quarta-feira, abril 24, 2024

Código de Ética para gestores de serviços de saúde

rawpixel.com / freepik

Mara Márcia Machado

 

O mundo contemporâneo é marcado por mudanças constantes e velozes. Como consequências, apontam-se o aumento da complexidade do ambiente e o baixo grau de previsibilidade das relações intra e interorganizacionais.

Assim, em face de demandas cada vez mais diferenciadas, as empresas de saúde têm procurado dar respostas não apenas aos seus proprietários, acionistas e clientes, mas também a outro público importante: usuários, colaboradores, concorrentes, fornecedores, meio ambiente.

As organizações de saúde vêm se conscientizando de que suas atividades sofrem e geram impactos variados, sendo necessário, portanto, rever relações com os diversos atores sociais. É necessário avaliar as atividades ligadas à responsabilidade social das organizações em termos éticos.

A pergunta a ser respondida é: as empresas de saúde adotam políticas e práticas de gestão responsáveis socialmente, movidas por comprometimento ético com a sociedade? Nos países, onde esta problemática é tratada há longos anos, alguns autores distinguem já de forma clara a existência de dois universos éticos: a ética médica; e a ética organizacional.

Isso parece preconizar a necessidade de se desenvolver um Quadro de Ética para os gestores e líderes dos serviços de saúde. Este quadro deve conjugar estas diferenças, colocando o paciente no centro do cuidado e fazendo prevalecer seus interesses.

O gestor em saúde é essencialmente um profissional com funções de gestão e não um prestador de cuidados. No entanto, dadas às características dos serviços de saúde, este obrigatoriamente terá que fazer a ponte entre as obrigações éticas e deontológicas médicas e as obrigações da organização enquanto empresa que opera num setor social.

Este conflito amplamente discutido representa um desafio a todas as partes interessadas neste setor. E impõe a necessidade de construirmos uma estrutura ética que considere as contingências do papel, que obriga o gestor a tomar decisões cujas repercussões vão além da relação médico-paciente, impactando na estrutura organizacional.

Como alerta Wendy Marine, a questão fundamental que precisa de resposta é: o gestor em saúde deve submeter às responsabilidades que tem perante a organização, às responsabilidades que tem perante o paciente? As respostas passam obrigatoriamente não por uma sobreposição ou conflito, devendo-se tentar encontrar uma solução numa fundamental interligação e influencia recíprocas dos dois interesses em causa.

Há ainda pouca literatura sobre Ética de gestão de saúde. Podemos entender que a “ética dos negócios” visa garantir que as atividades empresariais sejam congruentes com os valores sociais, princípios morais e as expectativas dominantes na sociedade. O que está em causa é mais do que o mero cumprimento da lei.

Essencialmente, a ética dos negócios reforça as exigências morais que se impõem sobre as organizações. A conjugação entre as ferramentas próprias da ética dos negócios (Business Ethics) e os princípios da bioética e do biodireito poderá constituir uma base teórica para a construção de um código de ética que considere a especificidade da gestão da saúde.

No setor saúde, o contraste entre a justiça social e os direitos individuais constitui um dilema para os gestores que tem o dever de gerir os recursos escassos para uma crescente demanda. O Quadro de Ética pode constituir uma ferramenta de gestão neste cenário, sendo um instrumento orientador para a tomada de decisões.

Os valores precisam ser promovidos e protegidos como recurso crítico na atividade de gestão da saúde. Deve ser uma ferramenta de gestão para responder aos esforços de construção de um clima de colaboração e confiança entre a alta administração, os profissionais de saúde e outros stakeholders do setor de saúde.

O American College of Healthcare Executives criou um código de ética para os seus associados que estabelece alguns princípios e ações que promovem uma conduta eticamente responsável na gestão da saúde. Este código, em alguns pontos, foi muito criticado por Wendy Mariner, no entanto, é um interessante exemplo que deve ser observado e estudado para se aferir o mérito de um futuro modelo a ser desenvolvido para os executivos de saúde no Brasil. A liderança eticamente consciente é aquela que contribuirá de forma ativa para promover um compromisso da organização de saúde com os seus valores.

 

Acreditação de serviços de saúde

A acreditação hospitalar surgiu nos Estados Unidos. Sua origem está relacionada a uma iniciativa do Colégio Americano de Cirurgiões, que em 1924 criou o Programa de Padronização Hospitalar. O objetivo foi estabelecer um conjunto de padrões para garantir a qualidade da assistência aos pacientes. Já em 1950, o número de avaliações nos Estados Unidos já superava os três mil hospitais (Feldman et al., 2005).

Em 1951 o Colégio de Cirurgiões Canadense estrutura seu instrumento de avaliação da qualidade para os hospitais canadenses.

A partir dos anos 80, os programas de acreditação se expandiram para outros países. Inicialmente, nos países de língua inglesa, Austrália e Europa e somente na década posterior, para países da América Latina e Ásia.

Em 1985, The Internacional Society for Quality in Health Care “ISQua”, é fundada para dar suporte técnico as práticas de avaliação para acreditação dos serviços de saúde nos diversos países. Em relação ao Brasil, a processo de acreditação dos serviços de saúde teve seu início no final dos anos 80, sob a influência da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), que estabeleceu uma série de padrões de qualidade para os Serviços de Saúde da América Latina e Caribe (Shiesari & Kisil, 2003).

Hoje, são mais de 80 países com seus modelos de acreditação coordenados e ou validados pela ISQua. Nos tempos atuais, com o crescente aumento do interesse pela qualidade dos resultados dos serviços de saúde e dada a importância do foco e das finalidades dessa área, a realização da avaliação intenciona revelar se a tão desejada qualidade assistencial foi alcançada.

Por meio das avaliações, busca-se saber, por exemplo, se estratégias traçadas para cada paciente foram atingidas de forma eficiente e efetiva, se os processos de desenvolvimento das intervenções revelaram seu mérito ou qualidade intrínseca, se as ações realizadas e os serviços prestados podem ser associados a algum tipo de impacto positivo para os beneficiados do sistema.

Enfim, a avaliação busca trazer à tona aspetos, dados e indicadores de que o objeto avaliado é adequado, eficiente e efetivo, isto é, se demonstra ter algum valor ajuizado a partir de critérios estabelecidos por este modelo de avaliação. A implantação de políticas de avaliação na saúde é permeada de certa resistência. Geralmente associada aos sentimentos de que as evidências produzidas e o conhecimento mais ampliado de informações possam acarretar mudanças, aumento da cobrança, do volume de trabalho, perda de poder ou até punições.

Superar essa resistência dependerá da capacidade dos gestores da saúde em articular os envolvidos em torno de uma proposta (intervenção) qualificadora das práticas e dos consequentes efeitos positivos para o alcance dos objetivos organizacionais. Nesse sentido, é importante considerar a afirmação de Denis & Champagne para quem “os diferentes atores dos serviços de saúde podem apoiar a implantação de uma intervenção se virem nela um meio de atualização de suas estratégias fundamentais”.

Há duas décadas os processos de avaliação para acreditação de instituições de saúde vêm buscando o entendimento das mesmas para a finalidade do processo de avaliação. A avaliação não permite somente a produção de informações para a certificação, muito mais que isto, melhora a eficiência e oferece a possibilidade de transformação dessa prática à luz dos interesses dos envolvidos considerando as relações contextuais. Contudo, embora seja clara a percepção da importância das avaliações, observa-se uma questão que merece destaque: a utilização. Mesmo que exista um consenso inegável sobre o valor das avaliações para melhoria da eficiência da gestão, pouca atenção tem sido dada à apropriação, pelos gestores dos resultados das avaliações.

As avaliações podem ser utilizadas para influenciar outras instituições ou serviços. Muitas vezes podem ultrapassar seus limites originais e pautar, não somente o gestor da organização, mas, também gestores dos processos clínicos interessados nos resultados para melhorias específicas.

Nesse caso, a avaliação acarreta impacto sobre os formadores de opinião, bem como alterações nas crenças e na forma de ação das instituições, modificando assim, conhecimentos sobre a formulação da gestão da qualidade. Os modelos de avaliação vêm contribuindo para grandes escalas de modificação de pensamento e, em última instância, para mudanças no curso da implantação da gestão da qualidade nos serviços de saúde.

 

Mara M. Machado é diretora executiva do IQG, da Accreditation Canada no Brasil e membro da Academia Brasileira da Qualidade (ABQ). 

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

Siga-nos nas Redes Sociais

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados