As raízes profundas da desigualdade

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Claudio de Moura Castro

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo – não tanto porque os pobres sejam os mais pobres, mas é que há um grande o número de ricos. Sendo assim, conhecer as raízes desta enorme distância social não é assunto de menor relevo.

Ao aportar aqui, Pedro Alvares Cabral encontrou tribos em que quase todos tinham um status muito parecido. De lá para cá, melhoraram amplamente as condições de vida, todavia, acentuaram-se as distâncias entre pobres e ricos.

O assunto é complicado, pois há diversos fatores em jogo (heranças, patrimonialismo, transferências e outros). Mas podemos simplificar dizendo que a grande “culpada” foi a Revolução Industrial que eclodiu há três séculos. Antes dela, afora o clero e a burocracia, tanto fazia ser educado ou não.

O nível de instrução não importava no mercado de trabalho, fosse de nobres ou artesãos. De fato, para a vasta maioria, a educação era de pouca serventia prática. Desenvolveu-se inicialmente nos países protestantes, mas era para ler a Bíblia.

Os ofícios aprendiam-se com os mais experientes e o desempenho profissional passava longe dos livros, das escritas e das contas. Nessas sociedades antigas, o sucesso dependia de ser bem-nascido, de esforço pessoal e, por que não, de sorte.

A partir do século XVIII, com o vendaval das mudanças tecnológicas, insidiosamente, o desempenho nas profissões passou a depender mais daqueles conhecimentos aprendidos na escola. Aumentou o volume de coisas precisando ser lidas e tornou-se necessário escrever aqui e acolá. Os números borbulharam por todos os lados. Entender os princípios científicos das máquinas e processos ficou cada vez mais imprescindível. Mesmo as ocupações simples passam a requerer mais trato com a palavra escrita. Não é por acaso que os operários que fizeram a Revolução Industrial inglesa eram bem alfabetizados. No mundo de hoje, além da destreza com o pincel, o pintor precisa ler as instruções na lata de tinta, para saber qual o pincel adequado, o solvente e a diluição recomendados.

As catedrais góticas eram construídas praticamente sem plantas. Hoje, um reles galinheiro não se constrói sem elas. Isso, para não falar dos desafios da informática. E muito do que era aprendido ao observar os outros ou ouvir os conselhos dos mais experientes passou a ser empacotado em livros e manuais.

Se todos tivessem a mesma educação, o sucesso continuaria a depender de sorte, berço, esforço ou talento. Mas não é assim. E esse é o cerne da transformação. A escola tornou-se o grande filtro para a vida profissional. No sucesso de cada um na escola, delineia-se o seu futuro. Portanto, a escolaridade adquirida passa a ser o grande determinante da trajetória profissional futura.

Quem tem mais e quem tem menos educação depende de fatores como: (i) A existência de escolas e a sua qualidade (ii) Acesso às escolas melhores. (iii) O desenvolvimento cognitivo dos alunos antes de tomar contato com a escola. (iv) Aqueles valores e expectativas que determinam o grau de esforço devotado aos estudos.

Passo a passo, a escola vai filtrando quem irá mais longe. E dentro de cada nível atingido, privilegia quem aprendeu mais e tem chances de prosseguir. Em função disso, determinam-se as chances de uma trajetória profissional mais promissora.

De fato, como demonstram centenas de pesquisas, quanto mais bem sucedido na carreira escolar, maior a chance de subir as escadas do sucesso e dos proventos. Dentre os mais educados, poucos não têm seu esforço recompensado. E nos dias que correm, poucos têm êxito com escassa escolaridade. Não se trata aqui de gostar, achar ou discordar. É da lógica das sociedades modernas que isso seja assim, nas mais capitalistas ou nas mais estatizadas. As exceções estão nas artes e nos esportes que dependem pouco da escolaridade adquirida.

Se esses raciocínios são corretos – e é difícil discordar deles – na raiz da nossa má distribuição de renda está a péssima distribuição da escolaridade. Portanto, é razoável acreditar que, sem mudar a educação, não lograremos reduzir as distâncias entre pobres e ricos.

É uma boa notícia, pois oferece uma receita veraz, clara e simples para lidar com a desigualdade. Mas é também uma lastimável notícia, quando consideramos as dificuldades de implementar o receituário.

Se não há escolas para os pobres, a solução é simples: que sejam construídas e operadas. Felizmente, isso aconteceu no Brasil, nas últimas décadas. Assim sendo, praticamente todos se matriculam e, em média, lá permanecem por quase dez anos. Porém, essa é a barreira mais fácil. O grande escolho são as enormes diferenças na educabilidade de cada um e na qualidade da escola a que tem acesso.

Em uma escolinha de futebol, a origem social do participante faz pouca diferença. O favelado talentoso e dedicado pode virar celebridade. E o filho do desembargador pode não ser chamado para time algum.

Contudo, na educação acadêmica não é assim. Os conhecimentos e estilos de convivência requeridos para o sucesso circulam livremente no entorno do menino rico. Com isso, ele chega à escola já sintonizado com suas exigências. E nas famílias pobres, chegar à escola é chocar-se com um mundo desconhecido, senão hostil. Não vem ao caso se tal circunstância seja justa ou injusta, é da natureza dos processos envolvidos.

Tudo começa com a percepção do papel da educação no futuro do filho. Quanto mais alto na sociedade, mais o assunto é inegociável e maior a preocupação. Nas classes mais altas, mesmo as brasileiras, há uma expectativa de que é preciso avançar na escolaridade. No extremo, pais judeus e orientais exercem uma pressão avassaladora. Não se discute se vai estudar, é um imperativo pétreo. Em contraste, quanto mais modesta a família, mais ambígua é a orientação paterna. Hoje todos vão para a escola, mas o insucesso é visto como uma fatalidade: “a cabeça dele não dá para a escola”.

Esta bifurcação atinge também o grau de dedicação aos livros. Cedo, os jovens de classe mais alta entendem que educação pode ser um fardo pesado, mas é inevitável. É preciso empenho, força de vontade e um consumo muito substancial de tempo. Não é assim com os mais pobres.

Do lado cognitivo, ao aprender a falar, a criança de classe mais alta interage com os pais através de uma linguagem logicamente mais rigorosa. Como nos diz a sociolinguística, filho de rico fala a língua da escola. As coisas têm nomes e as afirmativas dispensam o contexto para serem entendidas (“isso aqui” não é uma forma aceitável, “isso” tem nome e “aqui” também). Há perguntas e respostas, de ambos os lados. A curiosidade é despertada e alimentada. As crianças tropeçam nos livros espalhados pela casa. Ao chegar à escola, as diferenças já são gigantescas. A exemplo, filhos de gente educada conhecem dez vezes mais palavras que outros de origem muito modesta.

Vale insistir neste ponto. A aprendizagem – ou seja, o mais experiente ensinando ao aprendiz – é uma modalidade que existe até dentre outros primatas. Os macacos velhos ensinam aos filhotes. Na Idade Media Tardia foi mais estruturada e novas versões existem hoje, sobretudo, na formação para ocupações manuais qualificadas. Sendo assim, sua linguagem e pedagogia são acessíveis a todos.

Já a escola acadêmica nasce em níveis superiores, totalmente voltada para a nobreza e clero. Propõe-se, inicialmente, a lidar com temas rarefeitos como Teologia, Filosofia e Direito. Portanto, nasce em berço aristocrático e calibra a sua linguagem para este público. Quando é estendida para os níveis iniciais e, mais adiante, para o grande público, retém seus estilos, mesmo quando se propõe a abordar assuntos mais práticos. Sendo assim, não consegue se livrar de seu viés de origem. Não admira que camadas mais modestas tenham grandes dificuldades para entrar em seu mundo, sua lógica e sua forma de expressão.

Em suma, as famílias mais ricas detêm a chave do sucesso educativo dos filhos. A literatura científica francesa falava das famílias educógenas, ou seja, aquelas que acreditam em educação e dominam as técnicas de apoiar e eficazmente os filhos. Infelizmente, são poucas as famílias pobres que conseguem a mesma proeza.

O resultado é o que todos conhecemos. Como demonstra a econometria, a educação dos pais é o mais forte determinante do sucesso escolar dos filhos. E, por sua vez, esse é um excelente preditor do seu sucesso econômico.

A tese de doutoramento de Stephen Heyneman (1976), na Universidade de Chicago, é um aparente contraexemplo. Pesquisando alunos de Uganda, não encontrou correlação entre status dos pais e desempenho dos filhos na escola. Mas isso resulta do fato de tratar-se de uma sociedade muito primitiva onde a escolaridade ainda não significava muito. Em contraste, nas milhares de pesquisas sobre o assunto, a correlação é sempre alta, pois vivemos em sociedades em que as posições mais desejadas exigem cada vez mais escolaridade.

Essas observações tão robustas colidem com teorias levemente conspiratórias sobre os ricos bloqueando o avanço dos pobres. Ou outras sobre racismo. Porém sabemos que as causas da diferenciação são tão poderosas que os ricos não precisam conspirar contra a educação dos pobres para que se mantenha a distância.

Discriminação e racismo são odiosos e precisam ser combatidos. Contudo, não são os determinantes críticos do insucesso de grupos mais pobres,

África do Sul e Estados Unidos são países que tiveram, por longo tempo, legislação explicitamente racista. Não obstante, por sua origem inglesa e holandesa, ambos os países tiveram sistemas de educação abrangentes. Mesmo em plena vigência do Apartheid e das leis americanas de segregação, já tinham classes médias negras expressivas e muito bem-educadas. Para ilustrar, Nelson Mandela estudou em uma excelente universidade. O pai de Miles Davies era dentista (na entrada do século XX). Quantos dentistas negros haveria então no Brasil?

Tudo isso nos leva à conclusão inevitável de que as causas da desigualdade são profundas e teimosas. Eliminá-la é tarefa ingente.

Israel, ameaçado de todos os lados, o que menos precisa é de uma brecha grande entre o desempenho educativo dos judeus askenasis (vindos da Europa) e os sefararadim (vindos do mundo árabe). Mas apesar de todos os esforços, os resultados são desiguais. O exemplo é instrutivo, pois passam longe de uma questão racial.

Dito isso, entendamos uma enorme diferença. Pelas causas mencionadas, parece quase impossível igualar a educabilidade de crianças de diferentes classes sociais. Em sociedades como a nossa, a história da desigualdade é tão antiga quanto o país. É preciso ser realista. Não obstante, temos que nos preocupar com o tamanho da distância. Essa pode e deve ser reduzida.

É aqui que entra em cena a necessidade imperiosa de melhorar a qualidade das escolas públicas. Sem isso, não há lei ou fervor político que gere resultados tangíveis.

E como demonstram as sociedades do Extremo Oriente, ao Estado cabe oferecer uma boa educação. Mas é também preciso um forte grau de dedicação dos alunos e famílias. Ganhar educação não é como ser sorteado na loteria. É apenas uma porta que se abre para um processo longo e penoso de aprender o que está no currículo. Em países como o nosso, ambos os lados são trôpegos.

Tudo começou na primeira Revolução industrial. Já estamos na quinta e cada uma que vem requer mais daquilo que é mais difícil para os pobres de adquirir: educação de qualidade.

Sendo assim, o trajeto é árduo e longo. As soluções são muitas, mas citaria apenas o início mais precoce da escolarização e boas escolas para todos. Não há caminhos fáceis e é preciso pagar o custo político. Ainda assim, é uma guerra que pode ser vencida.

Claudio de Moura Castro é Acadêmico da ABQ, Economista (UFMG), Mestre (Yale), Ph.D. (Vanderbilt). Ex-professor da PUC-Rio, FGV, UnB, Univ. de Chicago e Univ. de Genebra. Trabalhou no IPEA, CAPES (como Diretor Geral), OIT, Banco Mundial e BID. Assessor da Presidência da Universidade Positivo. Mais de 50 livros e 300 artigos. Articulista da Revista Veja.

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

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