B. V. Dagnino
“O caos é a ordem a ser decifrada” (autor ignorado)
“Quando entrarmos numa empresa e formos atendidos de forma excelente e dissermos ‘isto aqui até parece uma repartição pública’, estaremos realizados”. (Paulo Daniel, ex-diretor do Gespública). Não que não haja organizações privadas que prestem serviços abaixo do mínimo nível aceitável, o que se observa pelo número de reclamações sobre bancos, empresas de telecomunicações e informática, etc.
Se se considerar que faz pouco tempo que os brasileiros se acostumaram a reclamar, e ainda mais que número reduzido de reclamações não significa que os clientes estejam satisfeitos, a situação se afigura ainda mais séria. O autor e certamente muitos dos leitores já se depararam com situações em que a área pública prestou um melhor serviço do que a área privada. De vez em quando se lê ou se ouve que até o tão criticado SUS tem UPAs que atendem melhor do que postos credenciados de planos de saúde, por exemplo.
Mas concentremo-nos nos serviços públicos prestados pela Administração Direta, tentando não identificar as principais razões para a situação atual, sem dúvida em geral insatisfatória (embora se deva reconhecer que haja exemplos gratificantes), mas sim como iniciar o processo do seu aprimoramento no Brasil:
Liderança/governança/ chefia
Lemos e ouvimos de diversas pessoas, desde altos executivos profundos conhecedores da gestão privada e pública, servidores públicos de diferentes níveis, e clientes-cidadãos, e a opinião unânime que ouvi é que o principal problema é a falta ou deficiência da liderança ou chefia nos órgãos públicos. A inexistência de uma cobrança de resultados, do cumprimento do dever funcional, da conscientização dos subordinados para com o zelo da coisa pública, do conhecimento de como liderar etc., são aspectos de problemas de governança que requerem uma profunda mudança de mentalidade em nível nacional.
Governo eletrônico
Tem tudo a ver com a palavra de ordem do momento, que é a sustentabilidade; reduz-se a necessidade de o cliente-cidadão (será usado esse termo, adotado na norma NBR ISO 18091, que é a 9001 para prefeituras, para enfatizar que é indispensável que o servidor público considere todo e qualquer cidadão como seu cliente) se deslocar para o órgão público, com todas as suas consequências em termos de tempo, uso de meios de transporte, papel, área física das instalações das repartições federais, estaduais ou municipais; isso significa menor custo. Muitos se lembram da propaganda de grande instituição financeira cuja chamada era “não queremos ver Você no banco”. A informatização propiciaria ainda o aumento da gama de serviços oferecidos e o atendimento a maior número de usuários sem o aumento do efetivo de servidores; o conceito pode ser estendido ao que poderíamos chamar de cultura eletrônica, disponibilizando, por exemplo, visitas a museus através de portais sofisticados na Internet, ao invés de pesados investimentos em prédios e instalações acessíveis a poucos.
O servidor
Aplica-se a ele o clássico “saber fazer, poder fazer, querer fazer”. Saber fazer requer processos de admissão, treinamento, certificação de competência, meritocracia, reconhecimento, plano de carreira, salário adequado e harmonizado com servidores exercendo funções correlatas (nos Três Poderes), demissão e punição se necessário for. No caso dos cargos de chefia, significa saber liderar seus subordinados. Poder fazer significa ter os recursos necessários, inclusive financeiros, instalações, equipamentos (inclusive tecnologia).Querer fazer significa estar motivado para dar o melhor de si para atender ao cliente-cidadão evidenciando interesse, compreensão e vontade de atender.
Simplificação dos processos/desburocratização
Compreende legislação clara, harmônica, de fácil acesso e atualizada, logo de fácil aplicação; redução do formalismo como reconhecimento de firmas, autenticação de cópias etc.; crédito às declarações do cliente-cidadão (com enquadramento em crime de falsidade ideológica quando aplicável); definição de prazos para a execução de atividades repetitivas; uso de indicadores de desempenho e dos princípios básicos da boa gestão; redução ao mínimo do famoso “caiu em exigência”, tendo como meta o atendimento no primeiro contato sempre que possível.
Descentralização
Nos casos em que seja impossível a prática do governo eletrônico, como no caso dos serviços de saúde, a solução é dispor de órgãos distribuídos geograficamente, ou usar postos volantes para atendimento ao cliente-cidadão, com horários compatíveis com suas necessidades e estrutura adequada para a demanda esperada.
Delegação de poderes/redução do número de níveis hierárquicos
Deve ser dado ao servidor que atende diretamente o cliente-cidadão poderes em nível adequado, só ocorrendo às chefias caso absolutamente necessário. A estrutura organizacional tradicional com grande número de níveis hierárquicos intermediários deve ser simplificada. O uso da gestão por processos (horizontalizada) precisa ser estimulada.
Privatização/terceirização
Sempre que a iniciativa privada puder realizar serviços de forma mais eficiente e eficaz, eles devem ser contratados com empresas devidamente qualificadas e, se for o caso, certificadas; quaisquer atividades como limpeza, conservação, coleta de lixo, administração de cemitérios, transporte público, gráfica, manutenção e muitos outros se enquadram nesse critério. Há controvérsias quanto a serviços de saúde, sendo utilizados vários modelos; em educação alguns países utilizam escolas administradas por entidades sem fins lucrativos, que recebem recursos governamentais; mesmo no Brasil existem até penitenciárias administradas por empresas privadas.
Ouvir a voz do cliente-cidadão
Não basta receber, analisar e processar as reclamações dos clientes-cidadãos; é necessário medir sua satisfação, seja no caso de um atendimento específico, seja em nível global em relação aos serviços de um dado órgão. Muito mais do que isso, é indispensável identificar suas necessidades, expectativas e preferências: como ser atendido, em que prazo, onde, 24 horas, sete dias por semana, etc.
Ética
Assuntos que vêm despertando interesse mundial, a corrupção e a responsabilidade social têm provocado muitas iniciativas; a ISO já emitiu documento sobre este último tema, e está trabalhando numa norma internacional sobre sistema de gestão antipropina. O relacionamento dos órgãos públicos com seus fornecedores e com o cliente-cidadão, bem como com outras partes interessadas, precisa ser pautado pelo rigoroso cumprimento do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal e seus equivalentes nos níveis estadual e municipal; sua infringência deve ser devidamente punida, devendo existir instrumento que permita denúncias, inclusive anônimas.
Benchmarking
Comparação com referenciais deve ser um estilo de trabalho praticado pelos servidores em todos os níveis, isto é, deve existir uma mentalidade de buscar sempre os melhores exemplos de práticas de gestão de toda ordem, no Brasil e no exterior, por canais formais e informais; isso não deve ser voltado apenas para copiar, mas para adaptar inteligentemente ao contexto do órgão o que se identificou como de interesse.
Inovação
Abrange inovar produtos, serviços, práticas de gestão e processos tanto das atividades-fim como as atividades-meio; depende do desenvolvimento de uma mentalidade de buscar novas ideias para reduzir tempos de execução e prazos de entrega, aumentar a satisfação do cliente-cidadão, reduzir o uso de insumos e os custos, adotar metodologias e tecnologias avançadas etc.; a geração de ideias deve ser estimulada e reconhecida, tanto individualmente como em grupo, interagindo com clientes, fornecedores e outras partes interessadas (a chamada inovação aberta).
Sensibilização da sociedade
Significa mobilizar o cliente-cidadão pra exigir sempre serviços públicos de qualidade, manifestando sua insatisfação por variados canais. Requer um esforço de comunicação com a sociedade, enfatizando o papel de todos para o aprimoramento dos serviços prestados pelos órgãos federais, estaduais e municipais, tanto do Executivo, como do Legislativo e do Judiciário.
Se conseguirmos implementar uma boa parte dos pontos acima expostos, teremos meio caminho andado para serviços públicos de qualidade. Talvez caiba redigir um Manual da Qualidade no Serviço Público, detalhando os aspectos citados, e certamente muitos outros que um brainstorming, com a participação (idealmente virtual, para cumprirmos o que pregamos) de servidores, identificaria.
B. V. Dagnino é vice presidente da Academia Brasileira da Qualidade (ABQ) e diretor técnico da Qualifactory Consultoria.