quinta-feira, abril 25, 2024

ESG, Ética e Valores

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Mauriti Maranhão

 

O pensador francês André Gide disse que “tudo já foi dito uma vez, mas como ninguém escuta, é preciso dizer de novo”.  André Gide sabia do que estava escrevendo, pois, ouvir todos ouvem; mas apenas alguns escutam.

Embora tenhamos dois ouvidos e apenas uma boca, escutar é uma arte, um privilégio de minorias. Talvez também pela dificuldade de escutar, o homem seja seduzido por “novidades”, mesmo que as essências das “novidades” sejam conhecidas de longa data, ditas e repetidas um sem número de vezes. Na área da gestão, as “novidades” são abundantes e quase universais. Por alguma razão que não consigo enxergar, mesmo gestores em posições relevantes ficam inebriados por essas novidades, os “modernismos”, celebrados como sacadas geniais. A leitura mais atenta, todavia, revela quase sempre um déjà vu.

Assim é que o velho PDCA, cuja essência é secular, ressurge sob variadas roupagens, que se tornam celebridades instantâneas. Similarmente ao que ocorre com o PDCA, diversos “novos” métodos de liderança e gestão surgem como “novidades”, sendo avidamente divulgados com a múltipla publicação de livros. Seria ESG (Environmental, Social and Governance – Ambiental, Social e Governança) mais um desses modernismos? Poderia ESG ser prática espontânea e generalizada? Façamos algumas considerações, antes de propor uma resposta.

A primeira consideração diz respeito à lógica dos fundamentos. Na teoria do esporte ensina-se que, para ser adequadamente praticado em qualquer modalidade esportiva, é fundamental dominar os fundamentos do esporte considerado. No voleibol, por exemplo, o saque, o bloqueio, o corte, a defesa baixa (manchete), são alguns dos fundamentos. Enquanto os fundamentos não estão internalizados, é muito pouco provável que algum atleta adquira nível de alto desempenho. Tanto quanto no esporte, na música, na arte, na engenharia e, penso, em todas as demais atividades humanas, dominar os respectivos fundamentos é a alma do negócio. Não é diferente no mundo empresarial.

A segunda consideração refere-se ao entendimento do que seja uma empresa. Segundo Yuval Hahari, a empresa não passa de uma abstração. Somente passa a “existir” quando todos em determinado grupo (as partes interessadas) acreditam que ela seja real, ou seja, existe uma “coisa verdadeira” relativamente similar a todos. Neste caso, a abstração “empresa” torna-se uma verdade intersubjetiva. Verdade subjetiva, portanto, pode ser compreendida como uma coisa na qual um grupo nela acredite, capaz de inspirar confiança a todos, tal como o dinheiro, que somente existe quando há confiança que ele tem valor monetário. As partes interessadas de uma empresa acreditam que ela realmente existe e que é capaz de ser objeto de transações comerciais e outras, ou seja, há confiança, ou crença, intersubjetiva.

A terceira consideração trata do tema estratégia empresarial. Constata-se que, enquanto a estratégia empresarial resume-se a uma (boa ou precária) formulação, ela é mera abstração, apenas uma intenção. Todos sabemos, não basta existirem belas formulações estratégicas para que ela seja crível. Isto é apenas disfarce de marketing sem produto (“o inferno está cheio de boas intenções”).

Para que a estratégia empresarial se torne uma verdade intersubjetiva, é necessário muita competência e esforço dos líderes. Requer que a equipe da empresa perceba que as formulações estratégicas são para valer, que terão consequências se não executadas. Necessariamente a estratégia empresarial induz um conjunto de ações que são implementadas e se transformam em coisas concretas, em geral superiores ao que estava posto. A empresa avança.

Para que a estratégia formulada seja motriz de ações transformadoras, é essencial que a empresa tenha lideranças capazes de comunicá-la eficazmente à equipe, convencendo-a a executar a parte dessa estratégia que cabe a cada um. Torna-se obrigatória e não mais discricionária de cada um. Devidamente concretizadas e agregadas, cada uma dessas partes será um tijolo assentado na “empresa”. O resultado acabado dessa construção é a própria execução da estratégia, a confirmar que se trata de uma verdade intersubjetiva e não de boas intenções, que poderão ou não ser executadas.

Nossa quarta consideração trata do tema disciplina empresarial, que determina o grau de “seguimento de regras”. Pela sua própria natureza, o homem é um animal cujo instinto é essencialmente egoísta, que caracteriza os seus desígnios naturais: sobreviver e procriar. Por essa razão, resta evidente que não é razoável esperar de todos os homens comportamentos universalmente éticos e, portanto, capazes de contrariar os primitivos instintos humanos. Virtudes requerem algum grau de altruísmo, nêmesis do egoísmo. O tema, por sua complexidade, requer apresentar algumas qualificações.

Como visto, seguir regras em geral não é exatamente compatível com os instintos humanos. De acordo com Maquiavel, regras são seguidas por amor ou por temor; seguir regras por amor, contrariando instintos, requer grau de sensibilidade superior, próprio de minorias de indivíduos, capazes de praticar virtudes. As minorias seguirão regras por amor e os demais por temor.

De acordo com a teoria dos Tipos Psicológicos Junguianos, todas as pessoas possuem quatro funções mentais, que competem entre si: Sensação, Intuição, Pensamento e Sentimento. O grau de desenvolvimento de cada uma dessas funções determina características comportamentais específicas do indivíduo, de acordo com a supremacia de uma função sobre as demais.

Os indivíduos com prevalência da função Sensação tendem a apreciar os aspectos sensoriais da vida (tato, olfato, paladar, visão e audição), como também fazem outros animais.  Os indivíduos com prevalência da função Intuição são muito bons em prever cenários. Os indivíduos com prevalência da função Pensamento tendem a criar funcionalidades para as coisas existentes, o que facilita a vida prática. Finalmente os indivíduos com prevalência da função Sentimento são os mais propícios à pratica virtudes. Em geral são pessoas mais sensíveis, contemplativas e espiritualizadas.

Coisas raras têm mais valor porque são escassas no mundo. Assim é que pessoas que têm a função Sentimento constitui apenas minorias populacionais em qualquer agrupamento humano da face da Terra. Observa-se que indivíduos deste grupo praticam não apenas uma, mas variadas virtudes. Bertolt Brecht denominou essas minorias de “imprescindíveis”, enquanto na visão Aristotélica os “imprescindíveis” nasceram banhados em ouro. E decididamente valem ouro para as empresas, embora muitas não se deem conta deste tesouro.

Penso que ESG implica o exercício de um conjunto de virtudes, próprio de valiosas minorias. Os imprescindíveis são capazes de abrir mão de certos “direitos” ou privilégios e praticar espontaneamente ESG. As maiorias deverão ser convencidas, monitoradas e, no limite, compelidas a ter comportamentos aceitáveis, compatíveis com práticas virtuosas, compatíveis com ESG.

Sob uma outra abordagem do mesmo tema, Elliot G. Aronson (autor de “O animal social”), propõe que a moral, compreendida como disciplina ou seguimento de regras, pode tornar-se prática corrente em qualquer agrupamento segundo três mecanismos, a saber:

• Submissão – à decisão de acatar a norma decorre de recompensas ou de ameaças, fruto de forças externas aos infratores;

• Identificação – à decisão de acatar a norma decorre de cálculo racional;

• Internalização – à decisão de acatar a norma decorre de decisão ética.

Nas várias pesquisas que realizei com meus alunos em sala de aula, auscultando o mecanismo em que eles acreditavam, obtive os seguintes números aproximados: Submissão (Temor): 85%; Identificação (Racionalidade): 10%; e Internalização (Amor): 5%. Surpreendente? Qual a opinião do leitor?

Não é por outra razão que em países com instituições fortes, o respeito à Lei é usualmente uma prática “normal” da população. Instituições fortes induzem percepção de consequências (sanções) pelas violações às regras estabelecidas. Instituições fortes, em geral democráticas, são fortes porque estimulam a participação popular na elaboração do regramento estabelecido, de modo a evitar excessos legais.

Fechando os temas abordados, façamos consideração sobre a cultura empresarial. É fato que a cultura é consolidada pela repetição de hábitos, que formam o conjunto dos costumes.  Em nações (ou organizações) dotadas de Instituições fortes, a cultura é aprimorada no sentido de vivências civilizadas (seguimento de regras), de forma contínua e virtuosa, consolidando uma cultura saudável.

Observando o povo japonês (considerados os mais éticos do mundo), a ética parece ser continuamente absorvida pelas novas gerações (fenômeno explicado pela epigenia). O comportamento do povo japonês na catástrofe de Fukushima (crianças agindo eticamente sob terríveis circunstâncias) proporcionou notáveis exemplos para o mundo. Na Copa do mundo de 2014, também foi notável ver grupos de japoneses coletando lixo deixado nas arquibancadas do Maracanã por torcedores não tão educados.

Consolidando as várias consideração sobre o tema ESG, na Live 12 da Academia Brasileira da Qualidade (https://www.youtube.com/watch?v=9B1Ilp3QBKM), se compreendi corretamente, o Acadêmico. Jairo Martins da Silva teceu pertinente comentário sobre a ancestralidade da essência do que hoje está sendo designado por ESG, muito embora esse modernismo tenha-se tornado a coqueluche do momento. Um olhar mais atento poderá perceber que o conjunto de normas de gestão da ISO aborda ESG, pelo menos considerando l’esprit des lois.

Na mesma live, entendi que o Dr. Jairo Martins também pontuou a superficialidade com que as empresas encaram ESG. Citou que algumas dentre as maiores empresas brasileiras têm práticas ESG execráveis, embora suas declarações de valores (Missão, Visão e Valores) fossem primorosas. Puro teatro, ética para “inglês ver”. Por que? Parece-me que são teorias desalinhadas dos fundamentos indispensáveis à prática consentânea de ESG. É chique fazer declarações, mesmo que isso seja superficialidade e tenha um forte apelo de marketing. Resta claro que seguir ou rejeitar os valores declarados nessas empresas é pura opção discricionária de cada um, especialmente dos líderes.

Mais especificamente, vejo a prática espontânea de ESG similar à pratica de outras virtudes, que sempre requerem muito esforço pessoal, capaz de refrear instintos humanos, primitivos por natureza. Conseguir refrear instintos é sempre tarefa muito difícil (por contrariar a natureza). Isto é habilidade de minorias, formadas por seres mais sofisticados espiritualmente (sentido lato, não religioso). Com isso, constata-se que praticar virtudes, a exemplo de altruísmo, qualidade, apreciação da arte, da música, da beleza, da estética, ESG requer alguma sofisticação da alma.

Fazendo analogia entre nações e empresas (organizações), somente quando a empresa tem instituições fortes pode assegurar práticas éticas, compatíveis com ESG; minorias praticarão ESG de forma espontânea, mas a maioria terá de enxergar, com clareza, que todas as ações terão consequências (sanções). Por consequência, é vital que a estratégia seja antecedente a ESG. Como outras virtudes, ESG terá que ser exemplarmente praticada pela Alta Direção, de modo que a equipe se sinta compelida a seguir os exemplos de quem tem o poder, e abre mão de alguns “direitos” conferidos pelos instintos humanos. 

Por fim, analisemos agora o tema mais pragmático de ESG, ou seja, passar do discurso à prática. Alguns idealistas argumentam que é tempo de ESG. Enquanto a natureza humana não se modificar (é praticamente a mesma há 70.000 anos), penso que praticar ESG é similar ao que aconteceu no Brasil com a obrigatoriedade do cinto de segurança. Embora racionalmente óbvia, somente quando as multas se tornaram ameaça frequente aos resistentes, a prática “pegou”). A percepção de que a violação trazia uma consequência, uma sanção a quem desrespeitasse a regra ficou claramente estabelecida pela maioria da população. Atualmente, a grande maioria segue “espontaneamente” a regra (amor ou temor?).

Empresas que decidam implementar ESG, necessariamente terão de criar “instituições fortes”, isto é, uma estratégia clara, com poderes definidos, compreendida por toda a equipe. Nessa estratégia é vital que haja a determinação empresarial clara e insofismável de que é obrigação de todos praticar ESG (e outras virtudes), sob pena de sanções aos transgressores.

Concluindo: amor ou temor? Esperar que ESG se torne prática regular e espontânea de todos é sonho de uma noite de verão.

Mauriti Maranhão é Engenheiro Mecânico (IME), M.Sc (EFEI), Estatístico (ENCE), Especialização na França (SNPE) e no Brasil. Lead Assessor na Inglaterra (Batalas – Reino Unido). É ou foi professor na UNESP, USP, CTA, FGV Direito, CEFET, UFF e Universidade da Força Aérea. Oito livros publicados, todos com conteúdos pertinentes à Gestão e Liderança. 

 

Este artigo expressa a opinião dos Autores e não de suas organizações.

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