sábado, abril 20, 2024

Desigualdade Social e Pobreza

Resumo

Este trabalho faz uma revisão dos métodos de obtenção das principais métricas da desigualdade social e pobreza hoje em vigor no mundo. Iniciamos com o estudo da estatística básica e as medidas da desigualdade social derivadas das distribuições estatísticas geradas nos levantamentos das distribuições de renda das populações. Em seguida, estudamos as medidas oriundas da teoria financeira e da teoria do bem-estar social. Depois, visitamos as métricas que derivam da teoria da informação e da entropia. Posteriormente, fazemos um apanhado dos requisitos mínimos que uma medida deve atender quando comparamos distribuições de desigualdade de renda. Passo seguinte, discutimos a iniciativa de modelar a desigualdade social. Então, vemos os desafios para passar dessas teorias à prática. Finalmente, mostramos como os conhecimentos estudados para avaliar desigualdade de renda podem ser aplicados para avaliar pobreza.

  1. Considerações iniciais

 Estamos particularmente interessados nos métodos estatísticos utilizados para determinação das principais métricas da desigualdade social.

Quando falamos sobre desigualdade social, a primeira questão que surge é “desigualdade do que em relação a quem? ”. Em outro trabalho, Bresciani Filho & Russo (2017) descrevem a complexidade de responder essa pergunta. Porém, o interesse aqui é a aplicação da Estatística para o levantamento dos indicadores e índices da desigualdade. Dada sua importância, usaremos a desigualdade da distribuição de renda como fio condutor deste trabalho.

Mas, mesmo o conceito da renda não é tão simples. Por exemplo, se estamos tratando da renda familiar de uma família composta de vários membros que residem numa mesma casa, não poderíamos, simplesmente, somar os rendimentos e dividir pela quantidade de membros, pois ela não necessita de um refrigerador ou um fogão para cada membro. Assim, Atkinson (2015) sugere, além de outras alternativas, dividir a renda familiar por raiz quadrada do número de membros. Portanto, é importante, sempre, esclarecer quais são as considerações, relativas ao conceito de renda, que estamos usando quando fazemos uma análise da distribuição de renda de uma dada população.

A linguagem mais apropriada para escrever este trabalho é a Matemática. Todavia, para quem não está familiarizado com ela, trazemos, inicialmente, os conceitos sobre o assunto de forma descritiva. O embasamento matemático desses conceitos será tratado em outro trabalho, em elaboração e a ser publicado oportunamente.

 

  1. Diagramas

 Os dados obtidos de uma população, como, por exemplo, as rendas individuais, são levados a um sistema de referência, geralmente, um par de eixos cartesianos, perpendiculares entre si sendo o horizontal chamado de abcissa e o vertical de ordenada. Os dados correspondem a determinado período, geralmente, um ano. Neste trabalho, não vamos considerar a existência de renda individual negativa, embora isso, teoricamente, seja possível. Nasce daí um diagrama com uma curva, que representa uma distribuição e que pode ser formalizada por uma função matemática. Veremos a seguir, alguns diagramas tradicionais para a distribuição de renda.

Parada de Jan Pen

 O diagrama proposto em 1971 pelo professor de economia Jan Pen da Universidade de Groningen, na Holanda, representa a simulação de uma parada onde as pessoas são ordenadas das mais baixas à frente para as mais altas. Fazemos a altura das pessoas equivalente à renda anual de cada membro da população. Plotamos no eixo das abcissas a proporção das pessoas que já desfilou e nos eixos das ordenadas a correspondente altura da pessoa. Medeiros (2012) afirma que a parada, via de regra, inicia-se com muitos anões menores, quando comparados com os que conhecemos hoje, e termina com pouquíssimos gigantes, extremamente altos.

Curva de Lorenz

 Este gráfico foi proposto pelo economista americano Max Otto Lorenz em 1905. Ele também se refere a parada ordenada de maneira ascendente de renda anual recebida, sendo que, agora, plotamos a proporção da população que já desfilou no eixo das abcissas e a proporção da renda anual acumulada correspondente, no eixo das ordenadas. Podemos imaginar que a renda total da população seja um bolo a ser fatiado para seus indivíduos. A curva de Lorenz mostra então, para uma dada porção da população ordenada por renda anual ascendente, qual foi a proporção do bolo já distribuída. Logo adiante, daremos mais detalhes sobre esta curva, que é, conforme Medeiros (2012), a mais conhecida e, portanto, largamente usada.

Distribuição de frequências

 Plotamos, aqui, no eixo das abcissas a renda anual das pessoas dividida em classes iguais, os quantis e, no eixo das ordenadas a quantidade de pessoas pertencentes ao correspondente quantil. Assim, a quantidade de pessoas representa a frequência de cada quantil na população. Temos, então o histograma que retrata a distribuição de frequência da população. Geralmente, a população é muito grande e o número de quantis também. Podemos ter, por exemplo, cem quantis (centis). Então, vamos desenhar uma curva contínua envolvendo os quantis e teremos, consequentemente, a curva denominada distribuição de frequência.

 

  1. Medidas de desigualdade obtidas da teoria estatística básica

 Destacamos acima algumas maneiras de apresentar a distribuição de renda de uma população por meio de diagramas. Há outros tipos de diagrama. Por exemplo, por questões de escala, muitas vezes é difícil desenhar uma curva de distribuição de frequência dentro do espaço disponível no papel. Assim, conforme sugere Cowell (2009), usamos a escala logarítmica no eixo das abcissas.

 Esses diagramas agem como uma fotografia da distribuição de renda de dada população num dado momento do tempo. Deles podemos tirar conclusões a respeito da distribuição. Como observa Cowell (2009), cada tipo de diagrama acima dá ênfase a diferentes aspectos da distribuição. Por exemplo, a curva da parada de Pen foca a enorme diferença entre as alturas dos indivíduos; a distribuição de frequência apresenta mais claramente a distribuição de renda da porção intermediária do campo de definição do histograma; já a escala logarítmica captura melhor, além da porção intermediária, também os extremos, porém sacrifica a simplicidade de interpretação.

 Sabemos que, dada uma distribuição, existem medidas de tendência central, como a média aritmética, a mediana e a moda, e também há medidas de dispersão, como a amplitude, o desvio padrão e a variância. Além disso, existem várias medidas de desigualdade, como veremos a seguir. As medidas de desigualdade servem para vários propósitos de análise da distribuição de renda de uma população, não apenas estática, num dado instante, como também dinâmica, quando queremos analisar as alterações do perfil da distribuição com o passar do tempo.

Amplitude

 Consideramos o diagrama da Parada de Pen descrito acima. Define-se medida de desigualdade amplitude como sendo a diferença entre o valor máximo e o valor mínimo, respectivamente, da distribuição de renda. A amplitude não é uma medida sensível da desigualdade de renda, principalmente para uma análise dinâmica, pois não oferece informações do que ocorre entre os valores extremos da distribuição.

Coeficiente de Gini

O denominado Índice de Gini muitas vezes também conhecido como Coeficiente Gini, recebe o nome de seu criador Corrado Gini, em decorrência dos estudos conduzidos sobre a concentração de renda na população em diferentes regiões europeias no começo do século passado (GINI,1909).

O IBGE (2015) utiliza esse índice e o descreve da seguinte forma: “Medida de desigualdade relativa obtida a partir da Curva de Lorenz, que relaciona o percentual acumulado da população em ordem crescente de rendimentos (eixo x) e o percentual acumulado de rendimentos (eixo y). Quando os percentuais acumulados de população correspondem aos percentuais acumulados de rendimentos (10% da população com 10% dos rendimentos, por exemplo), tem-se a linha de perfeita igualdade. A Curva de Lorenz representa a distribuição real de rendimentos de uma dada população tendo, em geral, formato convexo. Quanto mais afastada da linha de perfeita igualdade, mais desigual a distribuição. O índice de Gini é uma medida numérica que representa o afastamento de uma dada distribuição de renda (Curva de Lorenz) da linha de perfeita igualdade, variando de “0” (situação onde não há desigualdade) e “1” (desigualdade máxima, ou seja, toda a renda apropriada por um único individuo).”

 Atkinson (2015, p.368-369) descreve também este coeficiente com outras palavras: (a) A Curva de Lorentz para uma distribuição de renda é uma curva formada pela classificação de pessoas segundo sua renda, e representa sua participação cumulativa na renda total, conforme a pessoa sobe na classificação, em termos de distribuição. A curva começa em 0% e termina em 100%. Se todas as rendas fossem idênticas, a curva seguiria a diagonal, unindo esses pontos finais (a linha de igualdade); (b) Índice de Gini é a área entre a curva de Lorenz e a linha de igualdade dividida pela área do triângulo total. É uma medida de desigualdade relativa com valores que vão de 0% (igualdade total; todos tem a mesma renda) a 100% (uma pessoa recebe toda renda).

Coeficiente de variação

 Dada uma curva de distribuição de frequência da renda anual de uma população, é comum considerar a variância da distribuição ou seu desvio padrão (raiz quadrada da variância) como medidas de desigualdade social. Pode-se padronizar as medidas da dispersão por meio do coeficiente de variação, calculado pela divisão do desvio padrão pela média da distribuição.

  1. Medidas de desigualdade obtidas das teorias financeira e do bem-estar social

 Os diagramas e as suas medidas de desigualdade, que acabamos de descrever, são importantes métodos de análise. Mas eles têm suas limitações, como, por exemplo, a sensibilidade das medidas em detectar o efeito de transferências de renda, entre indivíduos, na desigualdade social resultante. Para aprofundar mais neste tema, é preciso lançar mão de conceitos de finanças e do bem-estar social.

Princípio de transferência de Pigou-Dalton

 No início do século XX, o economista britânico Hugh Dalton escreveu um artigo que se tornou pioneiro por investigar aspectos analíticos da medição da desigualdade de renda. Neste artigo, Dalton (1920) considerou a necessidade de analisar não somente a desigualdade na distribuição de renda, mas também o efeito da distribuição de renda sobre a distribuição e a quantidade total do bem-estar econômico. Atkinson e Brandolini (2014) afirmam que adotando essa perspectiva “instrumental” específica, relacionando a escolha das medidas de desigualdade com a preocupação com o bem-estar social, Dalton foi capaz de penetrar, nesse tema, muito além de seus predecessores, que escreveram sobre desigualdade. Assim, Dalton (1920) considerou como um princípio geral, o que chamou de princípio de transferência. Esse princípio diz que, se existir transferência de renda entre duas pessoas e, se esta transferência for, dentro de certas condições, daquele com maior renda para o de menor, certamente a desigualdade diminuirá. Esta ideia está alinhada com a de Pigou (in: Dalton, 1920, p. 351). Daí o nome de “princípio de transferência de Pigou-Dalton”.

De acordo com esses conceitos, Dalton (1920), sugere uma medida de desigualdade de renda. Como veremos a seguir, passado meio século após a publicação do artigo de Dalton, sua definição do índice de desigualdade de renda foi contestada por novos conceitos. Todavia, Atkinson e Brandolini (2014, p.16-17) enfatizam que “Dalton convidou cientistas sociais a refletir sobre o significado de bem-estar para as medidas de desigualdade usadas no estudo da distribuição de renda. Ele fez isto a partir da perspectiva do utilitarismo, mas o significado da sua intuição foi amplo e, permitiu que fosse reinterpretado por pessoas com diferentes visões sobre justiça distributiva. Isto levou meio século e substancial avanços em campos vizinhos, tais como teoria da escolha social e teoria de decisão sob risco, antes que sua inspiradora contribuição pudesse crescer em campo fértil”. O artigo de Dalton “foi selecionado pela Royal Economic Society em seu 125º aniversário como um dos artigos proeminentes publicados no Economic Journal da época”, conforme exaltou Atkinson (2015, p. 376).

Medidas de desigualdade social de Atkinson

 Em seu seminal artigo, Atkinson (1970) se propôs esclarecer alguns desafios básicos ao examinar as propriedades das medidas de desigualdade social comumente empregadas, e discutir possíveis novos caminhos para tratar o tema, e, para tal, se orientou nos conceitos de Dalton.

 Durante os cinquenta anos que separam esses dois artigos acima mencionados, a teoria financeira avançou bastante no campo das escolhas de prospecto de risco por parte dos indivíduos. No mundo real, geralmente as escolhas envolvem risco, isto é, as escolhas devem ser feitas sob a condição de incerteza.

 Quando estudamos preferência sob condições de incerteza, nos referimos geralmente às cestas de ativos que podem ser na forma de produtos comprados, por exemplo, cesta de ações ou investimento em dinheiro. Para considerar o risco envolvido, foi criado o conceito de loteria. Uma loteria oferece, como consequência de um investimento, vários resultados de pagamentos possíveis, acompanhados de suas respectivas probabilidades de ocorrência. O resultado final dependerá das condições futuras do ambiente social, político e econômico em geral. A partir do conceito de loteria, foi criado um sólido arcabouço matemático para suportar esta teoria. Um conceito importante decorrente é o de avaliação do comportamento do investidor perante o risco. A maioria possui aversão natural ao risco, cuja intensidade pode ser avaliada por meio de medida de aversão ao risco. Evidentemente, há aqueles que são indiferentes ao risco, bem como aqueles que são propensos ao risco. Paralelamente, a esta teoria, floresceu também, a teoria do bem-estar social suportada pelo desenvolvimento de outro forte aparato matemático.

 Atkinson (1970), seguindo as ideias de Dalton, considerou a distribuição de renda anual da população como sendo prospecto de risco (loteria), cujo investidor não seria o indivíduo, mas a sociedade composta por todos os indivíduos da distribuição. E, assim, pode então, associar o formalismo matemático das teorias financeira e do bem-estar, recém desenvolvido, para analisar a influência da distribuição de renda no bem-estar da sociedade. Como consequência, surge o conceito de aversão à desigualdade da sociedade, semelhante ao conceito de aversão ao risco do investidor em ativos sob incerteza. A partir disto, o autor cria uma família de medidas de desigualdade, em função do denominado parâmetro positivo que avalia a aversão à desigualdade de renda da sociedade. Segundo Medeiros (2012) quando esse parâmetro é igual a zero, não há aversão à desigualdade de renda e, portanto, o crescimento puro de rendimentos é sempre melhor que qualquer outra situação. Quando esse parâmetro tende a infinito, há aversão completa a qualquer desigualdade, e neste caso, a única forma de aumentar o nível de bem-estar social desta população é beneficiar o indivíduo que está em piores condições.

 Dada uma distribuição de renda, é então possível quantificar sua influência no bem-estar da sociedade. O índice de Atkinson toma como referência uma distribuição de renda imaginária, chamada distribuição equivalente, que leva ao mesmo bem-estar e que a renda seja redistribuída igualmente a todos os indivíduos a partir da renda total real. A medida desse índice avalia a relação entre a média da distribuição igualitária equivalente hipotética – que ofereça o mesmo nível de bem-estar social resultante da distribuição de renda real – e a média da distribuição de renda real, e essa medida varia convenientemente entre 0 (igualdade completa) e 1 (completa desigualdade). Atkinson (1970) chama atenção ainda, de que o índice pode ser facilmente decomposto, se desejamos medir a contribuição da desigualdade “dentro” e desigualdade “entre” subgrupos da população.

  1. Medidas de desigualdade obtidas da teoria da informação e entropia.

Vamos estudar outras medidas de desigualdade social que podem ser obtidas, por analogia, com a teoria da informação. Então, para isso, devemos indicar alguns conceitos básicos.

Conceito de informação

 Consideramos um conjunto de eventos atrelados à probabilidade de ocorrência. Supomos que cada evento encerre uma informação. Vamos supor ainda que o evento #1 ocorreu. Assim, queremos dar um valor à informação nele contida, de tal modo que este valor seja alto se a probabilidade de ocorrência do evento #1 for baixa, isto é, perto de zero, ou que o valor seja baixo se a probabilidade de ocorrência de #1 for alta, isto é, próximo de 1. Em outras palavras, quando a probabilidade de ocorrência de uma informação for próxima de zero, a informação nela contida terá um valor alto e vice-versa.

Conceito de entropia

     Uma maneira de avaliar o grau de desorganização de um conjunto de eventos probabilísticos é a utilização de uma grandeza denominada entropia, nome inspirado no conceito de entropia de um sistema termodinâmico; quanto maior a entropia maior a desorganização do conjunto de eventos considerados.

Medidas de desigualdade social de Theil

 O econometrista holandês Henri Theil imaginou que os indivíduos de uma população recebem uma fração da renda total e, portanto, essa fração poderia representar a probabilidade associada a um universo de eventos. Desta forma, ele percebeu que a entropia poderia medir o grau de igualdade de uma distribuição de renda, isto é, quanto mais desorganizada for a distribuição de sua renda, mais igualitária sua população será, em termos de rendimento anual. Hoffmann (2006) demonstra que o valor máximo da entropia é alcançado quando todas as probabilidades de ocorrência das alocações de renda forem iguais.

 Segundo Hoffmann (2006), Theil propôs duas medidas de desigualdade de renda chamadas índices de Theil. Uma delas parte da comparação da entropia real do conjunto com a entropia máxima possível. A outra requer uma análise mais detalhada na sua conceituação, mas ambas são nulas quando houver perfeita igualdade na distribuição de renda da população.

Ainda segundo Hoffmann (2006), as medidas da desigualdade de Theil podem ser decompostas em uma medida de desigualdade social entre grupos (inter-regional) e, uma média ponderada das medidas de desigualdade social dentro dos grupos (dentro das regiões). Esse autor prova que as medidas da desigualdade social de Theil seguem o princípio da transferência de Pigou-Dalton, isto é, que seus valores aumentam quando realizada uma transferência regressiva de renda, ou seja, de um indivíduo de menor renda para um indivíduo de maior renda.

Variância dos logaritmos da renda e o índice de Herfindahl

 Vimos, no início, que um diagrama de distribuição de frequência da renda pode ser construído numa escala logarítmica nos eixos das abcissas. Neste momento, é interessante dizer que a variância dos logaritmos da renda é muito usada como medida de desigualdade de renda.

 Hoffmann (2006) afirma que essa variância pode também ser decomposta, como as medidas de Theil, quando os dados são disponíveis e agrupados por algum critério, como, por exemplo, o regional. Ao calcular as expressões para a decomposição da variância, o autor relata semelhanças com as expressões para os índices de Theil. Todavia, ele mostra que a variância dos logaritmos não obedece ao princípio da transferência de Pigou-Dalton

 Ao tratar dos índices de Theil, Cowell (2009) reconheceu que o índice de Herfindahl pode ser usado como medida de desigualdade. Esse índice é utilizado, por exemplo, para indicar a participação em vendas de dada empresa no seu mercado, e no caso do estudo da desigualdade está relacionado com a fração de renda de cada indivíduo.

  1. Propriedades das medidas de desigualdade social

Descrevemos neste item as propriedades, conhecidas como princípios ou axiomas, que uma medida de desigualdade social deve obedecer. Isto ajudará na escolha mais apropriada da medida, além de dar suporte na construção de funções matemáticas que possam ser usadas na tentativa de modelar a desigualdade social de dada população. Com este objetivo seguiremos o roteiro de Cowell (2009).

 Descrevemos neste item as propriedades, conhecidas como princípios ou axiomas, que uma medida de desigualdade social deve obedecer. Isto ajudará na escolha mais apropriada da medida, além de dar suporte na construção de funções matemáticas que possam ser usadas na tentativa de modelar a desigualdade social de dada população. Com este objetivo seguiremos o roteiro de Cowell (2009).

Princípio fraco de transferências

 Este princípio considera dois indivíduos: o indivíduo primeiro com uma certa renda, e segundo indivíduo com uma renda maior. Então a transferência positiva de renda do segundo indivíduo para o primeiro indivíduo deve diminuir a desigualdade de renda. Nem todas as medidas de desigualdade obedecem este princípio; algumas medidas passam pelo teste, outras não.

 Este princípio leva o nome de princípio fraco de transferências porque seu único requisito é, dada a transferência conforme acima, a desigualdade deve decrescer, mas não diz quanto.

Princípio da independência da escala de renda

 Este princípio diz que a medida da desigualdade da ‘fatia do bolo’ não deve depender do ‘tamanho do bolo’. Se a renda de cada o indivíduo muda na mesma proporção, então podemos sustentar que não houve alteração essencial na distribuição de renda e, portanto, o valor da medida da desigualdade deverá manter-se a mesma. Esta propriedade está presente na maioria das medidas já examinadas.

Princípio da população

 Este princípio requer que a desigualdade da distribuição do ‘bolo’ independa da quantidade de pessoas que recebem as ‘fatias do bolo’. Supomos medir a desigualdade de uma economia particular com n indivíduos e surge uma outra economia idêntica. Então, supomos que temos uma economia combinada com 2n indivíduos e com a mesma proporção da população recebendo qualquer renda dada. Se a desigualdade medida é a mesma para qualquer replicação da economia como esta, então a medida da desigualdade satisfaz o princípio da população. Todavia, não é evidente que esta propriedade seja desejável. Consideramos que temos uma população com dois indivíduos onde um deles tem toda a renda. Então, replicamos a economia como foi dito acima, tal que agora, temos quatro pessoas com duas sem renda e duas dividindo igualmente a renda total. Cowell (2009) considera discutível se estas duas populações são “igualmente desiguais”.

Princípio da decomposição

 Este princípio implica que deveria existir uma relação coerente entre desigualdade de toda sociedade e desigualdade em suas partes constituintes. Em outras palavras, deveríamos ser capazes de construir uma equação dando a desigualdade total como função da desigualdade dentro de subgrupos constituintes e desigualdade entre os subgrupos. Todavia, para isso, é preciso obedecer uma propriedade elementar: que as classificações de desigualdade, dada por distribuições alternativas na população como um todo, devam estar alinhadas com as classificações de desigualdade das correspondentes distribuições dentro de quaisquer subgrupos dos quais a população é composta. Cowell (2009), em função disto, ensaia dois exemplos. No primeiro, o autor considera uma economia de seis indivíduos divididos em dois grupos de três indivíduos, Leste e Oeste. Para cada grupo, ele ensaiou dois programas econômicos iguais e avaliou a desigualdades resultantes através diferentes medidas. Em seguida, usando as mesmas medidas, ele avaliou as desigualdades resultantes para a população combinada Leste/Oeste. Cowell (2009) repetiu este ensaio para a condição onde a renda do Leste foi multiplicada por dez. Desse estudo, o autor concluiu que algumas medidas de desigualdade não podem ser decompostas pois, é possível, para elas, registrar aumento da desigualdade em todos os subgrupos e, ao mesmo tempo, registrar um decréscimo da desigualdade no todo da população.

Princípio forte de transferências

 Consideramos a transferência, sob certa condição, de pequena fração de renda do indivíduo #2 de maior renda para o indivíduo #1 de menor renda. Dizemos que a medida de desigualdade satisfaz o princípio de transferência no sentido forte se a quantidade de redução da desigualdade depender somente da condição imposta à transferência em si, não importando quais dois indivíduos nós escolhemos. Considerando as medidas mostradas até aqui, Cowell (2009) afirma que somente os índices de Theil seguem os cincos princípios. Com relação a outros índices estudados, verifica-se que não atendem todos os princípios apresentados.

 

  1. Modelos de desigualdade social

 Estamos interessados, muitas vezes, em construir modelos matemáticos para a distribuição de renda devido a vários objetivos, como, comparar duas distribuições de diferentes populações, examinar a evolução com o tempo de uma distribuição, analisar uma determinada porção de distribuição onde os dados estão incompletos e, mesmo, preparar recomendações para solucionar desafios econômicos.

 Naturalmente, esses modelos matemáticos são funções de distribuição estatísticas. Na verdade, essas funções representam uma família de distribuições, não apenas uma única distribuição. Cada membro da família tem características comuns que são representadas pelos parâmetros da função. Uma função estatística largamente usada para construir modelos populacionais de indivíduos é a chamada distribuição normal ou de Gauss. As alturas de indivíduos podem ser representadas por uma distribuição normal, por exemplo. Uma função normal fica definida quando especificamos valores numéricos para sua média e desvio padrão. Assim, a família de funções normais é caracterizada por esses parâmetros.

 Todavia, em se tratando de renda, as curvas de distribuição de frequência mais comuns não são simétricas, tendo geralmente uma cauda prolongada à direita. A distribuição lognormal reflete bem esta forma, ao contrário da distribuição normal que é simétrica. Há também outros motivos pelos quais a distribuição lognormal é conveniente, como por exemplo, nos casos em que a distribuição de renda não siga exatamente a distribuição lognormal, sua correspondente função bem-estar social segue; além disso, seus parâmetros são de fácil interpretação.

Determinação dos modelos de desigualdade

 A distribuição lognormal geralmente representa bem a distribuição de renda analisadas na prática. Mas, elas não são as únicas. Cowell (2009) cita outras, tais como Beta, Weibull, Gamma, Exponencial, Pareto tipo I, II e III. Uma vez escolhida a função da distribuição de renda, então, definimos os modelos para desigualdade. A partir disto, Cowell (2009) determina funções entre os parâmetros da distribuição de renda e os diversos índices.

 Para finalizar este item, reportamos três importantes conclusões trazidas por Cowell (2009) sobre a construção de modelos: a) nem a hipótese de lognormal nem outras oferecem uma lei de distribuição em que se tenha um modelo exato de renda ou de distribuição a longo prazo; b) nenhuma hipótese funciona muito bem, pois o mundo real é muito complicado para isso, a menos que olhemos para uma porção muito estreita e bem definida do mundo real, como, por exemplo a renda dos fazendeiros ou de pessoas com grandes riquezas; c) apesar disso, uma ou outra destas funções é uma aproximação razoável para um número encorajador de casos.

  1. Da teoria à prática

 Até aqui nos referimos a um cabedal de conhecimento construído, principalmente, ao longo dos últimos cem anos, que possibilita, teoricamente, fazer uma boa análise da desigualdade de renda de uma população por meio de várias medidas de desigualdade oriundas de diferentes distribuições estatísticas. Todavia o mundo real cria várias dificuldades para alinhar a teoria à realidade. Vamos, então, visitar os maiores desafios que surgem para conseguir este alinhamento. Seguimos, mais uma vez, na medida do possível, o roteiro de Cowell (2009).

Coleta de dados

 Inicialmente, para coletar os dados, devemos saber o que estamos buscando. O conceito de renda não é simples, como destacamos no início deste trabalho. Temos que saber o que está incluído nele e o que não está. Bresciani Filho & Russo (2017) exploram este assunto com um pouco mais de detalhe. Dito isso, a preocupação fica por conta do método a ser utilizado para obtenção dos dados populacionais. Segundo Cowell (2009), temos dois métodos: a) perguntar às pessoas as informações necessárias; b) solicitar compulsoriamente as informações desejadas ou legalmente possíveis. No primeiro caso, o grande desafio se refere à possibilidade do entrevistado não querer responder várias questões ou mesmo omitir informações em suas respostas. No segundo caso, as informações são geralmente obtidas do órgão responsável pelo imposto de renda. Mas, sabemos que mesmo neste caso, há muitas situações de sonegação de imposto, que distorcem as informações obtidas. Evidentemente, as novas tecnologias de informação utilizadas pelos governos, bem como os tratados internacionais, têm aumentado a fidelidade das informações obtidas.

Cálculo das medidas

 Uma vez tendo em mãos os dados de uma população, veremos quais são os principais obstáculos para chegar nas medidas de desigualdade de renda. Cowell (2009) supõe que a medida de desigualdade desejada possa ser obtida pela integração de uma função contínua. Integrar uma função contínua é a mesma coisa que achar a área debaixo da curva limitada pelo eixo das abcissas. O desafio, entretanto, é que a função é continua, mas os dados da população são discretos. Isto exige que usemos algum critério para preencher os vazios do eixo da renda.

 Entretanto, podemos querer usar outro método para computar as medidas de desigualdade. Estamos nos referindo a ajustar uma função distribuição conhecida aos dados disponíveis e, então, calcular daí as medidas desejadas. Para tanto são necessários dois passos: a) dada uma família de distribuição, estimar os parâmetros que caracterizam o membro particular desta família que melhor se encaixa nos dados; b) dada a fórmula de uma particular medida de desigualdade em função dos parâmetros estimados no passo anterior, calcular estatisticamente as medidas. Finalmente, Cowell (2009) faz as seguintes observações sobre este método: a) devemos inspecionar as propriedades estatísticas dos estimadores utilizados no procedimento de ajustagem; b) devemos checar quais porções da distribuição tivemos que truncar para conseguir o ajuste; c) devemos ter o cuidado de certificar a validade do critério empregado.

Avalição dos cálculos

 Cowell (2009) ensaia a comparação de duas distribuições de uma população considerando quatro índices de desigualdade para os anos de 1985 e 1990 e considera que um dos índices de 1990 é um pouco menor do que seu correspondente de 1985. A pergunta que surge é se essa diferença é significativa ou ambos valores não significam uma queda real da desigualdade. À primeira vista, logo se pensa em teste estatístico de significância para resolver este problema. O autor, entretanto, adverte que existem, pelo menos, três interpretações para a palavra “significância”: a) significância estatística à luz da variabilidade devido a procedimento de amostragem; b) significância estatística em vista do agrupamento das observações; c) significância política ou social.

 Porém, mesmo quando a análise mostra haver significância estatística, o autor recomenda uma autoanálise através do questionamento se, realmente, estamos satisfeitos com o resultado. Devemos, inicialmente, nos certificarmos de que existiu concordância prévia sobre a definição de “renda” – lembrando, outra vez, que este ponto é complexo – e, também, sobre a escolha das medidas de desigualdade.

  1. Medidas de pobreza

 Até aqui, dedicamos nosso trabalho à desigualdade de renda. Mas, reservamos este espaço para o tema da pobreza, dada sua importância.

 A economista norte-americana Deirdre McCloskey em entrevista ao jornal Valor Econômico (2017) declarou que “pobreza e tirania são o problema, não desigualdade”. Ela se referia à desigualdade de renda.

 Por outro lado, Atkinson (2015) examinando dados de quinze países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) concluiu que pobreza maior tende a andar ao lado de extratos superiores da renda.

 Mesmo assim, Atkinson e Marlier (2010) destacam a dimensão “pobreza” das demais dimensões da inclusão social ao definirem inclusão social como sendo um “processo de combate à pobreza e à exclusão social”, sendo esta última uma exclusão involuntária de indivíduos e grupos dos processos sociais, econômicos e políticos, o que impede sua participação na sociedade em que vivem.

 Neste momento, duas observações são importantes. Devemos, sempre, lembrar que renda é dimensão de fluxo, isto é, recursos auferidos durante um período de tempo qualquer; e pobreza – ou riqueza – é dimensão de estoque, ou seja, recursos acumulados disponíveis num dado momento do tempo. Em segundo lugar, desigualdade pode ser caracterizada para renda, consumo e ativos, além de outros itens. Portanto, conforme afirma Cowell (2014), se consideramos a desigualdade de ativos, ou de consumo, ou de renda, para analisar a pobreza, teremos uma distribuição de números reais e, daí, podemos obter as medidas de desigualdade como fizemos, neste trabalho, para a renda. Ainda, segundo o autor, a diferença fundamental entre o problema de medir a desigualdade e o problema de medir a pobreza está na existência do conceito de linha da pobreza.

 De acordo com Hoffmann (2006), são consideradas pobres todas as pessoas cuja renda é menor ou igual a um valor real pré-estabelecido denominado linha da pobreza. O autor alerta que a mensuração da pobreza, com base exclusivamente na renda, apresenta pelo menos dois defeitos sérios: a) a renda é uma medida bastante imperfeita das condições de vida de um indivíduo; b) a ausência de critério claro para estabelecimento da linha da pobreza.

 Um índice de pobreza intuitivo é o chamado proporção de pobreza, obtido pela razão entre o número de indivíduos pobres (pelo critério acima) e o número de indivíduos da população analisada. Mas, de acordo com Cowell (2014) há várias medidas de pobreza que obedecem a princípios ou axiomas, assim como vimos para desigualdade de renda, embora tais princípios sejam outros. Todavia, as definições destas medidas fogem do escopo deste trabalho.

 Avaliar pobreza pela da renda parte do princípio que, baixa renda inviabiliza ou dificulta o indivíduo ter condições de ser incluído socialmente, ou em outras palavras, ter uma vida digna.

  1. Algumas considerações finais

 Seguem algumas considerações sobre o que observamos neste estudo:

  1. a)Inicialmente, as medidas de desigualdade de renda da população eram obtidas das análises estatísticas tradicionais.
  2. b)As análises de desigualdade de uma distribuição de renda, avaliadas tradicionalmente, ganharam grande impulso através da vinculação da sua influência no bem-estar da sociedade. Adicionalmente, o uso dos conceitos de entropia vindos da teoria da informação ampliou ainda mais esta evolução.
  3. c)A utilização de princípios ou axiomas, para os quais as comparações de desigualdades entre distribuições devem ser submetidas, seleciona, entre grande variedade de medidas alternativas, os índices mais adequados ao propósito da análise.
  4. d)Embora, o índice de Gini seja, geralmente, o mais divulgado para análise da desigualdade social, os índices de Theil são, entre os mais conhecidos, os únicos que satisfazem os cinco princípios estudados para a escolha das medidas de desigualdade de renda.
  5. e)A comparação da desigualdade entre duas distribuições distintas oriundas da evolução no tempo de uma dada população é muito beneficiada com o processo de modelagem matemática destas distribuições. Existem várias famílias de curvas apropriadas para isto, sendo muito comum, a família da distribuição lognormal e a família da distribuição de Pareto tipo I.
  6. f)Uma vez concluída a análise estatística da evolução da desigualdade de uma população é importante fazer uma crítica dos resultados, não apenas técnica sobre o método utilizado, mas também submetê-la a questionamento político e social.
  7. g)Embora, renda e pobreza tenham características próprias, as medidas de pobreza, geralmente, se baseiam na distribuição de renda.

Referências

ATKINSON, Anthony B. Desigualdade – O que pode ser feito? São Paulo: LeYa, 2015.

ATKINSON, Anthony B. On the Measurement of Inequality, England, Journal of Economic Theory, vol.2, p. 244-263, 1970.

ATKINSON, Anthony B & BRANDOLINI, Andrea. Unveiling the Ethics behind Inequality Measurement: Dalton’s Contribution to Economics, Oxford, 2014.

ATKINSON, Anthony B & MARLIER, E. Analyzing and measuring social inclusion in the global context. Department of Economic and Social Affairs Publication, United Nation, New York, 2010.

BRESCIANI FILHO, Ettore & RUSSO, Vivaldo A.F. Considerações sobre a Desigualdade, Inclusão e Exclusão Social, (Relatório de Pesquisa), Academia Brasileira da Qualidade, São Paulo, Dezembro de 2017.

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COWELL, Frank A. Measuring Inequality, Oxford University Press, UK, 2009.

COWELL, Frank A. Inequality and Poverty Measures, prepared for Oxford Handbook of Well-Being And Public Policy, UK, 2014.

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GINI, Corrado. Indici di concentrazione e di dipendenza. Atti della riunione della Società Italiana per il Progresso delle Scienze, Padova 09.1909. Roma: Società Italiana per il Progresso delle Scienze, 1910, p. 453-459.

HOFFMANN, Rodolfo. Estatística para Economistas, São Paulo: Cengage Learning, 2006.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, Indicadores de Desenvolvimento Sustentável, Brasília: IBGE, 2015.

McCLOSKEY, Deirdre, Valor Econômico, ano 18, n. 888, 2017, p.4

MEDEIROS, Marcelo. Medidas de Desigualdade e Pobreza, Brasília: Editora UnB, 2012.

 

Eng. Vivaldo Antonio Fernandes Russo[1]

Prof. Dr. Ettore Bresciani Filho[2]

[1] Engenheiro Mecânico (FEM-UNICAMP); Diretor Presidente Aposentado da EATON-Hydraulics da América do Sul; Professor do Curso de Extensão (FEM-UNICAMP); Membro da ABQ.

[2] Engenheiro Aeronáutico (ITA); Doutor em Engenharia e Professor Livre-Docente (EPUSP); Professor Titular Aposentado (FEM-UNICAMP); Membro do CLE-UNICAMP; Membro da ABQ.

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

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