lá pelo século XVIII. Na verdade, é uma ideia que faz sentido até na economia de um trabalhador só, como nas aventuras de Robinson Crusoé. Trabalhando a terra com pedaços de pau improvisados, produz pouco. Contudo, ele se dá conta de que pode desviar parte do seu tempo para construir um arado. De posse desta ferramenta mais poderosa, sua produção aumenta. Aquilo que deixou de fazer para dedicar-se à sua elaboração é a sua Poupança. Ou seja, em vez de descansar, plantar ou fazer alguma outra atividade, ele preparou uma ferramenta nova. E o arado chamamos de Investimento.

O mesmo em qualquer economia. Quando o marceneiro poupa seu dinheiro para comprar uma máquina de maior performance, ele está investindo, pois espera que com ela vá produzir mais. Quando a Amazon.com deixa de distribuir lucros e investe para expandir sua rede de computadores, faz o mesmo. Ao deixar de consumir, está poupando. E esta poupança vira investimento em ativos que aumentam a sua produção.

Se é assim, faz todo sentido pensar que um país cresce rápido quando muito se investe nele. E vice-versa, fica estagnado quando consome quase tudo que foi produzido. Se o empresário decide expandir a fábrica, sua produção irá aumentar no futuro. Mas se prefere usar seus proventos para comprar um Lamborghini, poderá obter muito prazer com o carro, mas sua produção permanecerá estacionada. É o conjunto de pequenas e grandes decisões de poupar e investir que leva ao crescimento. E vice-versa à estagnação.

Todavia, com os altos e baixos da política e as sucessivas trapalhadas na gestão da economia, nossos empresários se retraíram bastante. Empreender sempre terá um risco, mas se este cresce, mais empreendedores desistirão de investir. Ou seja, se as atitudes são temerosas, fica parada a economia.

Além dos empresários, o governo tem sempre uma atribuição de investir parte do seu orçamento, para entrar em áreas que considera inapropriada à iniciativa privada ou para reforçar o crescimento do país. Infelizmente, na última década, o investimento público caiu muito. O governo passou a gastar mais com ele próprio, aumentaram de muito os seus quadros de pessoal e se expandiram os gastos com intenção social – na verdade, um grande volume desses gastos subsidiam grupos muito acima da linha da pobreza.

Sendo assim, a velha equação do crescimento, lá dos tempos de Adam Smith, nos traz uma notícia ruim. Quando se investe pouco, o país cresce pouco. É o que vem acontecendo.

A mágica da produtividade

Diante desse impasse, há a outra forma de aumentar o PIB. Como sugerido, é aperfeiçoar o processo produtivo, de tal maneira a permitir que a mesma força de trabalho com o mesmo capital gere um produto maior.

Esse conceito é conhecido como Produtividade do Trabalho. Em termos muito simples, é o produto gerado pela força de trabalho em um dado intervalo de tempo definido. Pode ser hora, dia ou ano. Dá na mesma, desde que todos usem a mesma unidade de tempo.

Se eu descascava um quilo de batatas em uma hora e consegui passar a descascar um quilo e meio, posso dizer que aumentei a minha produtividade (no caso, em 50%). Também ganhou produtividade uma linha de montagem de autos que passa a produzir 57 carros por dia, em vez dos 45 de antes. Se destes carros, 8 não passavam na inspeção de qualidade e agora apenas 5 são reprovados, podemos também dizer que a produtividade da linha aumentou. Se o exame médico para renovação de carteira de habilitação passa a ser feito em 15 minutos, em vez de 30 (sem queda de qualidade), novamente, estamos diante de aumentos de produtividade, neste caso, nos serviços.

Em paralelo à ideia de Produtividade do Trabalho, podemos igualmente pensar na Produtividade do Capital, concretamente, das máquinas. Quanto mais produzir o equipamento, por unidade de tempo, maior receita gera para o seu proprietário.

Na prática, quando a produtividade aumenta, nem sempre é possível dizer se foi pela excelência superior do novo equipamento ou pelo empenho e competência da força de trabalho. Mas no geral, não faz tanta diferença assim.  Por exemplo, o chefe de um alto-forno trabalha de olho no “coke-ratio”, isto é, quantos metros cúbicos de carvão consome para produzir uma tonelada de ferro-gusa. Sabe-se que, com pequenos ajustes nos algaravizes e na marcha do forno, é possível reduzir à metade o consumo de carvão, comparado com o rendimento inicial do equipamento. Aumentou a produtividade, mas não sabemos bem se foram os melhoramentos no processo produtivo ou a maior competência da equipe ao caprichar na marcha do alto-forno.

Mas, de momento, não importa a mágica realizada, o que conta é que, no mesmo intervalo de tempo, algo se fez, levando a um aumento de produto ou da receita financeira da sua venda. Portanto, trata-se de um conceito abrangendo tudo que pode acontecer na empresa. É uma relação entre o que sai do processo produtivo e o tempo transcorrido.

Vale a pena notar a diferença entre o investimento e o aumento da produtividade. No primeiro caso, falamos de aumentar o cabedal de máquinas ou mesmo a preparação dos seus operadores (nesse segundo caso, trata-se do Capital Humano). Inevitavelmente, isso se faz a um custo. E como esperado, mais capital gera mais produto – embora em períodos de crise ou conturbação política isso possa não acontecer.

Quando falamos de aumento de produtividade, olimpicamente, podemos até ignorar tudo que possa explicá-la, sejam mais máquinas, mais eficiência ou novas tecnologias. O que interessa é ser possível ganhar produção. Esse é o grande atrativo da batalha para aumentá-la. Em outras palavras é possível conseguir resultados a custo zero ou próximo disso.

Um exemplo centenário ilustra o que tentamos dizer. As cidades industriais inglesas tinham infindáveis conjuntos de casas, todas iguais. Mais ainda, permaneceram iguais por muitas décadas e o mesmo se deu com o processo produtivo. Contudo, um pesquisador descobriu que, com a passagem do tempo, as casas iam ficando mais baratas. Ou seja, a produtividade dos construtores não parava de aumentar. Menos perda de materiais, menos tempo para assentar os tijolos?  No fundo, é a prática que aumenta a produtividade.

Passemos a um exemplo da década de sessenta. Uma usina de Minas Gerais recebeu a encomenda de fundir em aço os virabrequins do Simca Chambord, cuja produção estava começando. Tratando-se de uma peça difícil, durante muitos meses, as perdas estavam acima de 80%. Na França eram de apenas 10%. Com um chefe curioso e uma equipe dedicada, a fundição de aço trabalhou arduamente para aperfeiçoar o processo. Ao cabo de um par de anos, e muita experimentação, as perdas haviam caído para um nível inferior ao da França. Balanço: mesma tecnologia, mesma equipe, nada mudou que um observador externo pudesse notar. Mas mudaram centenas de detalhes, quase imperceptíveis. Cada um deles contribui para reduzir as perdas.

Ambos os exemplos ilustram os processos típicos que levam a ganhos progressivos de produtividade.

Por tudo que nos dizem os antigos saberes e a nova Teoria Cognitiva, a chave do aprendizado é a repetição. Aumentar a produtividade? Basta continuar insistindo. Mas é um pouco mais complicado. Se repetir bastasse, a produtividade estaria sempre aumentando, por todas as partes, o que não acontece.

É preciso saber como buscar esses aumentos de eficiência, monitorando a repetição, analisando suas imperfeições e investindo no seu aperfeiçoamento. Na nossa indústria moderna, isso é feito regularmente. Testemunho é o crescimento das Universidades Corporativas, tal como demonstrado pelas pesquisas de M. Eboli, da FIA/USP.

Contudo, é preciso que se queira aumentar a produtividade, o que pode não ser o caso nas empresas atrasadas.

A otimização dos recursos reais

Maurício Roscoe

A boa utilização de recursos deveria ser um dos principais objetivos de todos nós, pois é através dela que poderemos atingir melhor qualidade de vida e felicidade para todas as pessoas, bem como a evolução cultural da sociedade em um ambiente ecologicamente saudável e harmonioso. Um grande passo evolutivo estará sendo dado à medida que as pessoas se aperceberem que (1o) colaboração e harmonia, ao invés de competição e atritos intergrupais, são a chave para um futuro melhor e que, (2o) apesar dos recursos monetários serem uma importante ferramenta econômica, é com recursos reais que fazemos as coisas. Quando atingirmos esta mudança de paradigma, estaremos mais próximos de alcançar um mundo melhor, mais rico, e com melhor distribuição de renda.

Colaboração e harmonia, ao invés de competição e atritos intergrupais, são a chave para um futuro melhor.

O Brasil vive hoje um momento bastante delicado e vemos uma tendência ao crescimento do número e intensidade de atritos intergrupais. No entanto, como a metodologia da qualidade nos ensina, ao invés de tentar achar “culpados”, deveríamos focar na busca das causas fundamentais dos problemas de nosso país. Precisamos encontrar novas e melhores soluções, mais inteligentes e evoluídas, para a gestão das questões sociais, políticas e econômicas, para criarmos uma nova civilização digna desse nome.

E esse é um desafio não apenas para os governos, mas para toda a sociedade. Assim como, segundo Clemenceau, a guerra é uma coisa muito complexa para ser deixada só na mão dos militares, a política, a economia, a infraestrutura, a ecologia, e as questões sociais são questões por demais importantes para serem delegadas apenas aos políticos, economistas, engenheiros, ecologistas e sociólogos. Dificilmente os especialistas são capazes de resolverem sozinhos os problemas macro, nos quais diversos aspectos são interligados em sistemas complexos. Cabe a toda a sociedade e, assim, a cada um de nós, trabalharmos em harmonia para a solução dos problemas que nos afligem.

Neste ponto, acredito que a metodologia da Qualidade, que tanto auxiliou no desenvolvimento tecnológico, pode ser adaptada a esse novo desafio: o de criar um país mais inteligente, mais eficiente, ecologicamente sustentável, e, também, mais fraterno e mais feliz. O novo paradigma precisa da visão global e sistêmica que a Qualidade pode trazer. A metodologia da Qualidade nos ensina a utilizar melhor a motivação, a criatividade e a inteligência de todos os colaboradores, num jogo de ganha-ganha, para maior produtividade e qualidade dos produtos e serviços. Utilizando grupos de trabalho multidisciplinares, focados no objetivo comum de atuar nos problemas fundamentais de nossa sociedade e buscar o desenvolvimento brasileiro, podemos transformar nosso país.

Já realizamos muito, no passado: Juscelino Kubitschek, com sua intuição de estadista utilizou-se de equipes qualificadas, muitas multidisciplinares. Cuidou da infraestrutura de transportes, principalmente estradas de rodagem e estradas de ferro. Dedicou atenção especial à energia, com o planejamento e execução de barragens e linhas de transmissão. Cuidou da industrialização, principalmente através da Indústria automobilística. E principalmente, numa quebra de paradigmas, construiu Brasília, o que permitiu ao Brasil enxergar e, posteriormente, conquistar com outros estadistas as riquezas do Brasil Central. Tudo num clima de colaboração entre governo, empresas e sociedade.

Da intuição perceptiva de cada um de nós depende a solução dos problemas que estamos vivendo e que pedem solução. E não podemos mais ter o posicionamento infantil de achar que apenas um bom líder nos salvará. Cada qual pode evoluir para esse “egoísmo inteligente” de perceber que, se o país for bem, todos teremos menos riscos e mais oportunidades. Sim, podemos ter essa visão bifocal de continuar buscando os nossos interesses, mas enxergando, também, a importância da contribuição de cada um para a evolução da sociedade.

É preciso focar na busca das causas fundamentais dos problemas de nosso país. E, baseado nesta análise, mobilizar recursos para realizar tais prioridades.

É com recursos reais que fazemos as coisas

Sempre que se fala em recursos há uma grande confusão entre recursos reais e monetários. Para esclarecer este ponto, imaginem que tivéssemos à nossa frente o desafio de colonizar um novo planeta. Logicamente, não adiantaria absolutamente nada se enviássemos para lá apenas milhares de espaçonaves cheias de dinheiro. Isto porque o dinheiro, nada mais é do que um instrumento para facilitar transações e, consequentemente, a alocação dos recursos reais. Mas, é fundamental que tenhamos sempre em mente que fazemos as coisas é com recursos reais.

Recursos reais são a terra e todos os recursos naturais: sol, água, a capacidade de gerar energia, os animais, os vegetais, os minerais, toda a biosfera. São também as fábricas, os equipamentos e a infraestrutura (o saneamento básico, os sistemas de abastecimento de energia, de transporte e de logística, de comunicação, etc.). São ainda as pessoas, os conhecimentos, a tecnologia e as informações. A capacidade de observar, de dialogar, de bem ouvir, de exercer a diplomacia, de entender, planejar, motivar e executar também são recursos reais. Da mesma forma, o são as ciências, a capacidade de pesquisar, de refletir, de bem gerenciar.

Deve ser monopólio do governo de cada país emitir moeda e regulamentar o crédito de modo equilibrado, com o objetivo de otimizar a mobilização dos recursos reais para realizar bem as coisas que precisam ser feitas, focando as prioridades do país, de suas regiões e municípios. Note-se que recursos monetários e creditícios são importantíssimos para facilitar o dinamismo e priorizar a mobilização dos recursos reais, com equilíbrio, ou seja: evitando o superaquecimento e a ociosidade desses recursos reais. A ociosidade, ou subutilização, de recursos reais (especialmente do mais nobre deles que são as pessoas e sua capacidade de aprender e de fazer), ao lado de tantas coisas por fazer, é um desperdício enorme. No Brasil de hoje, 14 milhões de desempregados representam desperdício de, no mínimo, 600 bilhões de reais ao ano. Isto sem levar em conta o subemprego e o estrangulamento do mercado interno decorrente da redução de despesas por parte destas pessoas e de suas famílias, nem tão pouco o aumento na despesa do governo com a saúde de tais famílias.

Cabe aos governos federal, estaduais e municipais planejar seus orçamentos de modo a alocar verbas e recursos a cada um dos projetos prioritários. E, sempre que houver recursos reais ociosos, como o caso de desemprego em massa, o governo pode, e deve, emitir moeda e regulamentar o crédito com o objetivo de atuar nos problemas fundamentais do país.

Dentro da ideia de otimização dos recursos reais, uma coisa importante é a delegação maior de poderes aos municípios, para poderem realizar seus projetos prioritários. Como temos visto, a excessiva concentração em Brasília não tem ajudado muito a otimização de recursos. O sistema de muita concentração infantiliza a sociedade. Brasília deve se concentrar nos projetos macro, que impactam diferentes estados e/ou o país como um todo (ex.: recursos hídricos, sistema viário, rede de navegação, etc.).

Nos anos 50, José Maria Alkmim, o então ministro da Fazenda do presidente Juscelino Kubitschek, emitiu títulos de crédito (que na época foram chamados popularmente de “alkimetas”). As alkimetas foram usadas pelo governo para pagar as obras de infraestrutura. As empresas que as recebiam podiam pagar fornecedores com as mesmas e assim sucessivamente. Além de servir como moeda em transações comerciais, as alkimetas podiam ser usadas para pagar impostos. Na época, esta solução possibilitou um grande avanço na economia brasileira. O mesmo artifício poderia ser empregado hoje para sairmos da crise econômica em que o país se encontra.

Ao observarmos os dados comparativos do PIB per capita da Coreia do Sul e do Brasil nas últimas décadas, fica claro como planos de desenvolvimento bem definidos e consistentes podem transformar um país. A partir de 1962, a Coreia do Sul passou por uma série de planos quinquenais visando o desenvolvimento econômico do país. Focando em educação, pesquisa e tecnologia, em menos de meio século, a Coreia do Sul passou, de um país pobre e agrícola, a um dos países mais ricos e industrializados do mundo.

Há quem alegue que tal salto de desenvolvimento só foi possível graças ao regime ditatorial. No entanto, acredito que se a sociedade brasileira se mobilizar, através de grupos multidisciplinares, com o objetivo comum de solucionar os principais problemas que nos afetam e buscar o desenvolvimento de nosso país, podemos obter um crescimento ainda maior do que o obtido pelos sul-coreanos.

O Brasil se encontra em um momento muito delicado de sua história. A menos que governo e sociedade se mobilizem de modo a otimizar a utilização de recursos reais em prol do desenvolvimento do país, corremos o risco de caminharmos para novas décadas perdidas. Utilizando grupos de trabalho multidisciplinares focados no objetivo comum de atuar nas causas fundamentais dos problemas de nosso país e buscar o desenvolvimento brasileiro, podemos transformar o Brasil no “país do futuro”, com o qual todos nós sonhamos.

A improdutividade do Brasil Velho

Cláudio de Moura Castro

Estamos diante de um enigma. Por que a nossa produtividade é baixa?

Não é difícil decifrar. A resposta está no passado. Não nos damos conta de como era atrasado o Brasil de outrora. Entramos no século 20 com mais de 90% de analfabetismo. Tudo era primitivo e precário. Até o final do século 19, chegava-se à província mais rica do Brasil, Minas Gerais, ao cabo de muitos dias de viagem em lombo de burro, por caminhos péssimos e penando com a total ausência de hospedarias ou restaurantes.

Importávamos manteiga da Dinamarca, sapatos da Inglaterra, banha de porco dos Estados Unidos e palitos de Portugal.

Na capital da República, nos anos cinquenta, faltava água, faltava luz, faltava manteiga, faltavam ovos e sabe-se lá o que mais.

Parte do problema é que somos descendentes de sociedades pouco afeitas à tecnologia. Na segunda década do século 19, o geólogo W. Eschwege passou um bom tempo em Ouro Preto (Então cidade de Vila Rica). Comentando suas conversas com mineradores de ouro, registra seu espanto diante do nulo interesse deles em adotar técnicas mais produtivas.

Para resumir, começamos em níveis baixíssimos. Sendo assim, não se poderiam esperar padrões melhores de produtividade. Mas ao longo dos anos, o Brasil melhorou e a produtividade cresceu.

Porém, não o bastante, por culpa do peso do Brasil Velho no PIB. Em outras palavras, convivem no país uma economia moderna e que até pode ser pujante, com uma herança arcaica, na forma de um aparato econômico condenado à improdutividade. O capital físico precário é a consequência de uma visão de mundo atrasada.

Gilberto Freire dizia que, até a vinda da Família Real, no início do século XIX, o Brasil não era um país ocidental. Predominavam as influências indígenas e africanas. Desencadeia-se, desde então, uma progressiva aproximação à Cultura Ocidental. Esse processo ainda está incompleto no presente.

É possível prosperidade sem modernidade?

Há os que sonham com uma vida mais simples, despojada, impondo menos sacrifício à força de trabalho. Com muito menos esforço se conseguiria o nível de consumo necessário para viver com dignidade. Mas essa visão não resiste à realidade do mundo presente.

Para o bem ou para o mal, a sociedade brasileira valoriza muito os bens materiais. Ou seja, esposa gostos consumistas. Todos querem ter tudo. Portanto, a máquina econômica precisa rodar com relativa eficiência, para que produza o que querem os consumidores, bem como a renda para satisfazer aos sonhos de consumo.

Na teoria, seria possível abrir mão dos confortos e da qualidade de vida oferecidos pelo gigantesco leque de produtos e serviços que dispomos hoje. De fato, Butão caminhou nesta direção. Mas é uma mudança de rumo totalmente irrealista e na contramão do que almeja grande parte da sociedade. Quem vai abrir mão do seu celular, geladeira e televisão? Ou dos antibióticos?

Quaisquer que sejam os méritos filosóficos ou práticos dos confortos modernos, produzi-los têm suas exigências. Não foi por acaso que os países gestados na Cultura Ocidental, ao mesmo tempo, deram um salto nos seus padrões de consumo e desenvolveram os hábitos, atitudes e valores que têm. Por tentativa e erro, as pessoas foram sendo ajustadas para fazer face aos ritmos e estilos dos processos produtivos contemporâneos. E o maior salto foi diante das exigências da Revolução Industrial.

Voltando ao tema, em termos bem singelos, para produzir o que a sociedade quer consumir é necessário que os participantes do setor produtivo exibam valores, hábitos e atitudes muito particulares e moldados para atender às organizações produtivas existentes, seja no engenho de cana, na clássica Revolução Industrial ou na Manufatura 4.0.

Ao falar da ética protestante e do desenvolvimento do capitalismo, Max Weber inaugura uma linha de pensamento, buscando explicitar essa associação. Na década de setenta, A. Inkeles oferece a uma caracterização mais completa desses valores. Torna-se comum e corrente a palavra Modernidade.

Pesquisas bem conduzidas mostraram que um sistema fabril eficiente está sempre associado a esta modernidade. Nas sociedades que não a exibem, escasseiam os bons resultados na operação do que consideramos uma indústria moderna e eficiente.

Estudos comparando a eficiência das indústrias têxteis de vários países, na entrada do século 20, demonstram justamente isso. Apesar de usar os mesmos teares que as fábricas inglesas e dispor de mão de obra mais abundante, a produtividade das fábricas indianas sempre foi bastante inferior. Segundo os autores, os operários daquele país não exibiam os traços dos ingleses. Não se comportavam de forma equivalente e não valorizavam os hábitos e valores embarcados na Revolução Industrial.

A discussão acima serve de prefácio para o ponto mais central do presente ensaio. Já se escreveram livros com títulos de Brasil: Terra dos Contrastes ou Os Dois Brasis. De fato, coexiste um Brasil Novo e um Brasil Velho.

Felizmente, aos poucos, o Brasil Velho perde espaço. Mas ainda é muito substancial. E como tentaremos demonstrar, os problemas de baixa produtividade estão associados ao Brasil Velho. É lá que reside o problema.

Criar mais um curso de Manufatura 4.0 para a Embraer ou Gerdau é uma decisão importante e essencial para elas, mas periférica, diante do desafio da nossa baixa produtividade que está alhures. E de resto, estas próprias empresas se encarregam de tais movimentos.

Nosso desafio é a lastimável improdutividade do aparato produtivo que opera sob o jugo do Brasil Velho, estampado nos valores desse segmento da nossa sociedade. E não será patrocinando cursos de Internet das Coisas que aliviaremos o problema. Aliás, não parece que cursos sejam a resposta apropriada para lidar com esse lado velho da sociedade brasileira.

Retomando aos temas de Inkeles, viver e trabalhar em uma sociedade contemporânea e produtiva requer valores congruentes com suas exigências. Esses valores da modernidade não são detalhes ou complementos que bonificam a produtividade. Pelo contrário, são da essência do seu funcionamento. Nas nossas empresas velhas, as preocupações explícitas com produtividade nem sequer chegam a entrar em cena, pois andam na contramão dos hábitos e valores compartilhados nesse caldo de cultura arcaico.

Não é qualquer sociedade que consegue operar organizações complexas, com produtos de alta complexidade, com muitos trabalhando e divisão do trabalho acentuada. Da mesma forma que uma engrenagem de uma máquina deve ser projetada para se encaixar em alguma outra, a mão de obra que opera as empresas tem que ser sob medida para a natureza dos processos produtivos. Cavar estradas na picareta e os velhos feitores são congruentes. Mas a preparação de uma matriz por um ferramenteiro requer dele um conjunto de valores e habilidades que não pertencem ao Brasil Velho.

No início da colonização portuguesa, os índios brasileiros não se encaixavam no sistema fabril dos engenhos de cana. Seu nomadismo, seus valores e sua visão de mundo eram incompatíveis com os ritmos e normas do que hoje consideramos como uma indústria deveras primitiva. De fato, os índios estavam mais ou menos no nível de organização social que tinham as civilizações andinas, há três ou quatro mil anos.

Essas populações brasileiras, compostas de indígenas locais e africanos, foram sendo progressivamente incorporadas em um Brasil que se modernizava. Não pairam dúvidas de que essa evolução de valores e atitudes é possível e ocorreu em bom ritmo. As boas firmas brasileiras são manejadas por pessoas cujos antepassados vinham desses grupos sociais.

Não obstante, essa incorporação é ainda um processo incompleto. Há uma gigantesca distância entre o operário da Embraer e o peão da obra mais próxima.  Vivem em mundos diferentes e seus valores levam a comportamentos distintos.

O que será esse atraso cultural?

Nosso Brasil Velho tem valores incompatíveis com aqueles requeridos para o progresso material oferecido pelas organizações contemporâneas. Nessa linha, faz sentido concluir que alguns desses valores, atitudes e aspirações são lesivos à materialização de nossas ambições. Seja como for, as diferenças culturais têm raízes profundas.

“Vão acabar com a Praça Onze?” Com esta frase, Herivelto Martins registra a decisão de acabar com a famosa Praça Onze, no Rio de Janeiro. Estava no caminho da Avenida Presidente Vargas, rasgada em 1945. Beatriz Coelho da Silva publicou o livro Negros e Judeus na Praça Onze (Editora Bookstar). Conta ela, no bairro viviam negros e judeus, ambos pobres, dividindo ruas e casas, sem dificuldades ou atritos. Comerciavam e serviam comida. Os negros faziam música.  De fato, ali nasceu o samba! Mas a diferença entre as duas culturas já se manifestava, embora compartilhassem da mesma pobreza. Segundo a autora, “na Praça Onze, havia seis jornais em ídiche e quatro instituições voluntárias judaicas: a Federação Sionista, o Grêmio Juvenil Kadima, a sinagoga Beith Iaakov, a Sociedade Beneficente das Damas Israelitas e o Centro Obreiro Morris Wintschevsky”.

Mais de meio século adiante, podemos presumir que os dois grupos sociais hajam tomado rumos muito distintos. Não pela cor da pele ou por alguma elusiva diferença de cromossomas, mas pelos valores e distintos graus de modernidade que já exibiam então, quando ambos eram pobres. Nos imigrantes judeus da Praça Onze, vemos a força do Capital Social, a valorização da educação e cultura e a tendência à participação política. Anos depois, cada grupo encontrou o seu caminho. Os judeus subiram na sociedade, ocupando posições confortáveis. Os negros pouco avançaram.

O episódio das “polacas” adiciona outro elemento à mesma saga. Chegaram ao Rio e a São Paulo, na virada do século 20. Eram judias pobres, maltratadas pelas crises europeias e pela falta de alimentos. Saíam da Polônia com a promessa de casamento, mas na verdade, chegavam como escravas brancas e viviam submetidas aos seus “cafetões”. Não era apenas a pobreza da Praça XI, mas também o status baixo, pela profissão exercida e pela limitação à sua liberdade.

Estudos sugerem uma trajetória parecida à dos judeus da Praça XI. Compraram imóveis e algumas ficaram ricas, passando a viver de aluguéis. Não por acaso, tinham também associações de ajuda mútua bastante ativas e bem organizadas. De fato, diante do impasse de não poderem ser enterradas nos cemitérios oficialmente católicos, construíram o seu próprio – o do Rio sobrevive em Inhaúma.

Portanto, dentro da nossa agenda de entender os obstáculos ao progresso, é imprescindível passar em revista e identificar aqueles valores que parecem intrinsecamente associados ao progresso, sendo mais fortes naquelas sociedades que mais avançaram.

A cultura (no sentido antropológico) da sociedade brasileira era bem distante daquela compartilhada, já em séculos pretéritos, pelos povos economicamente mais avançados, como os ingleses, holandeses, suíços e alemães.

Sobre o assunto dos valores, há uma ampla literatura. Talvez a obra mais representativa seja a de Alex Inkeles já citada (A. Inkeles ; D. Smith, Becoming Modern, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1974). Não apenas descreve as características da modernidade, mas usa pesquisas empíricas para medi-las e correlacionar seus resultados com riqueza, em sociedades reais.

Para Inkeles, “a construção de nações e instituições não passa de exercícios vazios, a não ser que as atitudes e capacidades do povo caminhem passo a passo com as outras dimensões do desenvolvimento. […] É impossível para um Estado entrar no século 20, se o seu povo continua a viver em épocas pretéritas” (Inkeles, 1974). Tal avanço é lento e penoso, embora alguns grupos dentro da sociedade estejam mais abertos para as mudanças. O autor se refere a nações africanas, mas é como se falasse do Brasil Velho.

Quando lançamos um olhar histórico, podemos identificar algumas sociedades que oferecem a qualidade de vida hoje considerada desejável por quase todos os brasileiros. E vice-versa, é possível arrolar aquelas incapazes de oferecer tais padrões para a grande maioria de seus próprios cidadãos. Portanto, queremos saber que dimensões e valores estão presentes nas primeiras e ausentes nas segundas. Quais desses atributos são endêmicos nas sociedades materialmente bem-sucedidas e quais prevalecem naquelas estancadas ou presas a níveis inaceitáveis de pobreza.

Para Inkeles, nas sociedades avançadas, estão “pessoas capazes de observar horários, cumprir regras abstratas, julgar em base de evidência objetiva e obedecer a autoridades legitimadas, não pela tradição ou religião, mas pela sua competência técnica. […] Os trabalhadores precisam aceitar uma divisão de trabalho elaborada e a necessidade de coordenar suas atividades com muitos outros. […] As recompensas são baseadas em critérios estritos de desempenho.”

A esse respeito, vale mencionar uma afirmativa forte, feita por Alexander Gerschenkron, respeitado historiador e professor de Harvard: “Industrial labor … is not abundant but extremely scarce in a backward country. Creation of an industrial labor force that really deserves this name is a most difficult and protracted process” (Inkeles, 1974).

Esta afirmativa não chamaria a atenção, não fora referir-se às dificuldades encontradas no curso da Revolução Industrial da Alemanha, nas últimas décadas do século 19. Nesse contexto, cita o escritor alemão Schultze-Gaevernitz que sonhava com os operários ingleses na sua terra: “o operário industrial inglês é o homem do futuro, […] nascido e educado para a máquina e que não podemos encontrar igual no passado”.

Estas citações mostram que o desafio não se refere apenas à transformação dos nossos caboclos em operários industriais, mas do mesmo desafio em qualquer sociedade agrária atrasada – como era também a Alemanha.

Em resumo, o sucesso das nações hoje avançadas está associado a certos valores, crenças e atitudes, anteriormente caracterizadas por Max Weber, no seu clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Mas como podemos culpar os peões desta obra, se ninguém está lhes mostrando o certo, seja no profissionalismo, seja nos valores? Em contraste, os que foram trabalhar fora se tornaram operários competentes e totalmente enquadrados nos valores da Modernidade.

A Construção Civil e o atraso

Cláudio de Moura Castro

Nesse texto retornamos aos valores da modernidade e perguntamos se estão presentes ou ausentes na construção de uma casa, próxima à Belo Horizonte. É como se fosse um teste empírico das ideias de Inkeles, mas aplicado em uma amostra de um.

Como já mencionado, nossa construção civil engloba os extremos da produtividade. Indústrias modernas operam com as tecnologias mais avançadas do mundo. Edifícios se erguem em pouco mais de uma semana. Tecnologias BIM dão um salto, bem além do CAD/CAM. Projetos arrojados se materializam, sem maiores dificuldades, incluindo barragens e pontes. Mas são relativamente poucas as empresas que se enquadram nesta categoria.

A maioria, em particular, aquelas médias e pequenas, operam com tecnologias e níveis de produtividade que se esperaria encontrar séculos atrás. Em uma discussão sobre improdutividade, essas empresas têm que ser o foco das nossas preocupações.

Poderíamos também incluir na presente análise um gigantesco segmento de pequenas e médias indústrias de outros setores, igualmente atrasadas. Porém, não iria modificar as conclusões a que chegaremos. Por isso, ficamos na indústria da construção civil, onde se concentram as empresas mais toscas e primitivas da economia.

Há pouco menos de mil anos, a construção civil era o setor de maior prestígio e onde se davam os grandes saltos tecnológicos. Na época das catedrais góticas, os pedreiros (ou maçons, em português arcaico), ao chegar de visita, eram recebidos pelos bispos locais. Os novos oficiais prestavam exames rigorosos e não poderiam exercer a profissão antes de passar por uma prova exigente, a construção de sua “obra prima” – que era posteriormente exibida nas sedes das corporações.

Suas técnicas inovadoras eram segredos bem guardados. Daí a criação da maçonaria, originalmente, uma sociedade secreta desses profissionais. Portanto, status, tecnologia avançada, normas rigorosas e organização detalhada eram elementos que não faltavam nessas guildas.

Esta volta à época Medieval pode ser confrontada com o que acontece hoje na construção civil. No seu segmento inferior, é um conglomerado caótico de empresas, biscateiros e terceirizados. Não devem lealdade nenhuma a qualquer organização. Operam na fronteira da lei – de um lado ou do outro. Não há quaisquer vestígios de profissionalismo na maioria dos operários e o domínio das técnicas é quase sempre inadequado. Diante das orgulhosas corporações medievais dos pedreiros, estão no extremo oposto da escala social.

Como consequência dessa situação precária e desmoralizada, seu status é o mais baixo possível. Diante da pouca estima que a sociedade tem pela profissão, os esforços de organizações como o SENAI não chegam a bom termo. Quem se interessa pela profissão não tem as condições de escolaridade para entrar nos cursos. Quem tem os anos de escola exigidos foge dela, em busca de alternativas melhores.

O resultado é que se aprende no local de trabalho, com quem já tem alguma experiência. Esta maneira de adquirir uma profissão nada tem de errada. De fato, na Alemanha, Áustria e Suíça, praticamente todos aqueles que têm uma profissão manual qualificada a adquiriram no método do Mestre-Aprendiz.  É o celebrado Sistema Dual.

Quando o Brasil tinha um ritmo de construção moderado, os antigos mestres, vindos de Portugal, Espanha ou Itália, ensinavam o que sabiam aos seus aprendizes. Os ofícios passavam de geração em geração. Contudo, o surto desenvolvimentista do país, no pós-guerra, acelera o crescimento, inclusive, com grande dispersão geográfica. Nesse ritmo tão elevado, não há suficientes mestres, corretamente preparados, para produzir aprendizes bem formados.

O resultado é a forte heterogeneidade dentro dos canteiros de obra. Por sorte de encontrar um bom mestre, ou por iniciativa própria, alguns conseguem atingir níveis satisfatórios. Mas são poucos.

Daí nasce a improvisação e a criação de ciclos perversos. Os aprendizes aprendem com quem não conhece bem o ofício. As deficiências deles são herdadas pelos seus aprendizes que adquirem as mesmas falhas dos seus mestres.

O círculo vicioso se fecha, com a queda de status da profissão. São atraídos para ela apenas jovens que não têm quaisquer aspirações ou ambições. Tampouco, têm a escolaridade para aprender os aspectos mais técnicos do ofício. E naturalmente, o ritmo de mudança tecnológica se acelera, aumentando a distância entre a tecnologia oferecida na loja e a dominada pelo operário.

Os encanadores não sabem instalar uma conexão PEX. Os pedreiros não conseguem lidar com light steel frame. Os eletricistas continuam usando fita isolante e não entendem os novos modelos de disjuntores. E por aí afora.

Operários desmotivados, desconhecimento de processos de trabalho, ausência de profissionalismo e descompromisso com o trabalho fecham ainda mais o círculo vicioso do baixo status e perfil profissional inadequado.

A precariedade dos mestres de obra completa o desencontro. Com pouca escolaridade e formação improvisada, são um freio às melhorias da produtividade, mediante a incorporação de novas técnicas ou equipamentos. Como são despreparados, sabotam a sua introdução, pelas mãos de jovens menos mal preparados mas que estão sob a sua supervisão.

O estilo ‘machão’ de liderança afeta até a segurança da obra, pois consideram coisa de ‘maricas’ portar capacete. Não por acaso, a taxa de acidentes na construção civil é assustadora.

Uma pesquisa no Paraná, com grupos focais de jovens de periferia, permitiu capturar com certa riqueza de detalhes o perfil dos jovens recrutados pela construção civil.

O estudo mostra claramente, os operários da construção civil estão no nível mais baixo da sociedade organizada. São pobres, moram mal e não têm a energia psíquica para erguer-se e superar sua condição. Quando o filho não se dá bem na escola e se evade, o pai manda para a obra, para não “aprontar”. Lá, ele estará distante das más companhias. Mas isso não é o início de uma carreira promissora.

A construção tende a ser o primeiro emprego daqueles de origem rural e que migram para as cidades. Os que possuem um pouquinho mais de talento ou iniciativa buscam outro setor da economia.

Pesquisando o sonho desses jovens, os entrevistadores puderam verificar que são inexistentes. Em vez de sonhos de carreira, desejam possuir um tênis, um celular e um boné. O trabalho na construção é percebido como uma chaga ou punição. É o que foi possível conseguir.

É o império do Brasil Velho, populado por oriundos de comunidades periféricas muito pobres e toscas. Mas é importante ressaltar, o problema não é a pobreza, é a síndrome do Brasil Velho.

A presente insistência nas diferenças de valores é mais do que proposital. Não é a pobreza que mais maltrata o andar de baixo da sociedade brasileira. Pobreza é um acidente de percurso para aqueles com as orientações características da Modernidade. Será superada. Mas é uma maldição para os que professam os valores do Brasil Velho, mergulhados em um círculo vicioso que não se desfaz.

O canteiro de obras improdutivo

O tema deste ensaio é produtividade. Contudo, para explicar a sua fragilidade no Brasil, foi necessário dar esta grande volta nos labirintos do atraso – território que chamamos de Brasil Velho.

Nesta seção, faremos um duplo exercício. Revisaremos as pautas da modernidade, seguindo uma classificação próxima, mas não idêntica à de A. Inkeles. Ao mesmo tempo, confrontaremos esses valores com aqueles que se podem perceber no andamento de uma obra cujos operários são do Brasil Velho.

Tal imbricação – entre valores e o mundo da obra – permite captar a distância que existia entre os operários que construíram a casa e os padrões de Modernidade associados à boa produtividade. Porém, não se trata de uma pesquisa obedecendo aos cânones metodológicos usuais, mas uma mera ilustração concreta do nível de atraso desse segmento do Brasil Velho.

Trata-se de uma construção real, administrada por um engenheiro de boa vontade, honesto, precariamente formado, mas sucumbido pela trama invencível do atraso de seus terceirizados.

Aqui chegamos ao desenlace final do argumento tecido no presente ensaio. Para obter ganhos de produtividade, é necessário que o esforço adicional seja percebido, não apenas como desejável, mas imperativo para a promoção pessoal de cada um. E por consequência, de todos. Como ilustraremos com os exemplos, falta na obra o mindset que levaria a esta busca, sistemática e persistente. Não se tratam de ideais de uma sociedade perfeita mas a busca racional do interesse próprio, em um plano de longo prazo,. Na verdade, essa meta inexiste e nem sequer entra no radar das pessoas que lá trabalham. Portanto, antes que se supere visão de mundo destas pessoas, nada de bom vai acontecer.

A tese: Da ética do cotidiano ao Capital Social

A Reforma Protestante traz uma ética rigorosa e exigente, impondo no cotidiano padrões de honestidade muito estritos. Condiciona a salvação da alma a um comportamento dentro de normas morais rígidas e explícitas. De fato, nas sociedades em que o protestantismo de Lutero e Calvino ganhou espaço, os padrões de moralidade individual avançaram muito, em comparação com aqueles dominado pelo catolicismo.

Interessante registrar que, recentemente, foram elaborados indicadores de moralidade pública, comparando países. Os números demonstram duas proposições. A primeira é que os campeões de moralidade são os países protestantes – entre os dez primeiros, estão nove (e o décimo não é católico). A segunda é que todos eles são países ricos. É inevitável a pergunta: os países são ricos porque são honestos ou vice-versa? Como historicamente o protestantismo veio antes da riqueza, parece que a primeira proposição tem mais chances de ser verdade.

Para evitar mal-entendidos, o protestantismo não é condição necessária para o progresso material. Sociedades católicas prosperaram e os países do extremo oriente professando diferentes religiões estão avançando céleres. Mas como este assunto ganhou visibilidade com as análises de Max Weber sobre o protestantismo, é a maneira mais conveniente de introduzi-lo.

Em sociedades onde esses padrões morais vicejam, o sistema capitalista funciona melhor. Por conseguinte, desfrutam de mais riqueza. De uma perspectiva estritamente pragmática, seja qual for a razão, agir certo, cumprir a palavra e respeitar os direitos e propriedades alheios são práticas que promovem o avanço de todos.

  1. Stuart Mill já tinha esse ponto claríssimo no seu manual de Economia Política: “The advantage of mankind of being able to trust one another penetrates into every crevice and cranny of human life; the economical is perhaps the smallest part of it, yet even this is incalculable”.Para ele, um maior grau de confiança mútua reduz os custos de advogados, do judiciário e do sistema penal.[1] Um traço desta moralidade coletiva é que, em uma sociedade em que tal comportamento é predominante, podemos confiar nos outros.

Para Jane Jacobs, “a cooperação é provavelmente o mais importante dos universais. Somos animais sociais e tudo que somos depende de cooperação” [1] Mas ela adverte, “a confiança só é possível onde prevalecem hábitos de honestidade” [1]

Confiar significa acreditar que a outra pessoa, se lhe for oferecida a oportunidade, não se comportará de uma maneira que rompe os combinados e nos prejudica. Confiamos em alguém quando nutrimos uma expectativa de seu comportamento ético. Em oposição, desconfiamos, quando tememos ser surpreendidos pelo oportunismo.

Ou seja, se todos agirem como esperado ou combinado, a sociedade funcionará muito melhor. No extremo oposto, sem algum grau de confiança não pode haver trocas e será mínima a cooperação entre quaisquer agentes, ou mesmo empresas. A filmografia de Hollywood é pródiga em cenas de negociações entre bandidos. São tantas precauções e tanta a má fé de parte a parte que muito pouco se logra concluir, ainda que a transação possa ser de interesse mútuo.

A importância da expectativa de que os outros vão cumprir o esperado ou prometido foi percebida por Kenneth Arrow, prêmio Nobel de Economia: “It can be plausibly argued that much of the economic backwardness in the world can be explained by lack of mutual confidence”. De fato, aquelas formas de organização da economia que se mostraram mais produtivas requerem um grau elevado de confiança.

Resumindo, são óbvias as vantagens de uma sociedade em que um pode confiar no outro e que as pessoas estão dispostas a colaborar, na crença de que os outros não irão desapontar. É o pressuposto da reciprocidade. Essa dupla ideia de confiar e colaborar é a essência do conceito de Capital Social. Estudo após estudo mostra as vantagens que uma sociedade deriva ao exibir um grau elevado de Capital Social.

A antítese na obra: o descumprimento e a desconfiança

O primeiro construtor foi de grande competência para trombetear suas qualidades e seu conhecimento de técnicas de Light Steel Frame. Contudo, a obra avançou em velocidade glaciar, as semanas se passavam e nada acontecia. Não prestava contas e tampouco submeteu cronograma sério.

Mais adiante, pediu um adiantamento, para comprar vigas metálicas, a serem usadas na montagem do chassi da casa. Em seguida, desapareceu, carregando consigo, pelo menos, uns trinta mil reais de adiantamentos e sem prestar contas de nada. O caso foi para a justiça e lá ainda se encontra, pelas razões já comentadas ao falar de Custo Brasil.

O construtor foi substituído por um outro, bastante honesto. O problema maior, contudo, era a sua equipe, fraquíssima em todos os azimutes. Os combinados e prometidos não se materializavam, como é essencial em uma empresa moderna. A consequência era não cumprir o combinado com o proprietário da obra.

Segundo a filosofia do engenheiro, esses contratos terceirizados não deveriam durar muito, pois a relação pessoal vai se deteriorando. Na prática, foi isso que aconteceu. Mas algo parece estar profundamente equivocado nessa equação, pois uma relação profissional não tem razão para ser um produto descartável, trocado na próxima obra, por desgaste da convivência. Desentendimentos resultam de falta de clareza ou franqueza no que foi combinado.

Como nada andava como sonhado, as brigas com o gesseiro se repetiam, exatamente como acontecia com o serralheiro e com o pintor. O serviço não acabava ou ficava mal feito. Logo, o construtor não pagava, alimentando o ciclo dos desentendimentos. Mais de uma vez o homem do drywall pediu ao proprietário para interceder junto ao construtor, para que pagasse os atrasados. Mas tinha razão o construtor, pois a qualidade não correspondia às expectativas.

Onde estaria a raiz do desgaste?  “Profissionalismo” é o conceito que captura tudo que está faltando nesta equipe. No caso, a falta de profissionalismo. O desempenho dos funcionários não é o esperado, seja na qualidade do trabalho, seja no cumprimento dos combinados. O construtor é pressionado pelo proprietário, vai se irritando e tem que exigir o que o peão considera como uma filigrana desnecessária. Azeda tudo.

Em muitas situações, tentou-se, por todas as maneiras, conseguir alguém que fizesse um serviço qualquer. Ou não atendiam o telefone, ou não podiam, ou não se interessavam ou prometiam e não apareciam.

O construtor se vê como vítima de um mundo que ele não consegue controlar. Nada acontece como ensinado no seu curso de Engenharia. Ele não esconde seu desconforto e desânimo, diante da esquizofrenia entre o seu mundo e o que seria esperado em uma construção séria. Se o encarregado disse que viria e não veio, isso é o normal, é quase previsível. Mas em um mundo profissional, se disse que viria, é inaceitável que não venha. Diante das frustrações de ver tudo sair ao contrário, o construtor perde as estribeiras e bate boca com os peões. Urra, fica rubro de ódio, as veias saltam. Talvez até suspeite que isso possa ser contraproducente, mas descarrega, na esperança de livrar-se das raivas.

Cumprimento do prometido, compromisso assumido, prazos, nada funcionava. A ética do cotidiano fracassava a cada momento. A confiança entre as partes andava sempre por um fio – que as vezes se partia. É o profissionalismo, ausente nesse Brasil Velho.

A tese: A busca racional do bem-estar material e do ganho

As sociedades economicamente bem-sucedidas são aquelas em que há uma clara legitimidade para a busca dos ganhos materiais. Para ser bem-sucedido, é preciso trabalhar com afinco, dedicar-se a fundo e usar a inteligência. E o objetivo explícito é desfrutar os resultados desse esforço. Não é para salvar almas ou punir o mal. Na contramão de Santo Tomás de Aquino, o rendimento ou o lucro não são vistos como pecaminosos. Pelo contrário, são resultados legítimos e merecidos do esforço.

Um corolário desta percepção é ser o ganho econômico visto como a marca do sucesso. Nosso “capitalismo envergonhado” não é uma boa receita para a prosperidade.

Mas ser bem-sucedido não é passar a perna nos outros e sim fazer melhor ou produzir mais.  Faz parte dos valores da modernidade acreditar que não é preciso que os outros percam para que nós ganhemos – não é um jogo de soma zero. No capitalismo saudável, o lucro é o prêmio legítimo para o esforço e a competência.

Ainda na mesma linha, um Pastor de nome Baxter exortava seu público a “ter o tempo em alta estima e ser cada dia tão cuidadosos em não perder o seu tempo tanto quanto o são para não perder seu ouro e prata” [1] No léxico atual, time is money.

A busca sistemática do bem estar material é condição sine qua non para a produtividade. Por tudo que sabemos, os maiores avanços no bem-estar material dos trabalhadores se deram onde, assiduamente, tais preceitos foram praticados. Ou seja, a fórmula não é boa apenas para os capitalistas.

A antítese: o mundo irracional do canteiro de obras

Na lógica da Modernidade, deve haver uma maneira melhor e mais eficiente de realizar qualquer serviço. E esta maneira deve ser rotineiramente buscada. Aliás, essa é a ideia-mãe do pensamento de F. W. Taylor. Se assim for feito, cedo ou tarde, quem mais produz receberá maiores proventos.

Ao cavar os buracos para as fundações, não se encontrava rocha sólida. Mas se era só saibro, por que não fazer as sapatas enterradas a um palmo de profundidade, em vez de cavar por meses, para localizá-las a três metros e meio abaixo da superfície? Na pior das hipóteses, por que não parar de furar, depois do primeiro buraco revelar que não havia rocha? As sete fundações restantes passariam a ser em covas rasas. Mas assim não foi feito.

E as tolices não param aí. A garagem/quarto de serviço tem alicerces condizentes com um edifício de cinco andares – pelo menos. O projetista desenhou, o engenheiro abençoou, o construtor executou. Ninguém achou nada errado. Exceto o proprietário que paga a conta. Durante a construção, reclamou, mas a entropia do sistema não permitiu uma correção de rumo. Ninguém se entendia com ninguém.

Com os ângulos da construção houve um grande tropeço. Pela definição, um retângulo tem ângulos de 90º.  Fiéis a esses sábios princípios, arquitetos não desenham casas com 89º nas esquinas. Mas foi isso que aconteceu, não era um retângulo, mas um losango. O montador da estrutura metálica empurrou daqui e dali, para alinhá-la na laje que encontrou. Mas na hora das telhas de lata, perfeitamente retangulares, o desvio apareceu e criou problemas.

Quando começa a pintura, o desperdício está por todas as partes. As latas de tinta dormem sem tampa, obrigando a abrir uma nova na manhã seguinte. Igualmente, os pincéis não são lavados, requerendo usar um novo, pois amanhecem insalváveis.

Vez por outra, entorna uma lata de tinta, lá se vai ao chão o seu conteúdo – pareceria que pintores profissionais já teriam superado esse estágio. Mas quando isso sucede, é mais prático limpar imediatamente, pois dá menos trabalho e elimina melhor os resíduos que sobram na superfície. Mas não é isso que acontecia. Fica lá a tinta esparramada. Bom tempo depois, surge um personagem mais jovem, esfregando uma espátula cega na tinta seca, com resultados duvidosos.  Algumas destas manchas ainda estão visíveis.

Ao pintar o que precisava ser pintado, entra na trajetória do pincel tudo que está por perto. A fita crepe só aparece de forma bissexta. A precisão é obtida pela firmeza da mão que empunha o pincel. Só que a mão não é firme, lambuzando o que não é para ser pintado.

O serralheiro seguiu fielmente os desenhos do projetista. Tanto é assim, que fez sapatas impossíveis de serem instaladas, pois não tinham janelas para verter o concreto, na hora de chumbar. Voltam ao maçarico, para abrir os buracos necessários.

Uma obra requer centenas de materiais diferentes. Cada um será usado na hora certa, sob pena de atrasos se não estiver presente. O mesmo com o leque de competências profissionais necessárias. Portanto, a logística de uma obra é delicada e complexa. É a diferença entre uma obra com custos razoáveis e prazos cumpridos e uma outra onde nada é previsto e tudo pode acontecer.

Mais de uma vez por dia, o construtor pegava o carro, para comprar os parafusos ou ferragens que faltavam. E as semanas em que nada acontecia e a obra ficava deserta? Instrutivo notar que não era uma obra por administração, nas quais quanto mais se gasta, mais o construtor ganha. Era um contrato de preço fixo, portanto, o prejuízo era dele próprio.

Quem trabalhe com os peões que frequentaram a obra, se tentar planejar, precisa um coração resistente. O encarregado não trouxe os operários porque estava ameaçando chuva. O eletricista combinou vir, mas foi a um batizado. O telefone do bombeiro não responde. O caminhão de concreto fundiu o motor na subida do Condomínio. A telha prometida não chegou. O serralheiro diz que não vem se não receber pagamento – pelo que não fez.

Em suma, muito do que acontece de ruim pode ser classificado como falta de racionalidade, de todas as partes. Há maneiras melhores de se construir, mas não são usadas. Suspeita-se que nem sequer sejam consideradas.

A tese: Presente versus futuro

Quanto mais atrasado ou desorganizado o grupo social, maior a relutância em abrir mão da comodidade ou do consumo presente, em prol de benefícios futuros. Sociedades atrasadas preferem as vantagens no presente, desvalorizando os ganhos futuros, resultantes do uso judicioso da poupança.  Essa disjunção é ilustrada pela fábula, em que a cigarra é despreocupada com o futuro e a formiga poupa, preparando-se para dias piores.

O crescimento requer abrir mão do consumo presente, ou seja, poupar, para desfrutar um consumo mais abundante no futuro. Inclui o indivíduo que poupa para comprar uma geladeira e o empresário que compra novas máquinas para a sua fábrica, às expensas de uma retirada menor no presente. Igualmente, é o mecânico que compra uma máquina mais cara – e abre mão de construir uma churrasqueira – na esperança de que se torne mais produtivo com o novo instrumento.

Recentemente, apareceu um estudo interessante e que ilumina a nossa tendência de não prover para o futuro. Foi perguntado a pessoas de diferentes países quanto precisariam receber dentro de um ano para abrir mão hoje de uma quantia de cem unidades monetárias. A mesma pergunta foi repetida, para uma espera de dez anos. Dentre as dezenas de países incluídos na pesquisa, próximo da Rússia, o Brasil tem o maior índice de imediatismo. Não abrimos mão dos benefícios imediatos, mesmo para tê-los mais generosos no futuro. [1] Países anglo-saxões, China e Japão estão no outro extremo. Em linha com o que se sabe acerca do impacto da educação para mudar nossas preferências, o estudo também registrou que os mais educados são os mais dispostos a adiar o consumo presente.

A antítese: na obra, o que conta é o presente.

Pensar nas consequências futuras das ações presentes é um traço clássico da Modernidade. Mas não foi isso que se observou na obra.

Os peões que apareciam na obra eram um exército de maltrapilhos. A primeira reação é ficar com pena de gente tão desprovida de tudo. Mas não é tão simples, pois quase todos têm o seu próprio automóvel. Não é o bolso deles que vai mal, a cabeça é a causa dos desacertos, já que seus valores estão estacionados em sociedades pré-industriais de séculos pretéritos. O bolso é a consequência.

Uma vez, o gesseiro apareceu na obra, muito bem vestido e pilotando uma moto Yamaha Fazer nova. Por que moto nova, roupa nova e ferramentas velhas?  Em vez de uma serra para drywall, era usada uma lâmina de serra para metais. O resultado é que nem sempre ocorria o encontro mágico das caixas elétricas pregadas nas vigas com o seu recorte no drywall. Em muitas tomadas, o espelho não chega a cobrir o buraco.

A cada dia, presenciava-se uma orquestra desafinada e com instrumentos avariados. Onde está a tesoura para as telhas, as chaves de fenda do tamanho certo, o alicate próprio para desencapar fios? Ainda menos, uma escada correta. Nada disso aparecia na obra. Quando ficam cegas, as brocas vão para o lixo. O construtor confessou que compra as piores ferramentas, pois somem ou são destruídas antes.

Qualquer loja de ferragens vende uma serra para drywall, muito parecida com uma faca de cortar pão. Não chega a 20 Reais. Os operários usavam uma lâmina de serra para metal, presa em um pedaço de pau, com um só parafuso. Não havia esquadros, compassos ou outras ferramentas de medida. No máximo, um fio de prumo, sempre largado pelo chão.

E os formões, para instalar os alisares das portas internas? O peão despeja no solo, literalmente, o conteúdo da caixa de ferramentas. De cambulhada caem dois formões que nunca haviam sido afiados, como admitido por ele. Aliás, ficou admirado quando lhe foi explicado que, para afiar um formão, são usadas três pedras, de granulação progressivamente menor. Jamais ouvira falar em tal exagero e não se interessou mais pelo assunto.

Não é por acaso que os alisares ficaram tortos. O carpinteiro improvisado não tinha o gabarito de serrar, universal na profissão. E não tinha com que medir os 45º. Foi-lhe emprestada uma suta com esse ângulo. Mas ele não sabia usá-la. Cortou com a serra de mármore, sem gabarito, guiada à mão livre. Resultado péssimo.

O eletricista via como um insulto modificar o que havia feito, por não corresponder às expectativas.  E em uma obra, à medida que as coisas acontecem, a atenção vai se fixando nos pontos menores, revelando que há detalhes para mudar.

E o desperdício! Estimativas conhecidas avaliam uma perda de 30% dos materiais na construção civil. Nesta obra, não parece haver sido menos do que isso.

Ao terminar a instalação elétrica, sobra uma enorme pilha das caixinhas onde se alojam tomadas e interruptores. Como é possível, se o projeto elétrico mostra o seu número exato? Sobraram braçadas de tubo de PVC e montes de conexões, apesar do projeto hidráulico permitir calcular exatamente a quantidade necessária. E por que sobraram, ainda fechadas, várias latas de tinta e massa corrida? Não é difícil estimar o consumo, pois está escrito na lata.

No capítulo da instalação da cobertura de lata nas paredes exteriores, também se repetia um vício crônico da nossa construção civil: o desperdício. Apanhar no chão o parafuso que escapuliu não é um hábito consagrado. Caiu? Deixa lá, dá trabalho, a caixa tem outro, é mais fácil.

A lata de lixo da obra era os dois mil metros do terreno. Terminada, nele foram encontrados restos de telha, nacos de tijolo, garrafas de guaraná, camisas, pés desencontrados de sandálias havaianas, embalagens de biscoitos, pedaços de pau, retalhos de PVC, latas de tinta, pontas de fio e fragmentos de tudo que foi usado durante a construção.

Desanimado, o construtor confessou que havia desistido de ter um local para guardar materiais e ferramentas. Não queria mais alugar um depósito, sempre sujeito a roubos. Como consequência, fim de obra é o cemitério do que foi comprado a mais – e sobra de quase tudo. Os peões levam alguma coisa, os gatunos outro tanto e o dono da casa não sabe o que fazer com o resto.

Falando de segurança, dos muitos soldadores que apareceram na obra, nenhum usava a clássica viseira da profissão. No maçarico é menos grave, mas e na solda elétrica? As escadas, precariamente construídas, quase não alcançam o local certo. E se estão do lado de fora, são niveladas com uma pedra sob um dos pés. Capacete? Jamais! Cadeirinha de segurança? Nunca foi avistada uma na obra.

Em resumo, o desperdício pela displicência e descaso subtrai do que ganha o construtor, pois é uma obra por administração. É ele quem perde e sabe disso. Mas confessa sua impotência para fazer diferente. Na guerra entre o presente e o futuro, o vencedor é o presente.

A Tese: Fatalismo versus ativismo

De que depende o nosso futuro? Para os fatalistas, lo que será, será, estava escrito, o futuro a Deus pertence. Para outros (chamados ativistas), o futuro será fruto do esforço, da iniciativa. Nada está escrito.

Nas sociedades bem-sucedidas, o cidadão comum percebe o controle do destino como estando em suas próprias mãos. Para ele, quem mais se esforça, mais longe vai. Nas fatalistas, acomodam-se as pessoas ao que a vida lhes oferece.

A implicação para a produtividade é óbvia. Alguns se contentam com o jeito aprendido – ou improvisado – de executar o trabalho. Outros acham que deve haver formas melhores ou de maior eficiência. Em sociedade em que as gentes são competentes e criativas torna-se mais eficiente o processo produtivo.

Atualmente, muitos inquietos graduados de instituições, como o ITA, querem inventar tudo, querem modificar o que os outros fizeram. São membros de carteirinha do melhor que oferece o Brasil Novo.

Mas em sociedades atrasadas, espera-se passivamente que alguma coisa aconteça. Ou, mendiga-se um dinheiro ao Estado. De Portugal herdamos o Sebastianismo que é a espera de um salvador encantado – Dom Sebastião – que virá em algum momento. O Estado Babá é a resposta dos políticos para o Brasil Velho.

A antítese na obra: lo que será, será?

Na construção civil, modernidade é tentar controlar os processos e o fluxo da obra. É achar que é possível não ser vítima de um destino pré-determinado. Mas não é isso que se podia observar.

A desordem na obra é permanente, como se fosse o estado natural e inevitável do seu curso. Nas duas semanas que lá estiveram os montadores da estrutura metálica, com restos de madeira, em minutos, construíram uma mesa para abrir as plantas. Os que se seguiram, por dois anos, não construíram nada. Onde está a broca? Despeja-se no solo imundo o bric-a-brac das suas caixas de ferramentas. Tudo sujo, malcuidado e desgastado. Chega o material elétrico. Em vez de ser disposto sobre uma mesa, é esparramado pelo chão. De tempos em tempos, o construtor manda varrer, o que é feito mal e a contragosto.

Uma obra requer centenas de materiais diferentes. Cada um será usado na hora certa, sob pena de atrasos, se não estiver lá. O mesmo com o leque de competências profissionais necessárias. Portanto, a logística de uma construção é delicada e complexa. É o que separa uma obra com custos razoáveis e prazos cumpridos e uma outra onde nada é previsível e tudo pode acontecer.

Voltando aos peões, talvez o que mais impressionou foi uma característica sutil, mas gigantesca nas suas consequências. Não é que não saibam trabalhar, o que é um fato. Mas é pior do que isso. Não têm motivação alguma para aprender. Cursos? De que? Por quê? Esta desmotivação foi uma das constatações mais alarmantes que pude fazer, ao longo de minha presença na obra.

No fundo, parece predominar um atavismo cultural, levando a um fatalismo resignado, uma grande passividade diante da equação da vida.

Tal como são, os peões jamais fariam as seguintes perguntas: Será que não há uma maneira melhor de se fazer o serviço? Não haveria uma ferramenta mais apropriada?

A tese: O trabalho enobrece

Na velha tradição, o trabalho era para o povo, não para a nobreza. Naqueles tempos, um homem não podia ser um Cavalheiro (Knight), se algum parente seu fosse ou tivesse sido comerciante ou artesão. A lista de parentes incluía pai, avô, bisavô e tetravô.

No início do século 19, um aristocrata polonês que ousasse entrar no comércio perderia a sua posição nobiliárquica, suas terras e os privilégios correspondentes. [1]

Mas a Revolução Industrial que varreu o mundo, começando na Inglaterra, virou tudo de cabeça para baixo. Muitos artesãos talentosos inventaram e patentearam máquinas fabulosas. Ou criaram fábricas para produzi-las. Tornaram-se os grandes titãs da indústria. Seu avanço vertiginoso na pirâmide econômica tornou os tradicionais preconceitos mais um cacoete das velhas aristocracias do que normas vigentes.

Hoje, nas sociedades modernas, o trabalho é valorizado. Nas mais atrasadas ainda é considerado algo para os serviçais ou escravos. Essa é uma cruz que carregamos, como sociedade por muito tempo escravocrata. É uma herança maldita esta visão negativa do trabalho, como algo a ser evitado e o sucesso nisso uma razão para jactar-se.

Nas sociedades industriais, o trabalho é visto de forma positiva. É uma obrigação moral, mas também, uma fonte de realização pessoal. Forjou-se a ideia de que há um valor intrínseco em trabalhar. Essa é a cartilha do protestantismo, ipsis literis, ainda que sociedades não protestantes possam também cultivar valores equivalentes.

Se o trabalho é valorizado em si, mais ainda será o trabalho bem feito. Aí está a raiz do profissionalismo, característica marcante de sociedades modernas bem resolvidas. Faço bem feito porque aprendi assim e não sei fazer de outro jeito.  E, de resto, faço com muito orgulho.[1]

 “O brasileiro, com toda a sua predileção pelo show, não acha prazer em se esforçar por realizar uma obra mais bem-acabada, como se contrariasse as suas inclinações. No entanto, em geral, não é preciso um trabalho excessivo para conseguir um serviço mais perfeito”. [1]

A ferramenta é parte indissolúvel do processo de trabalho. É curioso verificar, naquelas sociedades e naqueles grupos em que se observa mais apreço ao trabalho, essa veneração migra para as ferramentas. O profissionalismo valoriza o trabalho e idolatra seus instrumentos. O estado de conservação, o fio impecável dos formões e o esforço de comprar a melhor qualidade oferecida no mercado são corolários do profissionalismo. Nos trabalhos de madeira, a caixa de ferramenta impecável é o cartão de visita do profissional e lhe traz grande orgulho.

A antítese: quanto menos esforço, melhor

Pela observação dos operários, é inevitável concluir-se que não há realização pessoal na profissão. Não aprenderam a ver no trabalho bem feito uma fonte intrínseca de felicidade. Não se defende aqui uma utopia impossível, isso existe. Nas boas empresas, os funcionários reportam o orgulho e a satisfação de fazer bem feito, tal como seus antepassados medievais.

Como mencionado, a montagem do chassi metálico da casa foi feita pela equipe da fábrica. Durante as duas semanas de trabalho em que estiveram lá, via-se o oposto do que era o cotidiano da obra.

Diante do desfile de operários maltrapilhos e descoordenados, ver este time operar foi como assistir a um espetáculo teatral bem ensaiado. Trajavam uniformes – os outros, se vinham de uniforme, era de outra empresa onde havia algum dia estado. E portavam sempre seus capacetes. Aliás, durante toda a obra, foi a única vez em que tais objetos foram vistos.

O ferramental era completo e de qualidade. Até o rádio, que berrava música sertaneja, tinha um belo estojo de proteção. A eletricidade passava por uma caixa de distribuição de madeira, bem construída. Os fios de extensão tinham tomadas! Um objeto que não foi mais visto, durante toda a obra. Com efeito, os outros peões que por lá aportaram enfiavam a ponta dos fios nus na base de tomada – se é que essa existia.

O time da montagem trazia um micro-ondas para esquentar o almoço. Já os outros, cortavam uma latinha de cerveja e a colocavam, entre três pregos, em um retalho de madeira. Com um pouco de álcool, esquentavam a marmita. Será que o gasto mensal com álcool seria menor do que a prestação de um micro-ondas?

Os terceirizados da montagem haviam trabalhado na Europa ou Estados Unidos. Tinha que ser assim, já que esta tecnologia construtiva é desconhecida dos operários locais. Mesclavam na conversa palavras estrangeiras.  Mas nos verbos portugueses, invariavelmente, erravam a concordância. Eram capiaus internacionais, pois do lado do profissionalismo eram impecáveis.

Sabiam o que estavam fazendo. Trabalhavam rápido e sem vacilar. O líder era decidido e compenetrado. Sempre de capacete, com a jugular bem apertada, dava ordens à sua tropa. Com a intensidade de um general em batalha, comandava seu exército.

Em contraste, o serralheiro contratado para o telhado não ultrapassava o nível porcalhão. O fato de a casa estar ligeiramente fora de esquadro agravou as dificuldades. Foram meses de fazer e desfazer o telhado, a cada tentativa, mais amassadas iam ficando as telhas.

Nas três primeiras versões, o telhado da cozinha vazou, de resto, copiosamente. Apenas a quarta tentativa segurou a água. As anteriores não funcionaram, em parte, pela má execução, vício crônico dos operários que lá arribaram. Testava-se cada versão com a mangueira de água. Vazava! Quando parecia tudo perfeito, vinha uma chuva, deixando o chão da cozinha inundado e o drywall empapado.

As janelas requeriam uma moldura de placa cimentícia, com uma projeção. É óbvio, as peças horizontais deveriam ter um caimento para fora, de tal forma a drenar a água da chuva. Mas algumas tinham caimento para dentro, escorrendo a água até o encontro com uma lata cortada imprecisamente, ficando por conta do veda-calhas a tarefa de preencher um vão enorme. Daí as infiltrações inevitáveis.

De tudo que foi feito na casa, a instalação das placas cimentícias atingiu o nadir da incompetência. O construtor defendia seu terceirizado, afirmando que era assim mesmo: o material não dava acabamento, não havia como evitar as rebarbas feias e os encontros erráticos com as outras peças. Porém, trata-se de material dócil e bem comportado. É tão fácil trabalhar quanto um compensado ou MDF.

Os dois bombeiros, possivelmente, foram os piores operários a pisar na obra. Quase todas as conexões vazaram. Em alguns casos, não foram coladas, mas meramente encaixadas. Frequentemente, se diziam incapazes de instalar alguma peça.

A instalação do vidro zenital foi um pesadelo. O instalador tinha medo de altura. Olhou o serviço e partiu. Alguém o viu dormindo debaixo de uma árvore, no caminho de volta. Passaram-se meses, até que a instalação acontecesse.

O banheiro tem duas portas de vidro, uma ao lado da outra, a do o box do chuveiro e a do outro equipamento clássico. Quem assoma à porta, está diante das duas. Na instalação, uma porta ficou um centímetro e meio mais alta que a outra. Após múltiplas reclamações, o time foi lá e consertou. Mas desta vez, inverteu-se. A que estava alta, ficou baixa, também com o mesmo centímetro e meio de diferença.

Uma vez habitada a casa, notou-se que, após uma chuveirada, escorria água do lado de fora do box. A tentativa de refazer o veda-juntas de silicone não funcionou. Finalmente, foi encontrado o problema. A porta corre em um trilho em “U”. Ora, os respingos do chuveiro cairão dentro deste trilho. Como escoarão? Como não transbordava, deveria haver um dreno. Eram dois furos laterais. O detalhe é que estavam voltados para o lado de fora! Ou seja, a água que respingava no trilho era escoada para o exterior do box. Melhorou o vazamento. Mas ainda havia mais reparos. As duas extremidades do trilho da porta encostam no box. Como é uma conexão imperfeita, precisa ser vedada com silicone. Mas isso não havia sido feito.

Dentre as peças a se instalar, havia uma base de tomada para o trifásico. Era uma dessas que não são de embutir, basta aparafusar na parede. Em vez de três parafusos, mal que mal, o eletricista fixou um, dizendo ao construtor que naquele tijolo de cimento não era possível colocar os dois faltantes. Perfurar o tijolo, enfiar buchas de nylon e instalar mais dois parafusos na caixa foi tarefa que tomou poucos minutos.

Aberta uma caixa de tomada, descobriu-se que não estava aterrada, como manda a Norma ABNT. De resto, esse terceiro fio é exigido em todo o mundo civilizado. Diante da falha, foram checadas as outras. Umas tinham fio terra e outras não. Em particular, a ligação da resistência do boiler do aquecimento solar, ao ar livre, não o tinha. É uma ligação próxima à telha metálica, maltratada pelo sol e chuva e de alta amperagem. Também nas luminárias do deck faltava aterramento. O construtor alegou que esse terceiro fio era um capricho bobo.

Dando um rápido balanço mental da construção, foi fácil concluir que sobraram situações em que a lei do menor esforço prevaleceu: mal feito, improvisado, defeitos mal disfarçados e, por aí afora.

A tese: A atração pela tecnologia e pela complexidade

Algumas sociedades se contentam com fórmulas simples para tratar dos problemas do cotidiano. Outras gastam enorme tempo desenvolvendo soluções complexas para os mesmos problemas, acertando e errando ao longo do caminho. As primeiras são inevitavelmente pobres, pois essas soluções simples tendem a ser pouco eficazes. As segundas vão ficando ricas, pois as soluções que dão certo podem levam a saltos de produtividade.

O Homo sapiens, quanto mais avança na sua evolução, mais complexas ficam as suas ferramentas. E com elas, passa a obter um nível cada vez mais elevado de bem-estar material, pois produzem mais.

Andar a pé é uma solução simples, a sua tecnologia é dominada aos dois anos de idade. Domesticar o cavalo foi bem mais complicado, provavelmente levando séculos, até que um bicho bravo virasse uma montaria confiável. Mas diante do automóvel, como é simples o cavalo!

A propensão, o gosto e a competência para desbravar a complexidade são exigências pétreas para o avanço tecnológico. E como dito, tal inclinação traz a reboque uma qualidade de vida mais elevada.

Podemos pensar em dois estágios do conhecimento. O primeiro é ser capaz de entender os processos, materiais e ferramentas, de tal forma a lidar com eles de forma competente. Se o pintor não sabe qual a tinta, se o pedreiro não conhece o melhor impermeabilizante para o caso, se o eletricista não entende motor trifásico, obviamente, o serviço vai ficar deplorável, se é que chega a bom termo.

O segundo estágio é fazer avançar a tecnologia, as maneiras de trabalhar, os materiais e, assim por diante. É uma fase superior de uma sociedade. É o território da inovação.

Nosso atraso, dentre outras causas, está bastante associado à pouca afinidade das nossas gentes às soluções de mais complexidade. Isso pode ser captado pela menor variedade de ferramentas exibidas nas obras e oficinas. A maior complexidade é o resultado de buscar uma solução mais eficaz para se fazer alguma coisa. As plainas mais antigas eram reguladas batendo com um martelo na cunha de madeira. As mais novas, mediante um parafuso que ajusta a posição da lâmina. É uma solução mais complexa, mas se justifica por ser mais eficaz.

Indo ao outro lado do mundo, nos damos conta de que os carpinteiros japoneses, ao longo de mais de mil anos, serviram-se de, pelo menos, 400 formas de juntas ou encaixes de madeira, na construção de suas casas e templos. Os nossos usam pouquíssimas variedades. Juntando carpintaria com marcenaria, dez parece um limite superior.

Estados Unidos e Japão eram pobres, mas as sementes do salto tecnológico já estavam plantadas. A propensão para comprar ou desenvolver instrumentos complexos e especializados vem de longa data na sociedade americana, herdeira direta das tradições inglesas e alemãs.

Esse gosto pela ferramenta especializada é ubíquo naquele país e parece inexistir no Brasil. Nos Estados Unidos, o encanador chega em um furgão abarrotado de ferramentas, as melhores possíveis e aptas para cuidar de qualquer que seja o problema ou tarefa. Já o nosso chega com uma caixinha acanhada e com ferramentas precárias e mal conservadas. Isso, se não as traz embrulhadas em jornal. Peças de reposição, nem falar.

O resultado é que nas nossas obras faltam as ferramentas apropriadas. E ao longo do dia, alguém precisa constantemente sair para comprar algum material que terminou.

Por que é assim? Só porque um é rico e outro é pobre? Quem sabe é o inverso, o de lá é rico por ter sido mais produtivo?

Nos países avançados, é visível o gosto pela variedade e especialização das ferramentas. Quantos tipos de alicate? Quantos tamanhos de chaves de fenda? Quantos tipos de serrotes? É mais do que óbvio, empregando a ferramenta certa o serviço sai melhor e mais rápido. Mas os nossos operários, ainda distantes dos padrões da modernidade, não sentem a necessidade de possuir ferramentas mais apropriadas para cada tarefa ou melhores. Contentam-se com pouco ou quase nada. Quando abrem a caixa de ferramenta, se é que a tem, o que vemos é uma ruína.

E se para cumprir as tarefas tradicionais já falta fôlego tecnológico ao Brasil Velho, não podemos esperar que venha a inovar ou propor formas superiores de trabalhar. Para a avassaladora maioria das sociedades atrasadas, achar soluções novas, está muito distante de seu ideário. Inventar, explorar novas fórmulas, modificar as velhas, errar muito, nada disso encontra terreno fértil na cabeça daqueles que permanecem distanciados dos cânones das sociedades modernas.

A antítese na obra: Para que complicar? Mas o mundo é complicado

A observação da obra nos leva a duas categorias de comentários. O primeiro deles é que as casas de hoje adotam um conjunto de tecnologias e técnicas construtivas que podem apresentar um bom grau de complexidade. Inevitavelmente, a equipe da obra vê-se obrigada a lidar com elas. Previsivelmente, falta-lhes capacidade para dominá-las e dar conta do recado. Daí a coleção de tropeços e desastres, ao longo do caminho.

O segundo é o gosto pela técnica e pela complexidade. É característica das sociedades modernas a atração pela tecnologia e, por consequência, do desfrute de seu uso. Na obra, observa-se o oposto, total ausência de interesse ou vontade de aproximar-se e entender melhor os processos mais complexos. De fato, muitas soluções são evitadas pela inapetência dos operários para dominá-las.

Examinemos uma categoria de cada vez. Comecemos pelo analfabetismo tecnológico. Ou seja, os operários não sabem lidar com os materiais, as técnicas e as ferramentas que entram em cena na obra.

Em um cômodo a ser usado como oficina, decidiu-se usar compensado, em vez de drywall, para facilitar a montagem das ferramentas. Por sugestão do instalador, comprou-se um tipo de compensado revestido de plástico, próprio para formas de concreto.

Erro fatal! Este plástico está lá com a missão de não colar no cimento. Portanto, no caso, não dava aderência à massa corrida e à pintura. E como é preto, não poderia ser deixado sem pintura. Tentaram-se todas as técnicas para remover o revestimento plástico. Lixa, escova, raspadeira de aço e, por aí afora. Com uma lixadeira de disco, bem agressiva, o plástico cedia. Mas foram mais de 50 horas de luta, até pelar tudo, chegando na madeira.

Lá pelas tantas, o caminhão entrega o aquecedor solar. No caso, um aparelho chinês, com tubos de vácuo. Após a compra, veio o cavalheiro para instalar a peça. Depois de algumas peripécias, o aquecedor é instalado e ligado. Mas em um lugar demasiado visível, o “técnico” instalou canos tortos e voltinhas desnecessárias.

Instalou também um suspiro, feito de tubo de PVC comum. No dia seguinte, verga completamente, fica prostrado, como se fosse uma mangueira de jardim. Ao ser trocado por um tubo mais rígido, uma surpresa nos esperava. Ao abrir o registro, já não era mais um aquecedor solar, mas um chafariz, esguichando água para cima, do alto da cumeeira.

O instalador estava completamente perdido. Por que o suspiro esguicha água? Após muitas consultas, finalmente, começa a decantar a teoria de que a caixa d’água e o boiler solar eram vasos comunicantes. Portanto, o suspiro nada mais seria, senão um cano aberto no circuito, em um ponto mais baixo. Como resultado, jogava pelos ares a água da caixa. Para funcionar como suspiro, deveria ultrapassar a altura da caixa. Mas a engenharia de um suspiro com mais de cinco metros não é tão simples assim. Estais de cabo de aço? Foi decidida a instalação de uma caixa auxiliar, com boia, pousada no topo do boiler, para que o suspiro pudesse ser curto. Horroroso!

O último capítulo das águas e canos foi a fossa séptica. Na época do primeiro construtor, aparecem dois cilindros plásticos azuis, iniciando-se o processo de enterrá-los nos fundos do terreno. Mas o primeiro construtor escapuliu, sem deixar traço – e nem o manual do fabricante. O segundo confessou nada saber de fossas sépticas – apesar de não estar longe da aposentadoria. Pela lógica, conecta-se o cano saindo da caixa de gordura ao cilindro que estava mais perto. Afinal, não faz sentido colocar o primeiro cilindro mais longe da casa.

Nas fainas de lidar com objetos tão misteriosos, o construtor descobre que no cilindro maior havia uma grande quantidade de aparas de plástico. Sabotagem do primeiro bombeiro? Nada improvável, pois o construtor não pagou por seus serviços, apesar de que recebeu o dinheiro para tal.

Foi impossível a tarefa de retirar o plástico. Falou-se com um serviço de limpeza de fossas, para que cuidasse do assunto.  Mas um telefonema para o fabricante desencantou o mistério. As aparas são uma espécie de habitação popular para as bactérias que digerem o esgoto. Fazem parte da fossa. Se forem retiradas, as “bactérias sem teto” falecem, não cumprindo a sua nobre função.

Canos ligados, está tudo pronto e funcionando. Mas pairavam dúvidas. Finalmente, confirmou-se a suspeita de que, apesar do cilindro pequeno estar enterrado mais longe da casa, é ele o primeiro estágio do esgoto. O grande vem depois. Ou seja, a ordem dos cilindros estava errada e as ligações trocadas.

Como já havia abandonado a obra o segundo construtor, o proprietário contratou um outro bombeiro, este de longa trajetória. Ao desfazer a instalação existente, duas surpresas. A primeira foi que os bombeiros nem colaram os canos e nem usaram gaxetas de borracha para a sua vedação. Simplesmente, encaixaram e cobriram de terra.

A segunda é que o cano saindo da caixa de gordura foi instalado sem remover o seu tampão de plástico. Ou seja, até esse dia, a fossa não havia recebido sequer um grama de esgoto. Entendemos então por que foi difícil a encontrar a caixa de gordura, já que estava sob um viçoso capinzal. Todo o esgoto dos meses precedentes transbordava e fertilizava a terra próxima.

Com duas horas de trabalho, terminou uma novela tecnológica que já datava de dois anos. Só não se resolveu um mistério: Por que o cano arrolhado? Burrice ou sabotagem?

Passemos ao segundo tópico. Vai com a Modernidade o gosto pelas ferramentas especializadas e pelos processos que podem ser mais complexos ou requerem aprendizado mais longo. Justificam-se pela sua maior produtividade. Mas isso é o oposto ao que se podia observar na obra.

O capítulo das ferramentas traz perplexidades. Quem deveria ser o dono delas, em um arranjo produtivo em que há um construtor, um terceirizado e uma tropa de operários, contratados a cada dia? Desde as eras medievais, o artesão é o orgulhoso proprietário das suas ferramentas. Mais que isso, são o seu cartão de visita.

Por que não se usam as ferramentas adequadas? Quantas vezes, tiraram a broca da furadeira com martelo e talhadeira, pois havia se perdido a chave? Na instalação da rampa, o serralheiro não tinha as chaves de cachimbo requeridas para a tarefa. Usou e inutilizou as que lhes foram emprestadas.

Os operários não mostravam a menor propensão para possuir ferramentas, fossem boas ou boas ou ordinárias. Logo dizem que são muito pobres. Tecnicamente, é verdade, mas são pobres por serem improdutivos e boas ferramentas alavancam muito a produtividade.

O terceirizado não quer investir, pois tem medo que desapareçam. O construtor opera sob a mesma equação, agravada pela volatilidade de sua associação com o terceirizado. Na falta de alternativas, o construtor acaba comprando o mínimo, de péssima qualidade, complementando o pouco que possui o empreiteiro.

Em resumo, há uma incompatibilidade entre as tecnologias construtivas usadas na casa e o que sabem fazer e o que gostam os operários. Em grande medida, não dominam os conhecimentos requeridos para uma montagem eficiente e correta, seja o telhado ou a ligação trifásica.

Lições: o contraste da modernidade com o mundo da obra

Foi com o conjunto de valores, crenças e propensões – definidos como Modernidade – que se deu a Revolução Industrial, ao longo de suas sucessivas ondas. Com as variações esperadas, as sociedades que têm hoje os IDHs mais altos compartilharam essas mesmas visões de mundo. Por elas seus cidadãos pautam o cotidiano, seja no comportamento, seja na legitimidade conferida aos seus princípios. Em forte contraste, a cultura do atraso perpassa as sociedades mais atrasadas e mais pobres.

Por muito simplistas que possam parecer estes raciocínios, sempre contém um fundo de verdade. No caso do Brasil, são duas sociedades, a Velha e a Nova. O grande desafio é reduzir o número daqueles que pensam e agem pelas pautas do atraso cultural e alargar a abrangência dos que se apropriaram desta nova coleção de valores, batizados como Modernidade. Em outras palavras, ampliar o Brasil Novo e reduzir o Velho.

 E o que dizer do exército de maltrapilhos que construiu a casa? A primeira reação, politicamente correta, é ficar com pena de gente tão desprovida de tudo. Mas não é tão simples, pois quase todos gastam seus proventos em bens de consumo não-essenciais. Não é o bolso deles que vai mal, a cabeça é a causa dos desacertos, pois seus valores estão estacionados em sociedades pré-industriais de séculos pretéritos. O imediatismo é capturado pela opção do consumo, em vez de investir no que resulta em maiores ganhos futuros. Pode parecer um raciocínio de livro-texto, mas é impossível não encontrar um fundo de verdade nele.

Em sua maioria, são pouco conhecedores das artes da construção e distantes das tradições de profissionalismo. Por conseguinte, convivem com o atraso técnico e um código bastardo de valores. Persistem atitudes incompatíveis com o progresso e com a produtividade, em aras de um imediatismo de péssimas consequências no longo prazo.

Para estas tribos, mal feito ou bem feito não está no seu radar. O que conta é se o construtor deixa passar o serviço tosco. Este, por sua vez, não é guiado pelo orgulho da obra impecável, mas pelas exigências – frouxas ou severas – do dono da casa. Cada um tenta fazer o mínimo, para ver se ‘cola’. Essa equação contêm todos os ingredientes para gerar conflitos permanentes, entre todas as partes.

Voltando ao que sabem os peões, talvez o que mais impressionou foi uma diferença sutil. Não é que não saibam trabalhar, o que é um fato. É pior do que isso. Não têm motivação alguma para aprender. Cursos? De que? Por quê?

No fundo, parece predominar um atavismo cultural, um fatalismo discreto, uma resignação diante da equação da vida. Não há realização pessoal no trabalho. Não aprenderam a ver no trabalho bem feito uma fonte intrínseca de felicidade.

Tampouco se trata de ter um pouquinho mais ou um pouquinho menos de dinheiro. As pessoas que construíram a casa são o resíduo de um Brasil arcaico, amorfo e herdeiro de populações largadas ao léu. Se o operariado brasileiro fosse todo como o desta obra, a indústria entraria em colapso – ou não existiria. A boa notícia é que esse grupo encolhe. Mas, teimosamente, não desaparece.

Ao examinar o desenrolar da construção, põe-se a descoberto o outro Brasil, o Velho, o fim da linha da nossa sociedade. Um submundo desolador.

Em contraponto, os únicos operários que merecem esse nome haviam trabalhado na Europa ou Estados Unidos. Ou seja, mantiveram os hábitos que aprenderam no exterior, pois concluíram que são eficazes.

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

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